Escravidão nos quilombos é empirismo tendencioso

São cerca de 30 milhões de animais de estimação abandonados nas ruas do Brasil. Gatos em particular são tratados como uma praga, mortos e torturados indiscriminadamente.

Ajudar a cuidar de gatos de rua tem sido minha maneira de lidar com o desamparo ocasional que muitos de nós ativistas sentem. Nem sempre consigo impedir que um policial armado diga a um homem vestido de branco a caminho de um terreiro para deitar no chão com as mãos na cabeça sem motivo algum. Eu não posso sempre impedir um grupo de homens bêbados desesperados para provar suas masculinidades de violar uma mulher trans na rua. Mas uma coisa que posso fazer é limpar os olhos de filhotes para que eles possam ver pela primeira vez.

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Quilombo Quingoma

Este mecanismo pessoal recentemente perdeu a sua eficácia quando a dinâmica no abrigo para gatos revelou uma questão política séria: a cultura escravagista. Não é surpresa, embora a escravidão tenha sido formalmente abolida nas Américas há mais de 100 anos, essa cultura escravista ainda está muito viva. Um exemplo disso é a relação do doador/voluntário.

Quando vou ao abrigo, uma vez por semana, limpo, alimento e dou remédio para gatos. Eu sou uma latina de pele clara, com um emprego e uma casa, então eu sou considerada uma voluntária. Pessoas com recursos no grupo doam um pouco de dinheiro para comprar o que for necessário, e também há almoço para quem está trabalhando.

Durante anos, um jovem negro desabrigado vai lá todos os dias, duas vezes por dia, para limpar, alimentar, medicar e construir casinhas para os gatos. Ele até monitora quem está vindo para abandonar e quem está vindo adotar. Aos meus olhos, ele é o chefe da operação. Para os doadores, no entanto, ele é um empregado preguiçoso.

Quando eu recebo o almoço, é uma doação. Quando ele recebe o almoço, é um salário.

Um dos doadores tinha uma casa abandonada e decidiu permitir que o jovem desabrigado ficasse lá. Este gesto acaba não sendo tão generoso quanto parece. Ele tem a responsabilidade de renovar e manter a casa (que está em más condições), e leva dezenas dos gatos mais vulneráveis para casa com ele para cuidar da noite para o dia. Agora que os doadores lhe oferecem comida e abrigo, eles se sentem ainda mais habilitados a exigir mais trabalho, e o trabalhador é dependente mesmo não recebendo salário.

É difícil não ver a conexão entre essa situação e nossa história colonial. Salvador, como a capital mundial da diáspora africana, é a terra para testemunhar, não o fim, mas o desenvolvimento do colonialismo e sua arraigada supremacia branca. Aqui, muito do que hoje é residência urbana costumava ser Quilombos.

Quilombos eram, e são, altamente organizados, militantes, autônomos, e constituíam grande ameaça para a hegemonía. Hoje, há muito mais de um milhão de quilombolas lutando pelo direito a território em todo o país.

Registros mostram que havia pessoas escravizadas que mantinham relações estáveis com seus mestres e não queriam se juntar aos Quilombos. Alguns afirmam que a abolição da escravidão deixou os “libertos” em piores condições: “desempregados”, desabrigados e desamparados (como alguns podem dizer sobre meu amigo no abrigo de gatos). Quão confiáveis são esses registros? Não muito, já que aqueles que mantinham registros eram os interessados em usá-los para sua vantagem.

“A idéia de que a escravidão no Brasil era em geral mais benigna do que em outras partes do Novo Mundo remonta pelo menos ao século XVIII, e tem despertado extensa controvérsia. As argumentações sobre o tema na literatura em geral têm pouca base empírica e costumam centrar-se no jogo de interesses que estaria associado à difusão daquela interpretação. Vários autores consideraram a tese da benignidade uma mera expressão da ideologia das camadas dominantes no século XIX; sua divulgação, especialmente no exterior, faria parte dos esforços do governo imperial no sentido de disseminar uma imagem amena da escravidão e, com isso, contrapor-se ao movimento abolicionista.” Flávio Rabelo Versiani

Por outro lado, em termos econômicos, não usar “força coercitiva” (ou seja, aqui não tivemos tantos linchamentos quanto nos Estados Unidos) foi uma questão de eficiência, como também acabou sendo a abolição da escravatura. Usar palavras como “ameno” e “benigno” para descrever o deslocamento, a desumanização, o trabalho forçado, o assassinato e a tortura de pessoas negras é considerado apenas empírico quando descrito em termos econômicos. Este, para mim, é um bom exemplo de um núcleo acadêmico problemático.

Hoje, alguns acadêmicos usam esse empirismo tendencioso para argumentar que a resistência contra a escravidão era hipócrita. José de Souza Martins, um dos sociólogos mais famosos do Brasil, afirma que houve escravidão nos Quilombos. Dissociar o termo “escravidão” de “raça” tornou-se sua missão profissional; a supremacia branca não era o problema, segundo ele, sociedades estamentais eram. 
Seu amplo uso do termo “escravidão” pode ser comparado ao uso amplificado do termo “nazista” ao descrever feministas. José Martins diz que, devido à disseminação do “islamismo” na África, os africanos se escravizaram muito mais do que o tráfico de escravizados para as Américas, e que a poligamia islâmica é também uma forma de escravidão. O fato de ele usar o termo “islamista” como sinônimo de “islâmico” fala muito da insensibilidade racial de sua retórica. Mas seu uso de evidências “empíricas” tendenciosas (brancas) para deslegitimar um grupo de resistência organizada da diáspora africana fala ainda mais alto.

Há poucos que negam que havia hierarquia em Quilombos, e que eles e elas usaram violência contra o povo escravizado que escolheu ficar com seus mestres brancos. Temos que entender que eles estavam em guerra, e a decisão de ser complacente transformou-os em inimigos. Tanto assim, que aqueles africanos complacentes eram mandados para os Quilombos como uma frente para derrotar Quilombolas. Esta prática não parou e é perpetuada pela PM até hoje.

A oposição de Zumbi a Ganga Zumba, e a consequente mudança de liderança no Quilombo dos Palmares, simboliza toda a resistência anticolonial porque foi uma recusa a submeter-se às autoridades coloniais e uma declaração de que nenhum africano escravizado estaria livre até que todos estivessem livres. Esta luta ainda não acabou. Ainda há escravidão, deslocamento, encarceramento, genocídio e luta pela demarcação de terras. É importante reconhecer que não escolher um lado, ser complacente, de fato, significa apoiar a hegemonia.