Morro da Coroa, um caso de mobilização comunitária

Reunião da Associação dos Moradores do Morro da Coroa – Foto Divulgação

No último dia 16 de março, o governo do Estado do Rio de Janeiro decretou “estado de emergência na Saúde Pública no Estado do Rio de Janeiro” por 15 dias (Decreto 46.973), após as primeiras mortes pelo Covid-19 no Brasil, sendo uma em Miguel Pereira – uma empregada doméstica de 63 anos. Naquele momento eram quase 300 casos confirmados no país inteiro, e cerca de duas semanas depois mais de 600 casos estão confirmados somente no estado do Rio de Janeiro. O decreto produziu uma fissura na rotina carioca, suspendendo aulas tanto da rede pública como privada e universidades, assim como o passe livre no transporte púbico para estudantes. Fechamento de shoppings, academias, proibição de frequentar, e restrição aos restaurantes e bares a 30 % da capacidade de lotação, além de redução de 50% da circulação dos ônibus, entre outros pontos.

A razoável observância aos protocolos sanitários estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) degringolou a economia. Sobretudo a interrupção do setor de serviços (restaurantes, bares, portarias, etc.) provocou a demissão em massa de trabalhadores registrados e informais. Confluindo o problema, o isolamento social e o esvaziamento das ruas abduziu a clientela dos trabalhadores em comércio autônomos registrados e destarte os informais e camelôs. Se a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), do IBGE, apontou 40,7% da força de trabalho brasileira ocupada em trabalho informal (sem carteira assinada ou é um empreendimento sem registro), nas favelas esta fatia passa os 50% (47% autônomos e 8% informais), segundo o Data Favela.

O mesmo Data Favela que em 2014 celebrou os 93% dos moradores de favelas no Brasil que demonstraram otimismo em relação à vida, em pesquisa divulgada dia 24 de março último, lidou com os 97% que já disseram mudar hábitos por causa e após a pandemia do Covid-19. Pior, estamos falando de uma população de autônomos sem reserva bancária em 72% e que 86% terão dificuldades para se alimentar se ficarem uma semana sem trabalho ou em casa de quarentena. Apenas 19% possuem relações trabalhistas formalizadas em CTPS.

Por outro lado, o Brasil tem muito a render homenagens às favelas, muito além do Samba, do Jongo e da cultura popular. Se pudéssemos unir esta população de 13,6 milhões de brasileiros (fonte: Data Favela) como um estado, elas são capazes de produzir mais renda e capital que 20 dos 27 estados da federação: R$ 119,8 Bilhões por ano. A força do empreendedorismo e do trabalho informal. E mais do que isso, se boa parcela da cidade está em casa para protegerem-se contra o Covid-19, a favela tá na rua para assegurar a cidade, trabalhando como caixas de supermercados, como garis, nos hospitais e Clínicas das Famílias – seja nos serviços gerais terceirizados ou seja como enfermeiras ou médicos -, nas entregas delivery de restaurantes ou farmácias, além de aplicativos de celulares.

Não é à toa que a cidade lhe reconhece e lhe rende homenagens. Florescem dezenas de iniciativas de coletas ou vaquinhas a fim de realizar doações de materiais de limpeza ou cestas básicas para populações de comunidades do Rio de Janeiro, para amenizar o prejuízo econômico. E a envergadura vai desde o Sistema S, como Senac RJ divulgou em 24 de março na sua página, que “neste período, o #MesaBrasilSesc RJ já entregou 10 toneladas de donativos para instituições que cuidam de crianças, adultos e idosos, inclusive para a população de rua. Os alimentos estocados em nossas Unidades e Hotéis também estão sendo doados”. Como as organizações de favelas Papo Reto, Maré 0800, Agência de Notícias das Favelas (ANF), entre tantas outras que mobilizam pela rede campanhas de coletas de doações.

Porém, a grande maioria se mobiliza fora dos holofotes midiáticos e quiçá dos olhares dos movimentos sociais organizados. Este artigo testemunha, do ponto de vista interno, uma mobilização comunitária específica para coleta de doações, tanto monetárias como cestas básicas e materiais de higiene. Trata-se do Morro da Coroa, localizado no bairro de Santa Teresa, Centro do Rio de Janeiro, e que não está na lista de coletas conhecidas na cidade.

