Delegado confirma saques em casas durante ocupação em morros cariocas

Débora Álvares

Renata Mariz

Ana Elisa Santana

Os desdobramentos da Operação Guilhotina, em que 39 pessoas — entre policiais, ex-agentes e informantes — foram presas na semana passada acusadas de vender armas, proteção e informação a traficantes, somados às declarações do Secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, ao Correio, na sexta-feira, em que ele confirma a presença de policiais corruptos na ocupação do Complexo do Alemão, em novembro, deixaram o delegado federal Allan Dias em uma saia justa. Segundo Dias, responsável pela operação de faxina na corporação do Rio, homens que estiveram na pacificação do complexo de favelas eram apontados como corruptos pelas investigações da Polícia Federal que desencadearam a Operação Guilhotina.

O delegado da PF explicou que os suspeitos não foram substituídos à época porque o envolvimento não havia sido confirmado — “somente no decorrer da operação eles foram descobertos”, disse ontem —, mas admitiu que os casos de abusos contra moradores, denunciados pelo Correio logo após a entrada de policiais nas favelas do Rio, podem ser confirmados como sendo obra desses policiais no decorrer das apurações. “As investigações podem apontar algo. Só vamos saber mais à frente”, disse Dias, para relatar que os inquéritos, por enquanto, apontam “espólio de guerra”, em que os produtos desviados das casas de traficantes eram revendidos a bandidos, realimentando o crime.

A declaração de Allan Dias bate com o que havia dito Beltrame na sexta-feira: “Primeiro fizemos o grande trabalho que estava planejado para lá, já com a garantia de que essas pessoas aqui na frente seriam presas”, dando a entender que a Secretaria de Segurança Pública do estado sabia da condição de parte dos policiais que participaram da ocupação da favela.

Procurada pelo jornal, a assessoria de imprensa do governo do estado afirmou que todas as declarações a respeito da corrupção entre policiais ficam a cargo da Secretaria de Segurança Pública do Rio (SSP-RJ). Giuseppe Vitagliano, corregedor-geral da Corregedoria-Geral Unificada (CGU) do Rio, órgão subordinado à SSP-RJ que colaborou com as investigações, também alega desconhecer a ligação entre a operação e as denúncias da comunidade. “Não posso afirmar que os policiais presos abusaram de moradores, mas que praticaram desvio de conduta”, limitou-se a dizer.

O que o delegado da PF confirma, no entanto, é que a invasão no Alemão serviu, sim, para reunir mais provas contra os policiais sujos. Segundo Dias, os acusados foram monitorados por meio de filmagens e fotografias, em que foi possível provar os desvios de armas, munições e até pertences retirados das casas — mas de acordo com o delegado, apenas casas de traficantes. “Atuamos com ação controlada, uma técnica de investigação que permite a autoridades policiais obter provas na melhor condição possível.” Ele explica ainda que a medida foi necessária para justificar pedidos de prisões preventivas, além de punir os envolvidos com a expulsão de seus cargos.

Não bastassem as filmagens e fotografias, escutas telefônicas gravadas entre os suspeitos também denunciam saques praticados por agentes em casas de traficantes. Em uma das gravações feitas pela Polícia Federal, dois policiais descrevem a corrida no morro: “Disseram que aí virou Serra Pelada… Tem buraco para tudo quanto é lado. Para achar algumas coisas”, disse um dos monitorados pelas investigações.

Embora o delegado federal não confirme com 100% de convicção a ligação entre a corrupção policial e a situação vivida nos morros fluminenses, a Rede de Comunidades contra a Violência, organização não governamental que presta apoio a moradores, recebe semanalmente cerca de 35 denúncias da comunidade contra agentes que deveriam cuidar da segurança. O problema é que nem todos os casos são documentados nas delegacias. Dois meses após a ocupação, a comunidade esbarra na burocracia em registrar ocorrências. “Não se consegue fazer o registro de ameaça, por exemplo, porque os agentes não entendem o que acontece como ameaça. Então denunciamos à CGU e o delegado diz que a ocorrência não vale”, critica Patrícia Oliveira, integrante da entidade.

