Falta de direito à moradia dificulta combate à Covid-19 e preocupa líderes populares de BH

Marlene de Matos - Foto Isabelle Chagas/ANF

Ações de despejo e de reintegração de posse durante a pandemia representam um desgaste a mais na conta de lideranças comunitárias das ocupações de Belo Horizonte, como se constata no caso de Marlene de Matos, de 59 anos, e Maria da Conceição dos Santos, a Zocah, 56, do Conjunto Ubirajara, no bairro Zilah Sposito, em Belo Horizonte. As duas atuam há mais de 30 anos nas lutas por moradia na cidade, sendo referência entre moradores, poder público e movimentos sociais. 

Elas lembram que não há garantia de que as ações de reintegração de posse de diversas ocupações ativas na justiça não sejam executadas durante esse período, como é o caso da Izidora (Rosa Leão, Vitória e Esperança), da Helena Greco e da Vila Nova, na regional Norte, e muitas outras espalhadas pela cidade.

O episódio ocorrido no acampamento Quilombo Campo Grande, em Campo do Meio, no dia 14 de agosto, provou que o próprio poder público põe as famílias em vulnerabiidade, impedindo-as de exercer uma das principais medidas de contenção ao coronavírus, que é o isolamento social. Diante desse cenário, o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) é uma das vozes que têm levantado a bandeira do Despejo Zero, campanha nacional que unifica movimentos sociais e outros apoiadores na luta pelo fim dos despejos durante a crise da Covid-19. É justamente nas lideranças que esses movimentos se estruturam e alcançam os que mais precisam.

“Quem é a sua liderança”?. Assim nos reconhecemos, Marlene de Matos, Maria da Conceição (Zocah) e eu, Isabelle Chagas, jornalista e também moradora de ocupação. Três mulheres de gerações diferentes na luta pelo pedaço de terra que teimosamente chamamos de nosso. No Conjunto Ubirajara, elas conquistaram, há mais de vinte anos, moradia com registro em nome próprio. O que, no entanto, não foi capaz de pará-las: “Enquanto houver família sem casa garantida como a nossa, continuaremos na luta. É um direito básico que todos devem ter”, afirma Zocah

Café da manhã coletivo no Conjunto Ubirajara. Crédito arquivo pessoal

Com uma trajetória que soma mais de 30 anos, foram chamadas de lideranças pela necessidade de ter quem ocupe a linha de frente contra as ações de reintegração de posse, violência policial e descaso do poder público, pois já experimentaram repetidas vezes o despejo que tanto temem, a partir da ocupação Sarandi, onde se conheceram, no início dos anos 1990. Nascida em Belo Horizonte, Marlene de Matos foi retirada da casa onde morava com o filho, no bairro Paquetá, e Zocah, vinda de Nacip Raydan, no interior de Minas Gerais, precisava cuidar sozinha da mãe doente e dois filhos.

A dificuldade de arcar com o aluguel as uniu às 3.600 famílias que compunham o território. Dessas, apenas 122 estão junto com elas hoje, no Conjunto Ubirajara. Algumas foram alocadas em outros bairros, como o Granja de Freitas e o Serra Verde, mas a grande maioria desistiu ou não foi aceita pela prefeitura da época. A falta de documento era o principal motivo que mantinha famílias inteiras debaixo de lona, à deriva do próximo despejo. 

Até conseguirem fincar raiz, o caminho foi longo. Moraram sete anos debaixo de lona, transitando entre diversos territórios à espera de uma resposta do poder público. “É muito triste a gente pedir”, ressalta Marlene ao se lembrar do período em que só conseguiam comer por meio de doações, que não eram garantidas para todos os dias, e chegavam a ficar meses sem tomar banho. Um dos episódios mais graves que as levou a ocupar a prefeitura durante um mês, em 1996, foi o incêndio que destruiu o pouco que tinham. 

“O fogo se espalhou muito rápido, foi todo mundo para a minha casa. Saí arrebentando as barracas para pegar os meninos que estavam sozinhos porque as mães estavam trabalhando. Eu corri tanto que não conseguia nem respirar direito. Não tinha uma gota de água na torneira, precisei passar lama na minha boca”, relembra Zocah.

Maria da Conceição dos Santos, a Zocah- Foto: Isabelle Chagas/ANF

Ao chegarem no Zilah, há 22 anos, encontraram um bairro sem infraestrutura básica, como escola, posto de saúde e acesso a linhas de ônibus, frentes que também encabeçaram, além da luta por moradia, da qual continuam sendo referência. Zocah conta que a ocupação Rosa Leão nasceu na sala onde ocorreu a entrevista para esta matéria. Ali, aconteciam as reuniões com moradores, Ministério Público, as Brigadas Populares e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas.

Foi também central de apoio da Helena Greco, que, em 2015, sofreu uma ação violenta numa tentativa de desapropriação. “Foi nessa época que eu tive um câncer. Não tinha hora para comer, para nada, vivia em função. A polícia jogou 35 barracos no chão, uma tristeza, mas nós subimos tudo de novo. Eu praticamente morava lá. Cheguei a fazer 500, 600 marmitex por dia. Mas eu não paro, pode ser em cima de uma muleta, mas eu vou”, conta Zocah.  

Zocah e Marlene – Foto: Isabelle Chagas ANF

Na pandemia, elas continuam atuando. Marlene, que precisa cuidar da mãe acamada, permanece em casa, sempre ligada ao celular. É pelo Whatsapp que ajuda os moradores a acessarem os serviços remotos do Centro de Referência e Assistência Social (CRAS), articula parcerias para a doação de cestas básicas e mantém todas as redes ativas. Enquanto isso, quem vai a campo é Zocah. Diante de tantas vulnerabilidades e tantos riscos, manter o isolamento social é tarefa quase impossível na periferia. 

“Para você ser liderança comunitária, tem que gostar muito porque você vive para o povo. Toda situação que chega, nós tentamos ajudar, e acabamos sempre nos doando muito e sofrendo junto. E a gente não pode ter medo, não. Ameaças são muitas e constantes, até arma já colocaram na cabeça da Zocah. Nós já pensamos em parar, mas parece que está no sangue. Com essa pandemia, a ameaça de despejo, a troca de benefícios pelo governo, fica tudo pior. A gente sempre vai dar um jeito”, reflete Marlene.

Antes de ir embora, Zocah enfatiza o que as une, e faz o chamado para que não abaixem a guarda: pandemia e eleições, uma soma que pode ainda causar muito mais estragos nas favelas da cidade. 

Dados do Relatório Final do Grupo de Trabalho sobre Direito à Moradia, da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Belo Horizonte publicado em agosto deste ano, mostram que 25% das famílias inscritas no CadÚnico gastam mais de 30% da sua renda com aluguel, o que representa um ônus excessivo para a população mais pobre. 

Nos últimos 20 anos, o número de moradias autoconstruídas em ocupações urbanas ultrapassou aquele produzido pelas políticas habitacionais: 19.802 contra 18.233, respectivamente. E boa parte destas é para abrigar famílias removidas pela própria política, como foi o caso de Marlene e Zocah. A capital mineira conta com 78 mil pessoas sem casa, 17 mil lotes vagos e 60 mil domicílios vazios.

Esta matéria foi produzida com apoio do Fundo de Auxílio Emergencial ao Jornalismo do Google News Initiative: https://newsinitiative.withgoogle.com/intl/pt_br/journalism-emergency-relief-fund/