Discriminação e sexismo: a distância entre a mulher e o Rap como ferramenta de resistência

Mabu
Rapper Mabu Foto: Leo Soares

Março é considerado o mês da mulher em terras ocidentais, o que parece contraditório, pois no decorrer dos séculos na História do Ocidente, desde a antiguidade clássica, as mulheres vêm sofrendo, ininterruptamente, com a discriminação. A data é significativa e rende homenagens, mas no cotidiano, até hoje, as mulheres continuam sendo desrespeitadas.

Estatísticas recentes apontam que no mercado de trabalho no Rio de Janeiro, as mulheres têm empregos menos qualificados do que os homens, menor espaço de decisões e exercício do poder, ganham menos do que os homens, mesmo que tenham a média de um ano a mais de estudo do que os homens. Além disso, crimes como lesão corporal dolosa, ameaça, atentado ao pudor, estupro, homicídio doloso e violência doméstica contra as mulheres continuam aumentando no Estado.

Como se não bastasse, a exploração de estereótipos femininos pela indústria alimenta um sistema de má-educação, e, com isso, mulheres com mais idade, gordinhas e imigrantes, por exemplo, encontram muita dificuldade em lidar com os padrões ditados no Sudeste.

Desde a infância, aprendemos que há uma divisão entre o que deve ser exclusivo dos meninos ou das meninas. O problema é que as coisas feitas para os meninos exprimem uma liberdade maior: carrinhos, aviõezinhos, roupas que em geral visam mais o conforto do que a beleza, comportamentos etc. Os desejos femininos desde a infância vão sendo reprimidos, e quando um menino gosta de “coisas de meninas” ele geralmente é diminuído por isso.

Assim, o interesse dos homens pelo verdadeiro universo feminino é reduzido, e não me refiro aqui a catálogos de roupas íntimas, mas à intimidade sem o viés erótico que vem sendo exaltado pelas mídias de massa em nosso país como a maior qualidade das mulheres brasileiras. O que realmente as mulheres esperam, sentem, pensam, gostam, essas escolhas não são devidamente avaliadas na comunicação de grande parte das empresas em nosso país, o que reflete um quadro preocupante com relação ao futuro.

Um bom exemplo da descriminação da mulher entre a própria juventude é o Rap, um estilo tradicionalmente associado à clandestinidade e que se estabeleceu na década de 70 em Nova York, em plena luta por igualdade de direitos.

Hoje, o Rap está incorporado no cenário musical brasileiro, vencendo os preconceitos e atingindo o grande público. A cada ano, mais CDs de rap e filmes sobre rap são lançados, popularizando suas vertentes. Entretanto, o número de mulheres que fazem rap é muito menor do que o de homens.

No Rio de Janeiro, podemos observar essa disparidade no fenômeno das Rodas de Rima no Estado, sendo raro ver uma mulher rimando no microfone. A participação das mulheres é muito reduzida nas batalhas de MC’s, para citar só um exemplo, na Roda Cultural do Engenho do Mato, em Niterói, com mais de 30 batalhas realizadas, é um acontecimento inédito. Foi calculada uma média de 150 vagas abertas em batalhas e nenhuma mulher inscrita.

A Liga Feminina de MC’s reúne algumas das poucas que se aventuram nesse universo dominado pelos homens. No circuito das rodas de rima no Estado, contamos nos dedos Bebel du Guetto, Negra Rê, Sistah, Taz Mureb, Lola Sallez, Yasmin Medina, para citar algumas. Ainda assim nem sempre o tema da discriminação é abordado de maneira contundente. Entre quem trata da questão com toda a seriedade que exige, a rapper Mabu apresenta em suas letras a realidade do universo feminino como um todo marcado por machismo e preconceitos.

Verdade é que o Rap tem uma tradição onde as mulheres são tratadas muitas das vezes como objeto, destituídas de uma individualidade. O sexismo é marca predominante em vídeos com mulheres semi-nuas ou enquadradas em um modelo bom para os homens.

Muitos rappers famosos lançam músicas e clipes marcados pela misoginia – a aversão à mulher – ostentando a “aquisição” de beldades com inúmeros símbolos de poder cobiçados na nossa sociedade (carros, jóias, roupas caras, dinheiro etc.). Mas prostituir a mulher é também alimentar um jogo sádico, onde o poder é o que se busca de fato, e não a troca necessária ao desenvolvimento.

Por outro lado, o Rap acaba projetando nas “bitches”, “hoes” e “chicks” as frustrações do próprio rapper derrotado pela indústria. Rico e famoso, sim, porém vencido. Porque o mercado também prostitui o rapper, dominando as suas vontades e necessidades.

Na literatura, a misoginia é um traço estudado e bastante comum, já que praticamente todos os clássicos foram escritos por homens. Infelizmente, ainda hoje, continuamos reproduzindo valores que já deveriam ter sido superados. Muitos adolescentes e jovens continuam reproduzindo esse pensamento extremamente nocivo para a saúde em uma sociedade. De que adiantam homenagens se a discriminação predomina?

Copiar clipes de rap norte-americano ostentando belas mulheres, fazer raps que mantém essa ordem não mostra apenas falta de originalidade, mas também falta de qualidade das relações humanas. Este é um problema que deve ser discutido nas rodas de rima do Estado, em todas elas. Porque, se contextualizarmos o circuito da cultura hip-hop no Rio de Janeiro, teremos na busca pela transformação da realidade um elemento fundamental que motiva todo o movimento. Mas, para mudar, é preciso reagir de forma mais coerente, porque homens dominando mulheres não se parece em nada com resistência. Pelo contrário…

Aline Pereira (Letras – UERJ) é ativista comunitária, produtora e coordenadora do projeto Roda Cultural do Engenho do Mato.