Luz, câmera, pichação!

banheiro-pichado

Gustavo Coelho é um dos diretores e estudiosos desse assunto tão polêmico que envolve questões sociais, comportamentais, pessoais etc.  O processo começou como uma apresentação de mestrado e hoje, o documentário já roda o Brasil e o mundo. Foi com bastante adrenalina que a equipe se aventurou nesse projeto e hoje eles mostram em palestras como dissemina a questão da pichação  desde um hobby à uma filosofia de vida. Fiz questão de entrevistar o Gustavo, para ele desmistificar algumas questões que, eu mesmo tinha algumas dúvidas que foram sanadas nessa entrevista. Vale a pena dar uma conferida!

“Luz, câmera, pichação”, esse é o nome do projeto em que você encabeça. Primeiramente, como surgiu a ideia de montar o projeto e porque surgiu esse interesse?

Então, vivi os primeiros 25 anos da minha vida entre Ramos e Olaria e apesar de nunca ter sido um piXador de fato, a pichação, ou melhor, o Xarpi, para já usarmos uma expressão tipicamente carioca, compunha com eloquência uma boa parte do repertório visual do meu cotidiano. Em todo caso, o interesse propriamente dito só surgiu quando, ao começar a oferecer oficinas de música, vídeo e fotografia numa ONG no Morro dos Macacos em Vila Isabel, passei a tentar investigar quais outras produções estéticas, para além das já amplamente divulgadas e reconhecidas, como o samba, o funk, a capoeira, haviam germinado dos solos periferizados, jovens e também negros de nossa cidade-favela-mundo. Foi então que o Xarpi ganhou protagonismo no meu trabalho. Uma cultura popular brasileira com pelo menos 40 anos de existência, com diferentes gerações, que se desenvolveu em nossos solos populares e, sempre em contínuo processo, nos oferece uma estética muito peculiar, com traços típicos em cada cidade, especialmente no nosso caso, no Rio de Janeiro, onde os “nomes”, o “encaixe” nos muros, a importância da superfície, as reuniões por toda a cidade, elaboram uma complexa rede de socialização, troca e circulação de jovens, sobretudo daqueles que tramam seus trajetos a partir das franjas dessa cidade, cuja malha de transporte é reconhecidamente falha na facilitação da livre-circulação de vidas e ideias, especialmente quando estas encontram melhor pouso à noite, na madrugada de poucos ônibus, nenhum trem, nem metrô.

Em todo caso, mesmo com tamanha expressão na cidade, essa cultura, salvo um pequeno curta intitulado “Celacanto provoca Lerfamu” de 1979 dirigido por Pedro Camargo, e outros projetos que não conseguiram ser concluídos e lançados, como o do amigo Jefferson Don (“Que o mundo veja”), ainda tinha um vácuo de produções audiovisuais que a abordassem para além dos discursos de baixa intensidade intelectual comuns à grande mídia, os quais geralmente encerram suas capacidades de reflexão na criminalização e na sacralidade intocável da propriedade privada, ou melhor, na primeira superfície dela, o muro. Percebendo esse vazio de reflexões que cauterizam nossa relação com a piXação e agem como muro de proteção psíquica, impedindo que pensemos para além da tão defendida “tinta branca”, é que propus-me a fortalecer teoricamente pela filosofia, pela sociologia, pela linguística, pela psicologia, essa tão odiosa tinta “preto fosca” de secagem rápida e difícil limpeza. Assim, desse trabalho que iniciou-se em 2008, temos já uma dissertação de mestrado (“piXação: arte e pedagogia como crime”) defendida em 2009, o documentário Luz, Câmera, Pichação lançado em 2011 e premiado com Menção Honrosa no Prêmio Manuel Diegues Jr. oferecido pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CNFCP, e uma tese de doutorado (esta não limitada apenas à piXação – “PiXadores, torcedores, bate-bolas e funkeiros: doses do enigma no reino da humanidade esclarecida”) defendida em 2015.

Como foi o processo de gravação do documentário?

