“Eu nunca deixei que o ‘não’ fosse uma barreira na minha vida”

A inquietação cultural, o pioneirismo e a ousadia são algumas das características de Margareth Menezes, essa soteropolitana da península Itapagipana – que morou em diversas favelas da capital, mas nunca deixou de lado suas origens. Maga, como é carinhosamente chamada, é a primogênita de cinco filhos e sempre teve vocação para as artes. Participou ativamente de iniciativas culturais e sociais e foi pioneira em diversos projetos, inclusive no teatro.

Em entrevista exclusiva, concedida ao Jornal A Voz da Favela, a cantora diz que a vocação é algo que vem embutido em todo ser humano e, em algum momento, as pessoas descobrem. A cantora que sonhava em fazer direito, diz do poder de transformação da arte, elemento que mudou sua história e por meio do qual tenta oportunizar mudança na vida de jovens da periferia, através da ONG Fábrica Cultural e do Mercado Iaô.

Com seus projetos sociais, já transformou a vida de mais de três mil jovens. Margareth narrou fatos da sua trajetória de mais de 30 anos de carreira, do novo CD, que está sendo produzido, com patrocínio do Natura Musical e disse acreditar que estamos vivendo um momento de virada, de transformação cultural imenso e positivo.

Porém, existe uma corrente de conspiração pra não deixar isso acontecer. “É hora do povo se unir e investir em coisas que ajudem a pensar”.

Confira entrevista na íntegra:

AVF: Da onde vem tanta energia, força e vontade de inovar?

MM- Nasci na periferia, em Itapagipe. Morei na Boa Viagem, Alagados e Massaranduba. Conheço as dificuldades de quem vem da periferia.  Mas nunca deixei que o “não” fosse uma barreira pra mim e para as coisas que eu queria pra minha vida. Onde havia o não, eu procurava meu lugar. Eu já ouvi muitos nãos, chorei. Mas, sempre procurei uma saída. Onde tem o não, tem o sim. Passei um tempo sem nenhum espaço, mas criava o meu.  Quando a gente está num beco sem saída, sempre acha uma frestinha de luz. Inventamos ensaios, como “ Maga convida”, “Bahia com H” e os Mascarados, que surgiu com a inspiração de uma peça de teatro baseada no poema Máscara, de Menotti  Del´Picchiia e, sem pretensão, se transformou nesse fenômeno que é a quinta-feira de carnaval. Não concebo a Bahia só ligada à uma raiz. O movimento pop que existe no Brasil começou na Bahia. A música brasileira, inclusive a baiana, é bem humana e pode ser plural.

AVF: Quando nasceu a artista Margareth Menezes?

MM- Tudo aconteceu naturalmente. Estudei no Centro Integrado de Educação Luiz Tarquínio, em Itapagipe, que tinha uma qualidade de ensino excelente e isso foi muito bom. A escola tinha curso de teatro e esportes. Estava na adolescência, período de inquietação, quando a mente pede mais coisas. A escola me proporcionou as ferramentas que precisava. Foi um momento incrível. Me tornei atriz. Depois, despontei pra música. Acho que era minha vocação desde criança. Minha mãe contava que pedi meu primeiro violão aos três anos e aos 15, eu ganhei. Vocação é algo que vem embutido em todo ser humano e, em algum momento, as pessoas descobrem. Quando comecei a fazer sucesso, a primeira coisa que eu pensei foi na responsabilidade. O que eu queria dizer com aquilo? Sou uma pessoa tímida. O que eu tenho pra oferecer de melhor é a minha música. E, em relação à música, sempre procurei representar o melhor da minha terra, do meu país.

AVF: Você sempre foi referência de empoderamento. Preta da periferia, nordestina, que revelou a Bahia para o mundo. Quem te inspira?

