Imprensa alternativa volta a circular no Acre com Varadouro

Quarenta e seis anos após a primeira edição, volta a circular, agora pela internet e redes sociais, o Varadouro, que circulou impresso no Acre entre 1977 e 1981, combatendo a ditadura militar e seus efeitos na região amazônica, pautando o que hoje chamamos de jornalismo socioambiental.

Apesar das diferenças de épocas e tecnologias jornalísticas, as pautas não mudaram: problemas ecológicos, como o desmatamento; a chamada “bovinização” do Acre, substituindo a sobrevivência sustentável na floresta pela criação de gado; exploração de seringueiros e outros trabalhadores; crescimento de uma extrema direita reacionária.

O novo veículo é uma iniciativa de jornalistas locais, inconformados com a cobertura da região amazônica, que consideram esporádica, geralmente diante de alguma tragédia. Estão incomodados com repórteres que desconhecem ou distorcem fatos. E com financiamentos para coberturas jornalísticas sobre a Amazônia feitas por profissionais de fora.

“Temos que usar mão de obra local. Nós temos jovens qualificados, talentosos, que podem fazer esse trabalho. Nós estamos em nosso lugar de fala, como costumam dizer. Nós somos protagonistas, nós somos da Amazônia, nós somos do Acre”, resume Fábio Pontes, jornalista à frente da retomada de Varadouro.

A principal dificuldade da retomada? Recursos financeiros. “Minha meta é estar com o site no ar até o final de junho. Meu amigo programador está colaborando. Fiz um fiado com ele”, brinca Pontes. Por enquanto, estão em seu blog as primeiras reportagens e artigos de Varadouro.

Fábio Pontes, fã do Varadouro original, relança o jornal na internet. FOTOS: Ramon Aquim

Muitos motivos para Varadouro voltar

O acreano Fábio Pontes é jornalista profissional nascido e criado em Rio Branco. Especializou-se em cobertura de povos indígenas, comunidades extrativistas, ribeirinhas, mudanças climáticas, narcotráfico, migrações. Passou pelo site Amazônia Real e vinha escrevendo para veículos de fora da Amazônia.

No começo deste ano, foi até a casa de um dos criadores da publicação original e pediu “a benção” para refundar Varadouro. A resposta de Elson Martins? “Varadouro nunca saiu da minha cabeça, sempre tive vontade de voltar com essa nova linguagem, de internet”, diz o jornalista de 83 anos.

“Estou confiando muito no que os jovens podem fazer. Minha expectativa está em cima deles. A memória está fresquinha. Eu sou mais amazônida do que nunca. Ainda hoje tem agentes da justiça que não tem nenhum compromisso com o Acre. Os fazendeiros continuam pressionando. São quase os mesmos personagens, vamos ter que ajudar os seringueiros a entenderem seus direitos, por exemplo”.

Elson Martin, 83 anos, da equipe original de Varadouro, feliz com a volta do jornal. FOTO: Ramon Aquim

Jornalismo local, urbano e rural

Um dos estereótipos da cobertura da imprensa sobre a Amazônia é negligenciar problemas da vida urbana. “Hoje as periferias estão sob domínio das facções criminosas, tipo PCC e Comando Vermelho, então precisa mostrar que não é só o criminoso da floresta, o madeireiro, o garimpeiro, o grileiro. Há um conjunto de fatores sociais urbanos”, analisa Fábio Pontes.

O crescimento da extrema direita no Acre é outro motivo para retomada de Varadouro, além “do aumento do crime e do desinteresse da comunidade em questões ambientais. Por isso, um veículo local que fale para a população local”, aposta o jovem jornalista.

Élson Martins, tão empolgado quanto no lançamento do Varadouro original, vai na mesma linha, editorial neste caso: “Queremos falar da periferia do Acre, de quem está comendo mal, morando mal, sem saúde. Os ricos estão amealhando fortuna, e quando chega o inverno e a lama, eles vão para São Paulo e para Europa gozar a vida. A luta continua”.

Fábio Pontes e Elson Martins no Parque Capitão Ciriaco, Acre. FOTO: Ramon Aquim

Um jornal que não poderia ter faltado

O Acre tem uma história pioneira na defesa da floresta com nomes como Wilson Pinheiro, Marina Silva e Chico Mendes, que deu a primeira entrevista à imprensa no Varadouro original. O jornal foi o único do Acre a integrar a geração identificada como jornalismo alternativo, marginal, nanico, e se apresentava como “um jornal das selvas”.

Trata-se do movimento histórico de imprensa caracterizado por uma enxurrada de publicações combatendo a ditadura militar. O pesquisador Bernardo Kucinski lista 150 jornais e revistas, das mais diversas linhas editoriais, cujo ponto em comum era combater a ditadura.