Em verdade, quando iniciamos, a ideia era somente filmar algumas missões pelas noites cariocas, conversar com alguns piXadores, como prática de etnografia mesmo, sem um plano e muito menos um roteiro que previsse um documentário. Em todo caso, como para isso chamei um amigo que estudava cinema, Marcelo Guerra, para me acompanhar, e ele topou, logo no primeiro dia, quando vimos a qualidade e raridade das imagens que conseguimos, imediatamente passamos a pensar em um documentário. Mais para frente, um outro amigo, Bruno Caetano, também estudante de cinema, juntou-se ao projeto e fomos basicamente filmando conversas, missões e reuniões. De todo modo, em momento algum eu queria que o filme se tornasse um filme-manifesto que encerrasse uma compreensão definitiva quanto ao fenômeno, nem mesmo um caminho interpretativo determinado. A única direção era que o filme abrisse mão das posturas previamente negativas, que fosse um filme “positivo”, no sentido não do que “há de bom”, mas daquilo que move, que dispara, que dá movimento à vida não enclausurada dessa galera. Não quisemos ninguém “falando por”, apenas piXadores e piXadoras falando deles mesmos, de suas vidas, ansiedades, nervosismos, amores, tristezas, enfim, radicalizando a ideia de que só há piXação onde há vida e que onde há vida, há complexidade, dinamismo, contradições, e uma imensa variável de conhecimentos, saberes que a atravessam e a constituem. Em resumo, por mais terrificante que possa ser uma prática, ela só germina, vira cultura popular e desenvolve uma linguagem rica, se nela há vitalismo coletivo, e é dessa vida que se trata todo meu trabalho e nosso filme.

Preconceito. Qual a grande diferença entre a Pichação e o Grafite? Existe diferença pra você? Ou ambos mostram identidade do autor?

É importante dizer que essa distinção discursivamente construída que aproxima a piXação (ou a “tag” se falarmos em vocabulário global) do “mal”, do que deve ser “inibido”, “combatido”, “exterminado”, e o graffiti do “bem”, como algo que merece ser “valorizado”, “mercantilizado”, “profissionalizado”, “projetosocializado” (ferramenta para produção de projetos sociais), só existe no Brasil, sendo de difícil compreensão para qualquer grafiteiro gringo entender as razões dessa cisão. Portanto, vivemos algo que não é novidade em nossas terras de herança profundamente escravagista e subalternizante. Mais uma vez a produção estética nascida à revelia das franjas subalternizadas, encontra uma versão supostamente mais “trabalhada”, mais “distinta”, sobre a qual o poder público injeta suas expectativas de um futuro efeito extermicida. Assim, passa a legislar não apenas sobre a superfície da cidade, ou seja, “onde pode e onde não pode”, mas transforma a lei numa curadoria de obras e portanto de vidas. Quais obras são bem-vindas e, então, quais vidas também valem a pena? Dessa forma já se regia a “lei da rua”, onde sabemos muito bem que “estar fazendo um graffiti”, onde portar um largo leque de cores, pode salvar sua vida ou ao menos seu corpo de algum abuso torturante policial, enquanto que portar apenas um preto fosco, ainda que nenhuma lei possa regulamentar a legalidade das cores, serve de automática justificativa a uma pronta condenação. É isso que há tempos acontece nas ruas de nossa cidade e na verdade segue acontecendo. Em todo caso, algo de ainda mais grave recentemente tornou-se lei. Esse capricho da legalização de estéticas, antes “coisa de rua”, agora figura claramente na lei. Há pouco tempo um Decreto de lei, conhecido como Decreto do Graffiti, passou, pela primeira vez, a assumir uma perigosa e, a meu ver, inconstitucional, dimensão curatorial da lei, onde não se legisla mais somente acerca da legalidade da superfície que vai receber a intervenção, mas também sobre o que pode ser “desenhado”, configurando censura prévia. O próprio texto do decreto já prevê que o uso do graffiti serve para “inibir a piXação”, o que é rigorosamente o mesmo que proibir a música funk, a capoeira, o bate-bola ou o candomblé, muito embora ainda seja demasiadamente raro, mesmo por parte de uma militância popular, o reconhecimento de que a piXação, ou nosso Xarpi carioca, é cultura popular, é patrimônio da nossa juventude, da nossa cidade. É isso que eu, de forma um tanto solitária, defendo.

Pichação pode ser considerada como vandalismo, certo?

