Favelas e periferias unidas são mais fortes

Encontro da Faferj reuniu diversas lideranças de diferentes favelas. (Créditos: Charles Monteiro / ANF)

Moradores de diferentes comunidades se organizam para garantir direitos durante a intervenção

Quando foi anunciada a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, no dia 16 de fevereiro, pelo presidente Michel Temer, imediatamente as favelas se mobilizaram. Prevendo uma possível violação dos direitos humanos pelo Exército em ação conjunta com os policiais militares, as organizações da sociedade civil, ativistas e populares, além das federações e associações de moradores de favelas e periferias, se organizaram e promoveram encontros, a fim de planejarem ações de esclarecimento ao povo sobre a intervenção e lutarem pela garantia dos direitos.

A Federação das Associações das Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) mobilizou seu conselho no dia seguinte ao anúncio de Temer e, no dia 20 de fevereiro, realizou um encontro que reuniu mais de 100 pessoas em sua sede, no Centro do Rio, unindo diversas favelas para discutirem possibilidades de diálogo e proporem soluções menos ostensivas e uma intervenção social.

“Quando foi anunciada a intervenção, ficamos muito preocupados. Recebi uma ligação, me pedindo para fazer alguma coisa, porque desta vez a situação era pior. Então, no dia seguinte fizemos a primeira reunião”, contou o presidente da Faferj, Rossino Castro, durante o encontro.

Na mesma noite, um pouco mais tarde, ocorreu o Fórum Cívico de Segurança, no Circo Crescer e Viver, na Cidade Nova, que também teve a participação popular e de organizações do Terceiro Setor.

A Frente Brasil Popular (FBP) e o Coletivo de ex-integrantes da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-RJ), com apoio da Caixa de Assistência dos Advogados do Estado do Rio de Janeiro (Caarj), reuniram lideranças de favelas, advogados e advogadas populares, organizações que atuam no tema sobre a intervenção, para criarem mecanismos unitários contra a situação, surgindo a proposta de criar a Comissão Popular da Verdade.

Esses e outros encontros foram surgindo com a proposta de esclarecimento à população, acompanhamento das intervenções e garantia de que os direitos não serão violados.

Segurança ou insegurança?

Vila Kennedy, Vila Aliança e Coreia foram as primeiras comunidades em que as forças armadas intervieram. Segundo os militares, a primeira incursão não fazia parte da intervenção federal e consistia apenas em busca e apreensão de suspeitos. Mesmo assim, no dia 23 de fevereiro, moradores da Vila Kennedy, lamentavelmente, vivenciaram um dos casos mais contestados até agora, o “fichamento” feito pelo Exército. Militares fotografaram com celulares os rostos dos moradores com a identidade em mãos para averiguar uma possível ficha criminal. Esta ação foi duramente criticada pela Defensoria Pública, pela Organização dos Advogados do Brasil e pelos defensores dos direitos humanos.

“A maneira como eles abordaram foi de um modo ‘diferente’. Porque quando você sai de casa, não se espera que vão nos abordar, que vão nos parar pra pedir documento, olhar o seu carro, olhar a sua mochila, saber pra onde você tá indo e, em alguns casos, você não espera que alguém vá tirar uma foto sua com a identidade na mão”, conta um morador de Vila Kennedy, que pediu pra não ser identificado.

No dia 03 de março, pela segunda vez em Vila Kennedy, mas agora como uma ação da intervenção federal, as forças militares acamparam em um campo de várzea na comunidade, como na primeira vez. Vários tanques e veículos blindados do Exército tornavam a região um ambiente hostil e de guerra. O tráfico se ausenta quando o Exército aparece. Não há troca de tiros. Quando a operação acaba, o tráfico retoma seu ponto e tudo volta a ser como era antes


Favelas e periferias unidas são mais fortes_Fórum Cívico_Crédito Charles Monteiro ANF
O que é a intervenção?

A intervenção federal é um procedimento previsto nos artigos 34 e 36 do capítulo VI da Constituição. Uma medida excepcional em que o Governo Federal suspende, temporariamente, as autonomias dos Estados, Distrito Federal e Municípios para manter a integridade do território, reorganizar as finanças de uma unidade federativa ou repelir uma intervenção estrangeira. Em situações “normais”, o Governo não pode interferir nessas autonomias, somente em situações excepcionais, como “grave o comprometimento da ordem pública” – caso do Rio de Janeiro.

O presidente da República, por iniciativa própria ou por solicitação do Poder Legislativo ou por alguma instância superior do Judiciário é quem autoriza a intervenção.

O decreto pode afastar autoridades e nomear um interventor. O general do Exército Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste, foi escolhido para assumir o cargo da atual intervenção. Mas o governador Luiz Fernando Pezão continua em seu cargo.

O decreto ainda precisa especificar a amplitude, as condições de execução e o prazo. A intervenção atual, no Rio de Janeiro, está prevista até o dia 31 de dezembro.

Amplificar as vozes

O jornal A Voz da Favela procurou ouvir o que pensam os moradores e moradoras de diferentes favelas sobre a intervenção. Alguns não quiseram se identificar. Confira.

“Não levamos muita fé, porque eles chegam de manhã e à noite vão embora. Pra gente é mais um espetáculo pra mídia.” L., moradora da Vila Kennedy.

“Eu me senti incomodado, é claro. Mas o tráfico incomoda, também. Eu não fui muito impactado, mas teve muita gente sofrendo pela maneira invasiva de eles abordarem. Eu acho que isso tudo é desnecessário. Vai dar um choque de ordem agora? Sim, provavelmente. Mas e depois? Daqui a pouco? Vai ser igual a UPP? Voltaremos para o mesmo ponto de agora. Isso acaba sendo oportunidade para aproveitadores, políticos.” Vinícius Pierre, morador de Vila Kennedy.

“Não adianta você intervir nas favelas quando o verdadeiro problema tá na bancada do governo. O trabalho da repressão nas favelas é pra manter o modus operandi de controlar essa massa. Não podemos nos enganar de que essa estratégia política é pra combater o tráfico, porque se fosse começaria investigando os militares que vendem arma para os soldados do morro.” Tarcisio Lima, morador de Manguinhos.

“Eu percebo que isso [a intervenção] gera um medo, uma insegurança em todos os moradores. Eles precisam estar atentos, se autopoliciando sobre várias coisas. A gente vai tá sempre antenado.” Ana Muza, moradora do Pavão-Pavãozinho e diretora do PPG-Informativo

Publicado na edição de março de 2018 no jornal A Voz da Favela.