Há mais de 30 anos, “tia Ana” educa na periferia de João Pessoa

Crédito: Arquivo pessoal

A história da educação para a população pobre no Brasil é marcada por desigualdades e desafios, mas também por esforços que aumentam e melhoram a qualidade do ensino para a população. Uma dessas ações heroicas é desenvolvida por Ana Maria da Silva Carneiro, 57 anos, mais conhecida como “Tia Ana”, moradora do bairro São José, periferia de João Pessoa, Paraíba.

A antiga Favela Beira Rio, hoje conhecida como São José, fica localizada na zona Leste da capital paraibana, ao lado bairro de Manaíra, onde reside grande parte da classe média alta da região.

A população do São José é de aproximadamente 13 mil habitantes. Mesmo tento o título de bairro desde 1987, os problemas estruturais, como saneamento básico e falta de espaços de convivência social são alguns dos problemas enfrentados pelas moradoras e moradores da ocupação até hoje.

Tia Ana é uma mulher preta, aposentada e formada em Contabilidade. Há mais de 30 anos oferece reforço escolar gratuito, acreditando na educação como ferramenta para a emancipação social.

“Educar é considerado um ato emancipatório porque ajuda a libertar as pessoas da submissão, da opressão, da precariedade do sistema e da falta de oportunidades”.

Ela continua: “Através da educação as pessoas adquirem conhecimentos, habilidades e valores que as tornam mais capazes de compreender o mundo ao seu redor, tomar decisões informadas e agir de forma autônoma”.

A casa escola ou escola casa

Segundo Tia Ana, a relação com o ensino começou nas brincadeiras com as crianças nas ruas da comunidade, com folhas de cadernos usados, no década de 1980. Anos mais tarde ela decidiu fazer o magistério e deu início à trajetória na educação dentro da comunidade. Em 1986, era monitora na Creche Comunitária Criança Feliz.

As crianças ficavam no local em tempo integral para que as mães da comunidade fossem trabalhar, mas não recebiam reforço escolar. Enquanto isso, Ana e as colegas foram percebendo a necessidade de alfabetização das filhas e filhos das trabalhadoras.

“Em 1987 eu vi a necessidade de criar uma escolinha na minha própria casa para ampliar a ação para outras as crianças e adolescentes com dificuldade de ler e escrever. A sala de casa virou uma sala de aula e me formei pedagoga”.

Ela deu o nome de Alegria do Saber ao local, atendendo entre 10 e 15 crianças. O foco era enfrentar as dificuldades de ler e escrever. Muitas alunas e alunos estavam em situação de muita vulnerabilidade. O trabalho era voluntario e, quando alguma família podia ofertar alguma ajuda simbólica, era revertida em material para uso na própria escolinha.

Mesmo com limitações de material, espaço e até mesmo de recursos para lanches, a missão de ensinar rompeu a barreira do tempo. Com ajuda de alguns voluntários, o legado da educação tem se perpetuado e ganhou visibilidade em outras comunidades.

Aposentada há três anos, Tia Ana resolveu retornar de forma ainda mais ativa as atividades escolares em sua residência. Oferece aulas de reforço focando em leitura, escrita e desenvolvimento de habilidades em matemática.

Aposentada, Tia Ana pode se dedicar ainda mais ao reforço escolar.

Ampliando ações

Há 2 anos, graças ao grande êxito de suas ações, Tia Ana foi convidada pela Associação Unificada dos Moradores do Bairro São José (AUMBSJ) e pelo Centro Educativo Hannes Mueller para desenvolver as atividades do reforço no espaço físico da Associação. Assim, ampliou o número de crianças atendidas no turnos da manhã e da tarde. São aproximadamente 20 crianças.

O espaço é um local que permite o desenvolvimento da autoconfiança e autoestima, fundamental para o bem-estar emocional e a realização pessoal das crianças assistidas pelo projeto, assim como para seus familiares.

De acordo com o relato da moradora Cristina, “falar da professora Ana não é difícil, ela é muito dedicada, responsável, humana e, acima de tudo, comprometida com o seu trabalho. O reforço é impar no bairro São José, os alunos aprendem também questões sociais.” Os elogios continuam, lembrando de um período difícil enfrentado na pandemia.

“Apesar de ser mãe, avó, filha, esposa e passando por limitações e dificuldades devido à perda de entes queridos para o vírus da covid-19, ela nunca deixou de fazer seu trabalho com maestria e excelência. Eu agradeço demais o que ela fez com meu neto Pedro Bruno.”

O referido neto não tinha bom relacionamento com os professores na escola, mas Tia Ana utiliza recursos da psicopedagogia, que auxiliam no aprendizado das demais crianças, “contribuindo para que elas evoluam não só na questão educacional, como também social e cultural”, completa a avó.

“Acolher e ensinar com amor, com informações, motivação, ser a tia, a professora, a mãe, a que ouve, que dá bronca, a que aconselha… nesse processo a gente também aprende e também promove um interesse que está diretamente ligado aos esforços e oportunidades que a educação transformadora oportuniza”, resume Tia Ana.

De acordo com Ana Maria, algumas das crianças e adolescentes que passaram pela escola comunitária concluíram o ensino superior e estão atuando profissionalmente em diversas áreas. Entre elas, há também quem tenha enveredado pela pedagogia.

A educação do Brasil

Com o a separação de Brasil e Portugal, a elite continuou sendo privilegiada em detrimento da maioria da população. Trabalhadores e trabalhadoras livres e pobres continuaram sem acesso à educação básica.

No século 20, com a criação das escolas públicas e a implementação de algumas políticas para a melhora da qualidade da educação, começa, lentamente, a democratização do ensino no Brasil.

Porém, cabe salientar que o Estado que propõe metas para a resolver os desafios que permeavam a escolarização é o mesmo que criou leis como exemplo a Lei nº 1, de 14 de janeiro de 1837, que determinava este absurdo:

“São proibidos de frequentar as escolas públicas:

Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas.

Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”.

Esse é só um pequeno e aterrorizante exemplo que escancara a estrutura de segregação que foi mantida por décadas anos no Brasil, sendo questionada a partir da luta do movimento negro e de políticas raciais, como os sistemas de cotas.

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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