COROA CONTRA O CORONA

Domingo pela manhã de sol no dia 22 de março, desço a rua Miguel Rezende, de Santa Teresa, em direção à associação de moradores do morro da Coroa. As ruas estavam vazias, além do habitual, no bar pelo qual passei no caminho só havia dois clientes. Uma reunião foi convocada para mobilizar o diálogo da Coroa com o bairro de Santa Teresa visando mitigar os efeitos econômicos do Covid-19 naquela comunidade, através de doações. Marcada para as 11h, chego com antecedência na região do “Gordo” da favela, onde está a sede da associação que recebe o nome de SAMC – Sociedade de Amigos do Morro da Coroa. Mal sabia que estava prestes a obter uma aula de organização comunitária.

Passo na casa da Clátia Vieira, liderança comunitária com vasto histórico de movimentos sociais, notadamente ativismo de gênero e raça. Integra o Fórum Estadual do Mulheres Negras e é Fundadora do Grupo Lage/Mulherada no Morro da Coroa.

“O Grupo Lage/Mulherada é um grupo de homens e mulheres empenhados em mobilizar nosso território junto a eventos e atividades culturais, e neles enredar formação política cidadã. Este ano realizamos o 9º Almoço de Mulheres do Morro da Coroa, antes do Coronavírus vir à tona. Temos outros projetos como Curso de Inglês que é muito solicitado na comunidade, e o Pré-Vestibular/ENEM. É importante ressaltar que a associação [de moradores] está totalmente aberta a apoiar quaisquer projetos dos moradores de todos os territórios da comunidade, qualquer morador que aparecer aqui nós vamos apoiar”, concluir Clátia.

Foto dos fundadores do Grupo Laje/Mulherada, em 1996. Morro da Coroa, Santa Teresa, Rio de Janeiro.

Na área conhecida como Praça do Gordo, às 11h pontualmente, em frente à associação de moradores, surge José Eduardo Fonseca Siqueira, um jovem operador de câmera que é liderança comunitária aos 33 anos, afinal é quem está à frente da presidência da Sociedade de Amigos do Morro da Coroa (SAMC). Alessandra, moradora da sede aparece em seguida, depois Rita, também da área do Gordo, e depois Roberta e Raquel. Pelo grupo do zap, Clátia chama a atenção das outras lideranças dos subterritórios, mas estão receosas de sair de casa e recomendaram um chat online no lugar da reunião presencial. O morro da coroa possui oito subterritórios. A saber: Praça do Gordo, Miguel Resende, Agra Filho, Chacrinha, Serra, Campo, Praça Amor de Mãe e Atalho.

Aberta a reunião, numericamente defasada para evitar aglomerações, todos os presentes se distavam em 1 metro entre si. Pronta e surpreendentemente, já é apresentada uma categorização dos beneficiários das doações a serem provisionadas. A saber:

  • Idosos que moram sozinhos;
  • Idosos acamados;
  • Idosos com problemas graves de saúde;
  • Famílias numerosas com pessoas desempregadas;
  • Famílias com pessoas desempregadas;
  • Diaristas na quarentena sem remuneração;
  • Domésticas na quarentena sem salário;
  • Pessoas desempregadas, sem benefícios e sem renda;
  • Ambulantes;
  • Autônomos.

Na sequência, o primeiro ponto deliberativo a fim de levar a cabo o levantamento foi a formação de uma equipe: com 2 membros da associação (SAMC), 2 da Praça do Gordo, 1 de Miguel de Resende, 1 de Agra Filho, 1 da Serra, 1 do Chacrinha, 2 do Campo, 1 do Praça do Amor de Mãe e Atalho. Cada um responsável pelo levantamento do seu território e convidar mais um morador para auxílio. Esta mobilização resultou no final desta semana num grupo de 17 entre lideranças e moradores. “O levantamento vai depender dos moradores, da disponibilidade… certamente não será uma coisa rápida, a gente vai fazendo e entregando as contribuições”, explica Clátia.

