Artigo: Dia do escritor- Que Machado me perdoe!

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Hoje é o dia dos escritores! Parabéns à todas, à todos e à todxs! Mas, de que escritores, estamos falando? Certamente dos autores brancos e sulistas. Nada contra, tenho até conhecidos, que são. Brincadeiras à parte.

Mas, como tudo, ou a maioria das vezes no Brasil, tudo que envolva algum tipo de intelectualidade (popularmente falando, pois tudo envolve algum esforço intelectual), como as ciências, a academia e a literatura são monotemáticas! Tem uma cor apenas – a branca! Não por falta de talento ou disposição nossa. Mas, por falta de oportunidades e espaços!

Não concorda comigo? Fale-me, agora, de cabeça, cinco nomes de escritores, cientistas e acadêmicos pretos. Você conseguiu? Se não conseguiu, não há vergonha alguma nisso. Até pouco tempo, também, não conseguia fazer essa pequena lista.  

Porque embranqueceram por séculos Machado de Assis, que era negro. Um dos maiores autores de língua portuguesa, (talvez, seja o maior, e seguramente, um dos grandes da literatura mundial), Lima Barreto, falavam, que não era branco nem negro – era um mulato. Mulato, que durante séculos e séculos, foi uma espécie de subpreto.

Se o preto já foi (ainda é não oficialmente) uma sub-raça da raça humana, os mulatos (termo racista, pois, remete ao cruzamento de animais diferentes, que geram indivíduos inferiores), era considerados o sub do sub. Então, em vida, Lima teve que travar uma batalha quixotesca, para se publicar, ser reconhecido. E morreu mergulhado na miséria. Não esquecendo que o talento, a genialidade e a força de sua narrativa foram subestimados por décadas no meio acadêmico. Ou seja, também, o Lima Barreto nos foi negado.

Porém, bem pior fora o que fizeram com Carolina Maria de Jesus (autora do Quarto de Despejo), não a embranqueceram ou a “mulatizaram”, simplesmente, a mataram, a apagaram simbolicamente! A morte simbólica causa tantos danos quanto à física, pois nos tira a humanidade, a história, a identidade e a referência, nos tornam oco e sem rumo. Portanto, uma presa fácil a ser controlada e dominada.

Carolina de Jesus é uma poeta e uma autora necessária, e que com simples, nuas e muitas vezes fora dos padrões limitantes da gramática normativa conta com um lirismo único, feroz, gritante e belo algo tão feio, doloroso e homicida como sua própria realidade. A realidade da mulher preta, pobre, mãe de filhos “abandonada” pelos pais de seus filhos, e sobretudo, pelo Estado.

Só tive acesso a sua obra há três, quatro anos atrás. Mais uma coisa entre as centenas, que o racismo tirou-me. Como, também, nunca havia ouvido falar de Lélia Gonzalez, uma intelectual, acadêmica, ativista e militante preta de obra fecunda, rica, forte, de extrema relevância e reverenciada pela própria Angela Davis. Obviamente, que ela foi apagada. Para quê negro, tem que vê que tem capacidade de ser, também, um intelectual?

Abdias do Nascimento grande dramaturgo, artista e político, levado ao esquecimento do grande público. Para quê referências positivas e exitosas, para nós, pretos? Eles queriam, e ainda querem, que nos vejamos como seres naturalmente violentos, preguiçosos e propensos ao crime.

Creio fortemente, que dona Conceição Evaristo não começou a escrever há pouco tempo. Há mais ou menos um decênio não se ouvia falar dessa grande e poderosa escritora! De palavras contundentes, que incomodam e tiram o sono dos donos da Casa Grande, com sua exuberante, poética e terrível escrevivência!

Quando comecei a escrever as minhas primeiras e primárias poesias, e os primeiros rascunhos tímidos de contos e histórias, não tinha ninguém semelhante ou parecido comigo nem na cor, tampouco, na situação física na literatura. Apesar de hoje estar um tanto quanto diferente. Porém, ainda vejo poucas pessoas parecidas comigo no mundo das letras. Menos de 10% dos livros publicados no Brasil são de autores negros.

Não estou fugindo do tema. Hoje, é de fato, um dia de celebração. Mas, para celebrarmos é preciso, que não esqueçamos. Como o personagem Antonio, do longa, Medida Provisória, dirigido por Lázaro Ramos, que é escritor também, disse: “Esse país também é nosso!”  Eu digo a literatura também é nossa! Se não ficamos, no que chamou a autora nigeriana Chimmamanda: Do perigo da história única. Ou seja, história de brancos para brancos, para nos embranquecer. Não estou aqui pregando uma supremacia preta, somente uma equidade na literatura, como almejo, na sociedade.