MM- A gente que é preto tem que dar moral pras coisas da gente, tem que se fortalecer. Não podemos achar que existe hoje o mesmo bloqueio de antes. É preciso valorizar nossas conquistas. Preto tem seu lugar. Caso contrário, como explicar Beyoncé, Carlinhos Brown, Gilberto Gil, Chico César, Barack Obama e tantos outros?  Temos representatividade. Não vamos desconstruir algo que já conquistamos. Nossa função é nos unirmos. Procurar na democracia coisas que nos fortalecem. Tem gente que não gosta de negros assumindo o poder. Mas não podemos nos limitar. Temos que prosperar, sem que eles vejam. É um momento de fortalecer a autoestima do povo negro. Queremos mais porque merecemos.  Estamos num país onde os bons espaços precisam ser compartilhados. Se a gente disser que não temos espaço, a gente se desqualifica. Teve uma época que o preto não podia vestir vermelho, usar batom de cor escura. O Ilê Ayê surgiu com a proposta de unir pessoas pretas chamando atenção pra nossa luta. Usou nossa história e conquistas como ferramentas para lutar. Foram os blocos afros que nos ajudaram a chegar onde estamos, nos deram voz.

AVF: São 32 anos de carreira. Fazendo uma retrospectiva, qual era sua maior pretensão no início e o que acredita ser seu maior legado?

MM- Ainda tenho muitas pretensões. Não penso em me aposentar, vou morrer cantando. Tenho muito gás e vejo essa potencialidade em mim. Já vivenciei muitas coisas legais, como o sucesso da música Faraó, a turnê ao lado de David Byrne e muitas outras coisas. Eu tive uma sorte grande no começo da minha carreira porque fui apadrinhada por Gilberto Gil e Dominguinhos. Sempre tive movimentos de sorte.  Mas, o momento presente tem uma oportunidade muito incrível. Só em poder  amanhecer a cada dia, já é maravilhoso.  A humanidade está passando por muito sofrimento e a gente precisa pensar nisso. Valorizar o que temos. É bom acordar e se perguntar: o que fazer com a oportunidade de estar vivo? Como posso potencializar a energia boa que existe em mim.  Precisamos reorganizar nossas vidas e relações.

AVF: Como você avalia o atual momento do país?

MM- A gente vê a falta de oportunidade aos jovens. O abandono das políticas públicas e total falta de incentivo à cultura. Estamos vivendo um momento de virada, de transformação cultural imenso e positivo, porém,  existe uma corrente de conspiração pra não deixar isso acontecer. Os conflitos parecem ser incentivados. Mas fazem com que a gente agrida o outro, seja áspera. Isso é muito ruim e temos que lutar contra. As pessoas estão neuróticas, não conseguem discutir um tema sem brigar.  Começam a xingar. Não podemos alimentar isso. Senão, a gente vai fazer o jogo de quem quer o conflito. Temos que ser inteligentes e agir de outra forma pra minar essa energia. Precisamos de calma. Nem sei se eu tenho essa calma porque sou um sangue quente “retado”, mas acho que isso é uma técnica que se aprende.

AVF: Como surgiu a ideia da Fábrica Cultural e Mercado Iaô?

MM- Eu tive a oportunidade e conheço o poder de transformação da arte e da educação. Queria oferecer o mesmo para outras pessoas. Visitei alguns projetos e pensamos em fazer um projeto social.  A Fábrica Cultural é uma ONG. Quando chegamos aqui (na atual sede do mercado Iaô) vi a imagem de Nossa Senhora de Fátima e disse à minha empresária: é aqui.

Mas, como sempre, precisamos lutar pra conquistar o espaço. Primeiro, criamos relação com organizações próximas. Fizemos um convênio com a igreja da Penha e alugamos galpões para proporcionar os cursos a jovens e crianças como: empreendedorismo, corte e costura, o programa jovens aprendizes, etc. Chegamos a ter cinco núcleos, em bairros diferentes e formamos cerca de três a quatro mil jovens. Muitos dos que participaram dos cursos, hoje trabalham com a gente, outros estão pelo mercado e alguns abriram o próprio negócio.  Temos meninas que lançaram marca própria. Só ano passado o espaço passou a ser exclusivamente nosso. Esse ano estamos um São João especial, o Iaô junino, que já é sucesso. O mercado Iaô é um projeto de economia criativa que nasceu do pensamento de trazer vida para Itapagipe . Já são cinco anos. Temos artesanato, gastronomia e a comunidade está unida. Estamos consolidando nosso centro cultural.

A gente que é preto tem que dar moral pras coisas da gente. Temos que nos fortalecer.

* Entrevista publicada no Jornal A Voz da Favela, edição de junho 2019.

Por: Flavio Rosário e Jadson Nascimento