Pode, mas para quem quer se aventurar a pensar a vida, esses refúgios do certo e do errado, do bem e do mal, enquanto categorias que encerram a reflexão e portanto interrompem o dinamismo vital, em nada auxiliam nem na tarefa de pensar possíveis compreensões e menos ainda na fomentação de uma vida plena e justa. Por isso, ofereço aqui uma outra concepção de vandalismo, entendendo por este, toda energia que saturada de contenções, retoma seu vitalismo dinâmico “original”, e sendo a figura da cerca murada, uma imagem eloquente quanto à segurança não apenas física, mas também “intelectual” e “subjetiva”, ou seja, aproximando metaforicamente a cerca privada das compreensões limitadas, enquanto espaço de imobilidade, o vandalismo pode ser a fissura provocada pela saturação da vida enclausurada, o surgir do novidadeiro. Nesse sentido, a piXação, o Xarpi, parece-me desafiar aquela que a meu ver foi a mais bem erguida propriedade na consolidação do homem racional moderno, a posse do significado único. Não por acaso, diante de escritos tão ilegais quanto, mas que oferecem significados mais imediatamente expressos, como os tantos “só jesus expulsa os demônios”, “vendo/compro carros”, “joga-se búzios”, não há tanta reação social no seu combate, quanto acontece com a piXação e com o piXador que, no lugar de nos oferecer uma comunicação clara, nos oferece o enigma de “comunicar sem comunicar”, de “escrever em ruptura com a linguagem”, como nos diz Blanchot, de retirar da fundamentação base da comunicação, a consciência dirigida. A meu ver, é por se tratar mais de uma “presença” incabível em qualquer conceito ou explicação, do que de um “sentido” claramente expresso, é que a piXação é vândala, fissurando jovialmente o adultismo responsável e consciente que há tanto tempo coloniza a vitalidade da vida.

 

O documentário já foi rodado fora do país. Como foi a repercussão?

Em verdade, como já é praxe com todas as estéticas potencialmente germinadas de nossos solos periferizados, elas, e com a piXação não é diferente, geralmente acabam encontrando fora do país, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos e mesmo no restante da América Latina (lugares pelos quais o filme passou), uma recepção menos judicativa, até porque, como disse anteriormente, por lá, essa gramática que associou o Graffiti a algo “do bem” e a piXação à parte satânica da arte urbana, é uma herança genuinamente brasileira, mais uma entre tantas de nossa vigorosa máquina gramatical de justificativa do extermínio e escravização subjetiva e estética da população periferizada, negra, sobre a qual se ergue nossa nação. Hoje, eu mesmo já recebo uma série de mensagens, e-mails, de estrangeiros interessados em conhecer a piXação, que vem ao Brasil para conhecer exclusivamente piXadores e entender um pouco mais desse fenômeno. Eu diria que, como linguagem coletiva, como cultura popular, a piXação já vem cada vez mais atraindo o interesse de pessoas das mais diversas áreas, da sociologia ao design, da filosofia à criminologia, como uma espécie de potência que talvez só possa ter virado o que virou porque atravessada por todas essas peculiares gingas que nossa subjetividade marginalizada, sempre em extermínio, inventa para, da miséria ofertar fartura. A piXação é pura fartura!

Quais são seus próximos projetos, Gustavo?

Em verdade, a piXação, assim como a vida, não vive enclausurada em si mesmo, circula. Então, hoje estou mais interessado em trabalhar com a vida circulante do que com uma prática específica. Por isso, inclusive na minha tese recentemente defendida, privilegiei essa vida jovem-suburbio-favela que transita com muita intimidade entre o Xarpi, as torcidas organizadas de futebol, os bate-bolas e os bailes funks de corredor (aqueles de galera, de porrada, Lado A x Lado B que muita gente acha que é coisa superada), ou seja, produções estéticas que, apesar de movimentarem um imenso número de jovens pela cidade, seguem como que numa zona de “tabu”, interditadas a qualquer compreensão “positiva”. É aí que venho trabalhando, não sozinho, mas com uma galera que está em sintonia fina com essa posição. Hoje, junto com Samuel Lima, Diana Paiva e sua galera da Fortaleceu Produções, estamos iniciando um próximo documentário sobre os “Guerreiros do Corredor”, conversando com funkeiros que guardam uma nostalgia saudável, uma imensa rede de amizades, fundadas na época de ouro desses baile de corredor, onde uma porrada, um soco, uma esquiva, poderia ter muito mais a ver com um abraço do que com uma vontade de aniquilamento, onde um cenário de batalha corporal, entremeado por complexas e sutis éticas, dispara elos, irmandades, saudades, que a mentalidade burguesa, cega na sua estreita lógica binária de antagonismos, só vê o que sabe ver – “monstruosidades”, “desumanizações”. Queremos pensar, com esse filme, na ética da camaradagem, na figura descolonizadora do “mano a mano”, na suspensão temporária das hierarquias opressoras pelo “fazer na mão” e escapar da assustada e inócua gramática burguesa que, ignorante no milenar vinculo entre a camaradagem e a guerra honesta honrosa, só sabe envernizar suas efetivas políticas de extermínio tirando o corpo fora, com uma “vontade de paz”. Cabe lembrar que todo genocídio é sempre acompanhado de um projeto de “mundo melhor”, de “paz”.

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