Entrevista exclusiva: João Tancredo, advogado da família de Amarildo

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Há exatos 70 dias o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza foi levado para uma averiguação pelos policiais da UPP da Rocinha, na operação “Paz Armada”. Nunca mais voltou. O que aconteceu com Amarido já ocorreu inúmeras vezes nas favelas do Rio. Mas, em meio a um período de intensos protestos e enfrentamento de pessoas civis contra a Polícia Militar, o caso tornou-se emblemático.  A resposta que se espera da investigação sobre o sumiço de Amarildo não é só por justiça a ele e sua família, mas por todos os outros “Amarildos” que sequer tiveram seus desaparecimentos investigados. A fim de obter novas falas sobre o caso, a ANF realizou uma entrevista exclusiva com João Tancredo, advogado da família de Amarildo.

A investigação, que no início estava sob responsabilidade da 15ª DP,  do delegado Orlando Zaccone, foi encaminhada para a Delegacia de Homicídios em 31 de julho e está, aparentemente, próxima de seu fim. “Eu acho, representando a família, que qualquer conclusão que a Polícia Civil chegue que não seja a de que o Amarildo foi levado pela polícia e desaparecido pela polícia não interessa à família e à sociedade. Todo mundo sabe que foi isso. A nossa expectativa é que agora, nos próximos dias, eles cheguem a essa conclusão”, declarou Tancredo. Para o advogado, não basta punir somente os praças. É preciso ir além e chegar àqueles oficias que geralmente ficam impunes. “A nossa expectativa é que eles concluam com um pouco mais de serenidade, um pouco mais de rapidez o inquérito, que tá dependendo da confecção da perícia de reconstituição. E aí, sim, o inquérito é remetido pela justiça com o indiciamento dos policiais da UPP. Mas não é só dos policiais da UPP pro primeiro escalão não. Tem comandante. Tem o major Edson, que era o comandante da UPP local. [Edson] Sabia, sabia do envolvimento dos policiais nos crimes praticados ali, crimes de tortura, e até temos dúvidas se ele não só sabia como participou. O indiciamento tem que ser um pouco mais amplo do que se costuma fazer”, afirmou.

Apesar de todas as evidências que apontam a culpa do sumiço de Amarildo para a Polícia Militar, houve uma tentativa de justificar o crime cometido contra o ajudante de pedreiro, envolvendo uma suposta relação de Amarildo e sua família com traficantes da Rocinha, acusação feita por Richester Marreiros, ex-delegado adjunto da 15ª DP.  “ [Richester] É um equivocado. Foi um equívoco que ele cometeu, mas você vê um preconceito enorme contra os pobres nessa declaração. É muito comum você criminalizar a vítima. Se você pega a vítima e diz que ela é criminosa, aí você pode legitimar esse ato. Se fosse traficante, seria legítimo o ato de desaparecer com a pessoa? Não importa o que a pessoa tenha feito”, defendeu o advogado, que também falou sobre a hipótese levantada pela polícia de que traficantes mataram Amarildo. “Amarildo nasceu na favela há exatos 43 anos. Então, por Amarildo passaram diversos garotos ligados ao tráfico. Os garotos ligados ao tráfico ou morrem antes dos 18 anos ou quando fazem 18 anos são presos e as cadeias estão cheias de jovens quase todos negros e quase todos pobres. A população carcerária no Brasil tem uma idade média de 25 anos, com uma reincidência muito grande, em torno de 70%, então esse não é o melhor caminho. Nós não estamos seguindo o melhor caminho. E aí negar, com esses fatos,  que Amarildo não conhecia quem trabalha no tráfico é  ser hipócrita, é tapar o sol com a peneira. É claro que ele conhecia. É claro que todo morador da rocinha conhece cada um. O que a família do Amarildo diz, e eu replico uma frase da Bete, esposa dele, é: ‘Se a gente entregar o tráfico a gente morre, se a gente não entregar a gente é desaparecido pela polícia’. Olha a situação que os moradores ficam”.

Alguns moradores da Rocinha relataram abusos de poder por parte dos policiais da UPP local, que segundo algumas acusações, praticavam crimes de tortura na favela. Os relatos reproduzidos por João Tancredo são estarrecedores. “Nós já tínhamos, lá na Rocinha, graves denúncias de torturas das mais abjetas, das mais bárbaras. Pegando os garotos, levando lá pra dentro da UPP, botando saco na cabeça. Molhavam o corpo pra dar choque com aparelho próprio, enfiavam a cabeça e davam descarga no vazo sujo, com detritos. Ameaçavam com cabo de vassoura, colocavam camisinha no cabo de vassoura e ameaçavam os garotos. Isso é a barbárie! Qualquer pessoa que espere um pouco de decência, de democracia, de eficiência de uma polícia não pode admitir isso. Não se pode admitir isso com ninguém, não importa o que a pessoa tenha feito. Essas denúncias eram de abril. Hoje tem um inquérito policial militar pra apurar a responsabilidade de 4 policiais. Mas só os policiais mais diretamente envolvidos”.

Apesar da tensa situação que vive a família de Amarildo, eles continuam morando na Rocinha. Há ainda, claro, o medo de represálias, mas Tancredo defende que a melhor opção é permanecer na favela. “Qualquer reação da polícia eles têm que dizer, têm que denunciar. Um tempo depois, tem uns 15 dias, um garoto estava sentado num lugar chamado 99, lá no alto, e o policial falou: ‘cadê a droga?’. O garoto estava sentado no meio fio e disse: ‘Não tem droga coisa nenhuma, que história é essa? Você é folgado! Vão querer fazer comigo o que fizeram com meu tio Amarildo?’. E o policial respondeu: ‘Você deu sorte, se fosse numa viela à noite, você estava morto’. Se isso não foi ameaça, eu não sei mais o que é ameaça. Isso ele denuncia, vai na delegacia e faz uma ocorrência. Essa é a forma de se defender: se expondo. Não tem outro caminho, porque o programa de testemunhas que nós temos é inexistente, não adianta”.

Mesmo com todos os problemas de ameaças e da dor pelo sumiço de Amarildo, os familiares permanecem unidos na luta por uma resposta. Uma resposta que puna os responsáveis pelo crime e que, apesar de não trazer Amarildo de volta, possa dar à essa família a possibilidade de recomeçar a vida com a consciência de que a justiça foi feita. “Você do alto do preconceito não consegue imaginar que uma família tão pobre tenha tanta consciência e disposição pra lutar pelos seus direitos. Eles são cativantes. É aquele negócio que você diz: ‘Ufa, ainda tem luz no fim do túnel, tem gente ainda que resiste a essas coisas’. É muito barra pesada resistir, é muito difícil. É uma família que sempre reagiu às agressões dos policiais. Eles têm uma capacidade de se indignar e mantiveram isso dentro de tanta desgraça”, finalizou Tancredo.