Diálogo entre Pescoço e Guilhotina

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Responsabilidades inadiáveis. Nas pastas, uns escritos deslocavam-se, cada qual para sua reunião. Nunca tiveram uma só falta, ou atraso, ainda assim, tinham o costume de se antecipar aos demais líderes.
As questões que ocupavam suas mentes eram também extraordinariamente iguais: constantes intimidações e incursões violentas das regiões onde moravam, expedientes que jamais saíram de suas pautas até onde a memória alcança. Ambos prosseguiam na luta.
Toda vez que a espécie de pacto era rompida, a vida era ameaçada. Haviam muitos exemplos em áreas de conflito como a deles, ocorrendo nesse mesmo ano ininterruptamente.
No entanto, a resistência diante do cansaço ilude.
Entre avanços mínimos e recuos drásticos, as estatísticas aumentavam.
Desde tenra infância, suas vidas já eram marcadas por esse fatalismo. Mais um consenso.
No dia seguinte ao caráter trágico de execução, ocorrido diante de suas retinas, adquiriram sobremaneira disposição para organizações e agitações. Afinal, necessitavam de integridade e respeito.
Um sem-número de batalhas impostas e perdidas. Torturavam-se na incompreensão dos demais. Intensificaram os ânimos, exigiam novas mudanças.
Tornaram-se alvos.
Decididamente, era indispensável que medissem suas exposições. Contentavam-se em dobrar a atenção.
Embora houvessem ameaças constantes, o inconformismo os transformava em fortalezas inspiradoras.
Ainda mais tenazes e combativos, por força desmedida de seus algozes, decidiram em noite anterior, por uma convocação extraordinária dos membros de cada conselho. A revelação para esta manhã seria de repúdio indiscutível as atrocidades infligidas às suas comunidades, seguidas de manifestações para defesa do território, em ação de protesto. Tais cartas, cada uma com sua exigência, seriam de representantes da sociedade organizada, dirigidas às autoridades oficiais do governo vigente.
Antes das duas lideranças chegarem a seus destinos naquela manhã, foram, com diferença de horas, brutalmente assassinadas.
Encontrados os corpos, dias depois, depositados em locais de difícil acesso, não apresentavam sinais de luta. Presumindo-se monitoramento para emboscada.
Absurdamente, houvera nas mortes mais uma sincronia.
A imprensa, hegemônica, mal divulgou. O anúncio oficial do governo, duvidou que pudessem ser respostas à resistência que exerciam. Limitou-se à uma casualidade, apesar das circunstâncias entre as vítimas e ao fato dos materiais escritos terem sido parcialmente destruídos próximos às valas.
Por fim, nada disso encobre essa guerra demorada e indigna.
Apesar de todas as semelhanças e “sutilezas”, desconheciam a batalha um do outro. Nunca houvera um contato sequer entre eles. No entanto, agiam em paralelo: um cacique Ianomâmi, na Amazônia; a outra, líder negra, num complexo de favelas no Rio.
No trecho encontrado de um deles, podia se ler: “…nada escapa à sensatez, de que o verdadeiro projeto de país que a elite branca pretende, é o de constante reedição dos massacres seculares de controle de massas e o extermínio de populações indesejadas. Fazendo do Brasil o país onde os paralelos se cruzam…”

Nota: o Brasil é um dos países que mais mata lideranças entre defensores de direitos humanos e ambientalistas. Um Estado policial é a antessala de um Estado de exceção.