Diário de uma mãe solo

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A morte o levou para dançar na festa fúnebre onde jaziam outros corpos. Mesmo não querendo aceitar, lá no fundo eu esperava que a cova logo fosse se transformar na cama onde seu corpo encontraria repouso. Os amigos disseram que tudo aconteceu na fuga do assalto que não dera certo. No posto que eles foram assaltar havia dois PMs de folga que reagiram disparando suas armas. Meu filho foi o último a ser morto.

Um dia antes ele me disse que precisava de dinheiro para comprar fraldas, leite, Mucilon e outras coisas que minha neta precisava. Tinha só cem reais guardado e o entreguei, mas com a inflação e uma lata de leite custando quinze reais, aquilo não daria para muita coisa.

Aqui na favela ele só tinha a Deus e a mim, o pai me abandonou grávida e sumiu no mundo. Só Deus sabe o quanto sofri. Chorei durante noites em claro, pensando em suicídio, mas seria suicídio coletivo, já que uma vida crescia dentro de mim.  Aquilo foi me dando forças para criá-lo, mesmo que sozinha.
Eu trabalhava como doméstica em General Osório e morava no Jacarezinho, todos os dias caminhava até a estação Maria da Graça pra pegar o metrô lotado até Botafogo, onde eu fazia baldeação para pegar outro metrô até meu destino. Meu patrão, o senhor Cid, era um homem generoso e sua esposa, a Dona Andréa, era uma mulher muito dedicada aos filhos Matheus e Clara. Tive receio de contar sobre a gravidez, eu só tinha dezessete anos e não era legalizada em minha profissão, mas não podia esconder a verdade que logo viria à tona.
Em um sábado à tarde antes do fim do meu expediente, aproveitei a família reunida e contei sobre minha gestação, estava na oitava semana. Para minha surpresa eles não ficaram aborrecidos comigo e não iriam me demitir, pois me consideravam da família e as crianças eram muito apegadas a mim. Dona Andréa até me ajudou a escolher o nome de Davi.

Quando nasceu, fiquei instalada num quartinho do apartamento. Quando ele completou dois anos voltei a morar no Jacarezinho e passei a pagar a vizinha para cuidá-lo. Trabalhava muito para sustentá-lo. Dava tudo que ele pedia só pra impressionar outras “amigas” que também já eram mães. Eu não imaginava o mal que germinava no solo da minha criação. Com o passar do tempo os pedidos aumentaram. Eu fazia bico de costureira nas horas vagas, mas ainda assim não era suficiente para suprir o desejo de calçar um tênis da nike, de vestir uma roupa de marca do meu filho.

Hoje percebo a ausência que faz um pai na criação de uma criança, porque ele começou a se rebelar, querendo gritar comigo e quebrar as coisas em casa. Batia nele, mas me sentia mal por ter que recorrer à violência, então antes de dormir me recolhia em oração à Deus. Davi começou a aparecer com dinheiro em casa e as fofocas que chegaram foi que ele andava trabalhando de vapor na boca e de vez em quando saía pra pista pra roubar, eu então o expulsei de casa.
Quando a Julia nasceu pensei que talvez ele mudaria de opção de vida, mas não foi o suficiente para que ele largasse o crime. O quarto dele ainda está do jeito que o deixou, só levou consigo minha alma, já que uma parte de mim morreu junto com ele e em meio às lágrimas desabafo minha dor e o pior de sentir saudade, é que não irá trazê-lo de volta.
Matéria publicada na edição de junho de 2018 do jornal a Voz da Favela.