Doméstica e a carga de preconceitos no limite da escravidão moderna

Foto ilustrativa Doméstica Legal

Esta segunda-feira 27 de abril, Dia Nacional de Valorização das Trabalhadoras Domésticas, expõe a dura realidade da profissão no país com mais empregadas domésticas no mundo. A vida de 6,2 milhões de mulheres é uma luta:

“Eu trabalho de doméstica desde que vim para a capital já faz mais de 30 anos”, conta Elizangela Pereira, de 49 anos e mãe de dois filhos. Sua rotina é dividida entre trabalhar em várias casas por semana e cuidar da família. “Meu marido é caminhoneiro, passa muito tempo viajando e só tem salário quando tem viagem. Então, não posso reclamar que ele tá longe, a vida é apertada de tempo e dinheiro”.

Elizangela sempre trabalhou com limpeza, em empresas ou como diarista e empregada doméstica. Hoje ela está com três casas fixas, duas vezes por semana em cada uma e mais três onde vai quinzenal ou mensalmente.

“Eu nunca tive vergonha do meu trabalho, é um trabalho muito importante para muita gente, se eu não trabalhar os patrões também não conseguem trabalhar. Foram muitas famílias todos esses anos, vi gente desde as fraldas até o casamento, tive patroa que me convidou para formatura, todas me recomendam para irmãs e amigas, fiz muitas amigas durante todos esses anos”.

Mas nem tudo foi fácil, principalmente no início: “Quando saí de Londrina, vim para morar na casa de uma amiga da minha mãe e trabalhar de empregada. Era difícil porque mesmo nos finais de semana eu trabalhava e quase não tinha descanso. O salário era pequeno porque eu morava lá e diziam que eu tinha casa e comida, mas não tinha liberdade para pegar o que quisesse na geladeira ou simplesmente passear nos fins de semana”.

Elizangela diz que mesmo morando fora do trabalho alguns limites ainda são difíceis de traçar: “Às vezes pedem para que eu fique mais meia hora para a criança não ficar sozinha até a mãe chegar, mas esquecem que eu pego ônibus que demora duas horas e meia para chegar na minha casa e posso ajudar minha filha com os meus netos”.

A realidade de Elizangela pode ser a rotina de 6,2 milhões de pessoas que, segundo os dados da pesquisa “Trabalhadores Domésticos no Brasil, 2015” do Instituto Pesquisa e Econômica Aplicada (Ipea), têm como ocupação o serviço doméstico remunerado de variadas formas, como diaristas, babás, jardineiras e cuidadoras. Ao todo, 92% (5,7 milhões) são mulheres, das quais 3,9 milhões são negras.

Ainda segundo o Ipea, empregadas domésticas constituem 47,7% das trabalhadoras informais e são 6% dos registros em carteira no país. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, o Brasil tem o maior número de trabalhadores domésticos no mundo. O relatório feito pela OIT em 2018 também destaca que trabalhadores domésticos são uma das categorias que mais sofrem com condições precárias de trabalho, salários baixos e falta de direitos trabalhistas, mas destaca o grande avanço da categoria com a Emenda Constitucional nº 72, conhecida como PEC das Domésticas, aprovada em 2013 e regulamentada em 2015, pela Lei Complementar nº 150.

Essa lei garante direitos como a jornada semana de 44 horas, salário-família, seguro desemprego, adicional noturno, hora extra, multa por dispensa sem justa causa e FGTS. Mesmo depois de seis anos da regulamentação, o trabalho doméstico ainda não é reconhecido e sofre com falta de garantias.

Maria Rosa é doméstica, de 41 anos e mãe de de três meninas e diz que não sentiu tanta diferença com a PEC aprovada. Muitas das patroas fazem contratos de trabalho de apenas duas vezes por semana para não caracterizar vínculo empregatício e não pagar férias e outros direitos: “Ainda é um trabalho que não é reconhecido nem por quem precisa da gente. Eu ouço de algumas patroas dizer que se a gente exigir muito e tiver muitas regras esse tipo de emprego vai acabar”.

Mas a própria Maria Rosa não acredita que está próximo o fim da profissão de doméstica: “As pessoas não têm como dar conta da casa, da comida, dos trabalhos lá fora, faculdade e quando tem crianças e/ou idosos a situação fica mais difícil ainda, a nossa profissão é essencial e os patrões sabem disso, só não querem reconhecer nos salários e nos direitos”.

Ela não quer que nenhuma das filhas precise trabalhar com isso. “Eu sempre falo paras as minhas meninas que não há vergonha em ser doméstica porque é um trabalho necessário e digno, mas elas precisam estudar para não ter que se sujeitar a isso.” Sua filha mais velha, Luciana Rosa, de 21 anos, é estudante de letras no Centro Universitário Internacional (Uninter) e já trabalhou como doméstica para ajudar a pagar os estudos.

“O problema não é o trabalho em si, e sim o modo como ele é visto pela sociedade. Quando você é trabalhadora doméstica, automaticamente te enxergam apenas como força física e não como uma pessoa que também pensa. A patroa para quem trabalhei se surpreendeu muito quando descobriu que estudava no ensino superior”.

Hoje Luciana é estagiária na Biblioteca Pública do Paraná, mas ainda se interessa pelo tema do trabalho doméstico no Brasil: “Quando entrei para a universidade, através do FIES, comecei a entender as relações sociais por ser bisneta, neta e filha de empregada doméstica, mulher preta e periférica. Quantas mulheres iguais a mim estão nessa situação!”

Ela faz parte de um projeto de pesquisa que estuda a contribuição das mulheres negras para emancipação das mulheres no Brasil, linha de pesquisa do Programa da Pós-Graduação em Sociologia da Uninter. “Entender o trabalho doméstico como um meio emancipador para a trabalhadora e para a empregadora é o primeiro passo de muitos para romper a proximidade (que deveria ser inadmissível) com a escravização e por si só tornar os trabalhos domésticos vistos como qualquer outro emprego”. finaliza.