E é Clátia quem ajuda a explicar a mobilização na Coroa: “ao longo dos anos, os moradores foram buscando se organizar nos subterritórios que existem dentro da comunidade. Isso se dá por conta de ausência do poder público e às dificuldades que as associações de moradores tem de receber apoio financeiro do poder público. Os moradores ficam à mercê do projeto ‘A’ ou projeto ‘B’, e isso não nos fortalece”.

No segundo ponto de mobilização para o levantamento foi salientado o papel dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS)  para este trabalho. Os ACS compõe o Estratégia Saúde da Família (E-SF) enquanto atores na ponta na comunidade detém o levantamento (censo) sanitário, porta a porta, de todo o território de responsabilidade da Clínica da Família do bairro. A Clínica Sérgio Vieira de Mello, na área conhecida como “Chaminé”, em frente ao bairro do Catumbi, foi fundada em 2011 com 6 equipes da Saúde da Família, que atendem o Morro da Coroa e seu entorno, e uma clientela ao sistema de saúde de mais de 25 mil habitantes da região. Em um levantamento, também porta a porta, da Clínica da Família em 2013, contaram pelo menos 15 mil contribuintes aos sistema de saúde no Morro da Coroa. Cátia lembrou que muitos dos ACS são moradores da própria comunidade e ela em breve entraria em contato solicitando somar forças.

O terceiro ponto de apoio para o levantamento teriam sido as informações do Cadastro Único, obtidos pelos Centros de Referência de Assistência Social, os CRAS. O CadÚnico, como é conhecido operacionalmente, é fonte de dados para políticas públicas, como o Bolsa Família. Em momentos de calamidade coletiva como esta pandemia, mobilizações e grupos surgem simultaneamente para buscarem soluções. E aplicativos como o WhatsApp servem muitas vezes como plataforma. Em Santa Teresa foi formado esta semana um grupo deste aplicativo, o “Covid-19 nas Comunidades” só com profissionais dos CRAS correspondentes ao bairro, da Clínica da Família, inclusive a coordenadora da CF, e lideranças comunitárias para dar atenção às favelas. “Eu, José Eduardo estamos neste grupo, nós vamos buscar os dados”. Para a população do Morro da Coroa, o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Ismênia de Lima Martins e o CRAS Terminal ambos cobrem o território. Porém, enquanto os números oficiais da equipe E-SF e do CRAS não são obtidos, o levantamento será por conta dos líderes comunitários.

O quarto ponto de pauta foi sobre o aspecto sanitário, informativo e preventivo contra o Corona Vírus. A comunidade possui um sistema de som próprio há mais de 40 anos, que nada tem a ver com as sirenes da prefeitura. Contudo, as fiações e caixas amplificadoras foram avariadas com o tempo. “É por onde antigamente a gente chamava para receber as cartas dos Correios e Telégrafos, receber as compras, as encomendas, chamar morador para dar informes”, conta Clátia Vieira. Dia 19 de março a Prefeitura do Rio determinou que as sirenes presentes em 103 comunidades do Rio de Janeiro, porém não na Coroa, que antes eram usadas para alertas de chuvas ou deslizamentos, passam as ser utilizadas para informações sobre o Covid-19 para não saírem de casa, soando três vezes ao dia, às 10h, 15h e 20h. A prefeitura se valerá também do sistema de mensagens SMS nos parelhos de celular, que possui mais de 630 mil inscritos, agora inclusive para alertas sanitários.

CONTATO COM RESIDENTES NOS “TRILHOS”, AMAST E ORGANIZAÇÕES DO BAIRRO

Finalmente, a última deliberação foi entrar em contato com residentes do bairro de Santa Teresa para agenciar uma campanha de doações para os beneficiários da lista acima. Clátia Vieira que está articulada com grupos organizados no bairro, passou a ata da reunião de domingo 22 de março para o grupo do WhatsApp “Fórum do Comitê de Santa Teresa Pela Democracia”, com mais de 70 membros. Foi quando iniciaram as mobilizações com o “asfalto” do bairro. Cláudia Helena Such, 59, produtora audiovisual, técnica radialista e diretora da AMAST (Associação de Moradores e Amigos de Santa Teresa) integra o grupo do WhatsApp. E entrou de cabeça.  Na segunda feira 23 de março, contatou o Raízes do Brasil, um espaço do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) em Santa Teresa, conhecido por, além do delicioso Café Camponês pela manhã e produtos agroecológicos, hospedar movimentos sociais. Terça-feira foi assegurado o local para a coleta de doações e então iniciaram as divulgações nas redes sociais com um flyer informativo. Uma Ong, o Centro de Apoio Ao Desenvolvimento Osvaldo dos Santos Neves entrou com uma conta bancária para receber doações financeiras, e o Lava-Jato 100 Nome como segundo ponto de coleta.