Nesse contexto, Varadouro foi pioneiro na pauta socioambiental, imprimiu 24 edições e estava conectado nacionalmente à rede de imprensa alternativa. Seus cerca de 7 mil exemplares mais ou menos mensais – em geral, mais – eram vendidos em Rio Branco e em diversas cidades brasileiras.

“O jornal criou essa marca, de um jornalismo de resistência, subversivo, fazia jornalismo socioambiental na década de setenta. É um jornal que inspirou e inspira as novas gerações, eu sou um deles”, diz Fábio Pontes.

Capa do Varadouro de 6 de dezembro de 1977.

Uma rede de jornalismo alternativo driblando a ditadura

Varadouro não era vendido em bancas. A igreja católica comprava mil exemplares para distribuir nas Comunidades Eclesiais de Base. Alguém da redação juntava desocupados em Rio Branco e os colocava para vender Varadouro nas ruas. E, tão importante quanto circular no Acre, a redação enviava e recebia jornais alternativos brasileiros, fortalecendo o movimento de imprensa combativa.

Havia uma rede de recebimento, venda e distribuição de jornais contrários à ditadura. O Varadouro enviava 200 exemplares para o Rio de Janeiro, ao pessoal do Pasquim, a publicação alternativa de maior repercussão. Pacotes com 300 cópias chegavam a Belo Horizonte, São Paulo e Brasília. Para Campinas, interior de São Paulo, a cota era de 200 jornais. Para Teresina, 50.

Chico Mendes, entre as atividades de mobilização sindical, foi representante do jornal Movimento no Acre, outro veículo de imprensa alternativa que, publicado em São Paulo, está entre os mais importantes da época.

Élson Martins lembra que “rapidinho acabava o jornal, chegava a todas as capitais do Brasil. A rede alternativa de jornalismo funcionava muito bem. Eles faziam questão de vender o Varadouro e mandar o dinheiro de volta pra gente”.

Capa do Varadouro de 7 de fevereiro de 1978.

A imprensa alternativa no Acre durante a ditadura

Um dos principais efeitos nefastos do regime militar no Acre foi atrair compradores de imensas quantidades de terra. Nelas havia seringueiros e outros trabalhadores. Os latifundiários derrubam a mata e plantam grama para gado. É a “bovinização” do Acre, segundo Élson Martins.

Ele retornou ao seu estado de origem em 1975, como correspondente de O Estado de S. Paulo, tendo passado por outras publicações. Sua pauta era cobrir os conflitos entre seringueiros e os novos donos de terras. Mas ele queria mais, sonhava com um jornal produzido no Acre, tratando dos problemas locais.

Assim como ocorria no Brasil inteiro, jornalistas e ativistas se reuniam para criar publicações. O Varadouro começou assim. Houve reuniões, articulações, discussões, até a primeira edição sair em 1º de maio de 1977.

Capa Varadouro 22 de junho de 1981.

Aventura jornalística fazendo cobertura ecológica

Para imprimir o primeiro número de Varadouro, 200 quilos de chumbo foram comprados em São Paulo. Eles serviram para fazer os moldes das letras usadas na máquina de impressão, o linotipo.

A produção do jornal era uma saga. Ele vinha impresso, mas não dobrado. Jornalistas e amigos passavam madrugadas dobrando folhas, antes do Varadouro ser distribuído. “Até índio dobrou papel. Nessa dificuldade é que se moldou o jornal, no meio de um conflito doido”, relembra Élcio.

Com problemas para impressão em Rio Branco, o jornal foi impresso em diversas capitais como Manaus, Belém, Rio de Janeiro e São Paulo, logística inimaginável até os dias de hoje. Ela só era possível por causa da rede de imprensa alternativa. As publicações se ajudavam.

Henfil enviou desenho da Graúna ao Varadouro março de 1978

Certa vez, a redação do Pasquim enviou 200 livros de sua editora, Codecri, no Rio de Janeiro, para que os jornalistas de Varadouro vendessem e gerassem renda. “Por isso que duramos quatro anos. A gente acabou fazendo um jornal artesanal. E, como não tinha muita gente formada em jornalismo, conseguimos aquela linguagem”, analisa Elson.

Na nova versão, virtual, não é preciso dobrar jornais, mas continua sendo indispensável se desdobrar. Élcio Martins faz questão de lembrar outro fato que não muda: “Os temas ecológicos no jornalismo começaram aqui”. Nada mais justo que continuem.

Marcos Zibordi

@mzibordi

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

 

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