Não estou aqui de modo algum querendo abolir a literatura (branca) e/ou desmerecer os seus autores, mesmo por que fui influenciado alta e profundamente por nomes (a maior parte, homens), como Jorge Amado, Castro Alves, Cecília Meireles, Mario Quintana, André Vianco, Stephen King e alguns outros. Com certeza, se eu estivesse tido referência minimante semelhante à mim, havia aprendido a falar, a expressar mais cedo os meus sentimentos e emoções de uma maneira mais nítida, profunda e verdadeira, pois, somente um homem negro vai compreender, de fato, que outro homem negro sente. E, muito provavelmente, eu seria mais aceito enquanto escritor, porque figura como eu ia ser mais comum entre as letras.

Mas, voltando para o tema central desse artigo. O dia do escritor. Hoje, devemos celebrar esse operário do imaginário, como falara Rachel de Queiroz, que sem o qual toda sociedade implodiria, por que é através dos poemas, contos, romances, novelas e crônicas e os gerados e derivados destes, que são os filmes, séries e as Novel Graphics (HQ’s – histórias em quadrinhos) todos nós sublimamos as nossas violências, dores, tristezas, frustrações, ódio e outras questões mal resolvidas.

Para a Psicanálise a sublimação é quando colocamos nossa energia pulsional/vital nas artes, nos estudos e atividades desportivas. Sim, ler livros e assistir um filme ou uma série, é uma espécie de catarse também, extravasamos muitas das nossas questões neles! Sem sombras de dúvidas, sem a literatura seríamos muito mais violentos, odientos, cruéis, insensíveis, individualistas e impiedosos.

Mas, a literatura como uma atividade especialmente humana até então, deve ser o mais plural possível, diversa possível como a mesma. Por isso, deve ser de todos e para todos. Não pode ser somente de quem pode pagar uma editora (ainda que pretos. Minoria é claro!), a literatura nasce antes de tudo da vida cotidiana, das ruas, dos becos, das vielas, das favelas, dos morros, por isso, ela, também, é marginal! A literatura marginal tem que ter e merece mais espaço nas ruas, nas casas, nas escolas e nos meios acadêmicos! Autores e autoras talentosos surgem desse nicho pouco visto, pouco ouvido e pouquíssimo valorizado. Eu me considero um autor marginal, não só pela condição física e racial, mas pela minha visão de mundo e de homem, e, sobretudo, de como vejo a literatura, que para mim, é um ato político e de resistência também!

Mas, também é uma expressão de sabedoria e da beleza da vida. E a vida quanto mais diversa é mais bela, poderosa e única, por isso, precisamos urgentemente ler e ver escritoras, escritores, poetas e poetisas, tais como Robson Santos (Kérreu), que escreveu um dos versos mais bonitos e duros, que vi: “A esperança é a última que morre. Mas, é a primeira, que mata.”, Negra Winnie, uma poetisa talentosíssima e contundente, o poeta fomentador da cultura, Perry Rudá, ambos de Lauro de Freitas/BA e as poetisas talentosas e potentes Daiane Souza Silva e Fabrícia de Jesus.           

Para finalizar o artigo vou falar de uma matéria, que assistir esses dias, sobre a Academia Brasileira de Letras (ABL), quase fiquei cego de tanta brancura, se não fosse por Gilberto Gil, certamente, tinha me cegado. A ABL deveria mostrar a sua verdadeira identidade: Academia Branca de Letras. Que Machado, me perdoe… Mas, sempre foi assim. Então, já passou da hora de marginalizarmos e empretecermos a nossa literatura!

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Gilvã Mendes
Casado, pai, homem preto, pessoa com deficiência, socialista, psicólogo, palestrante, educador social. Autor dos livros: Queria brincar de mudar meu destino (2009, Papirus Editora), obra inserida no PNLD (Programa Nacional do Material e do Livro Didático) no ano de 2018, Aqueles malditos olhos azuis (2019, produção independente), O pássaro de duas cabeças (2022, Papirus Editora – selo Guaxinim), Intensos, Louváveis e Ternos Amores em Poemas (2022, produção independente). Atualmente, em fase de publicação do meu 5° livro no formato de Folhetim, com apoio da ANF – Agência Nacional das Favelas: O Presente do Rei – O plebeu, a princesa e a guerreira (escrito em 2010). Também, eu sou poeta desde menino, apaixonado e inquieto!