Cláudia comenta, no entanto, que a AMAST paralelamente já estava se mobilizando.”Frente à realidade, a AMAST tomou a iniciativa de começar uma articulação de apoio aos mais vulneráveis do bairro, ou seja, nossos vizinhos pra baixo do asfalto, os moradores das favelas. A ideia inicial era articular o Posto de Saúde, igrejas conscientes e voluntários. Usar os cadastros do Saúde da Família, para localizar os idosos, nos territórios, através do telefone. E transformar para fora, esses polos em pontos de ajuda efetiva, na coleta de donativos”. Mas o postos e Clínica da Família estavam assoberbados de serviços com a vacinação de idosos e a pandemia em si. “Aí, em paralelo, a Clátia, que é moradora, ativista de grupos da Coroa, simultaneamente entrou em contato com a gente no grupo do WhatsApp e nos informou que havia feito uma reunião com grupo de moradores e associação de moradores no domingo [22/03]”.

Candice Abreu de Moraes, professora de teatro e terapeuta em saúde mental, também está empenhada na coleta: “meu pensamento está muito conectado para população de favelas, eu trabalho há 20 anos em áreas periféricas, então tenho esta realidade dentro de mim. A desestrutura urbana, a falta de saneamento, comunidades que não tem nem água para lavar as mãos, também sabemos da realidade socioeconômica que com falta de dinheiro para se alimentar, produtos de higiene muitas vezes viram luxo. Nestas condições não é um direito de todos a reclusão, em lugares algumas vezes insalubres, sem ventilação, com muitas pessoas na casa, sem poderem ser liberados do trabalho ou, pelo contrário, terem que sair de casa para trabalhar para pôr o ‘pão na mesa’ ”.

No decorrer da semana, começou a chegar doações no Raízes. José Eduardo, presidente da SAMC, disse que é difícil quantificar. Diariamente, são recolhidas no Raízes e distribuídos a partir do levantamento dos moradores.

Maria de Rezende Xavier, artista recém aposentada e ex-pesquisadora, também doou. “Eu vi aqui em um dos grupos de Santa Teresa, vi que a Clátia solicitou esta ajuda, e eu muito agradecida, junto com a minha filha, fizemos uma compra de higiene e de produtos de alimentos não perecíveis. Pretendo fazer outra agora no mês de abril. Eu queria dizer que isso ainda é muito insuficiente porque minha causa é contra a injustiça social. É insuportável a gente ter tanta coisa, livros, comida, acesso a filmes, água, enquanto tanta gente não tem. É inimaginável tanta gente, o que esta população está passando nesta pandemia”

A comunidade do Morro da Coroa continua recebendo doações, é apenas o começo da coleta. Colaborem! Doem! Abro este texto como fonte de divulgação para doações por parte dos leitores deste artigo. Informações de pontos de coleta e conta bancária nos dados abaixo.

Colabore. Doe para o Morro da Coroa.

Sociedade do Amigos do Morro da Coroa (SAMC).

PONTOS DE COLETA:

  • RAÍZES DO BRASIL. Rua Áurea, nº 80. Santa Teresa, Centro, Rio de Janeiro. RJ.
  • LAVA-JATO 100 NOME: Rua Santa Catarina, nº 367. Santa Teresa, Centro, Rio de Janeiro. RJ.

DEPÓSITO EM CONTA:

  • BANCO SANTANDER 033.  Agência nº 3838. Conta Corrente nº 13.000.268-6. CNPJ: 02.593.213. Centro de Apoio Ao Desenvolvimento Osvaldo Dos Santos Neves (CADON).