Segundo o corregedor-geral da CGU, toda denúncia é verificada. No entanto, um empecilho citado é a falta de testemunhas. “Apuramos todas as informações que chegam, mas não conseguimos provar os fatos. Nem os próprios moradores sabem apontar os culpados”, alega Vitagliano.

Buscas em delegacia lacrada

Dois dias após a Operação Guilhotina vir à tona, novas denúncias de corrupção policial levaram o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Allan Turnowski, a ordenar que a Delegacia de Repressão e Combate ao Crime Organizado (Draco) fosse lacrada na noite de domingo. Ontem à tarde, depois que a Controladoria-Geral do órgão fez buscas na unidade, Turnowski apresentou documentos encontrados que, segundo ele, comprovam os indícios de irregularidades. Agentes apreenderam, também, três revólveres, uma pistola e duas espingardas calibre .12 sem registro.

O chefe da Polícia Civil recebeu, durante o fim de semana, a informação de que agentes da Draco receberiam dinheiro para arquivar inquéritos a respeito de fraudes em licitações de empresários e prefeituras do estado. De acordo com Allan Turnowski, foram encontrados dois documentos que apuravam fraudes da prefeitura de Rio das Ostras, na Região dos Lagos do Rio. Um deles foi arquivado apenas dois dias depois da abertura, com a justificativa de “falta de provas”. Os papéis tinham as assinaturas do então delegado responsável pela Draco, Cláudio Ferraz, e de um inspetor.

Em nota enviada pela prefeitura de Rio das Ostras, a procuradoria-geral do município negou que tenha envolvimento com qualquer esquema de corrupção relacionado à Draco. O delegado Cláudio Ferraz afirmou, ao sair do prédio da delegacia, que a varredura não o surpreende. “Estou tomando conhecimento do que está acontecendo para depois, se for o caso, eu prestar declarações. É um constrangimento. Não há a menor dúvida”, disse Ferraz.

Segundo o chefe da Polícia Civil, a vistoria na Draco foi autorizada pelo secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, e as buscas continuarão até que se apurem todas as denúncias.

Moradores: da alegria à tristeza

Os primeiros relatos de abusos foram publicados pelo Correio em 28 de novembro, finalizada a ocupação da Vila Cruzeiro, mas ainda durante a entrada da polícia no Complexo do Alemão. Uma das mais tocantes denúncias, registrada em vídeo, foi a do pastor Ronai Braga, que trabalha como autônomo, pintando e vendendo malhas. Depois de registrar ocorrência na delegacia pelo roubo de R$ 31,5 mil, supostamente levados por policiais civis que invadiram sua casa, depois de arrombarem o portão e a porta, Ronai não continha o desespero. “Não sou contra a instituição e o trabalho que eles fazem (…) Sou contra os maus policiais, que usam a farda para prejudicar gente trabalhadora”, criticou. Ao mostrar comprovantes da origem do dinheiro, como declarações de imposto de renda e um termo recente de rescisão de contrato, ele contou que usaria o valor para dar entrada em um imóvel fora da favela, onde criaria os dois filhos.

Mas Ronai não foi o único morador a se revoltar com o comportamento dos policiais. Cosme Souza dos Santos, porteiro de um prédio no centro do Rio e morador da Rua Rainha, um estreito corredor na Vila Cruzeiro, também registrou ocorrência na delegacia ao chegar do trabalho e encontrar a casa revirada. “Cheguei do trabalho vibrando. Ver a polícia aqui tomando conta, coisa que em 30 anos de favela eu nunca tinha visto, era bom demais. Mas o mocinho virou bandido”, desabafou, à época. Móveis foram destruídos, anéis e relógios da mulher do morador, Sandra, desapareceram, e até as latas de Coca-Cola que Cosme havia deixado na geladeira sumiram. Para tentar evitar novos arrombamentos, o casal colocou um bilhete na porta dirigido aos policiais. Até hoje eles mantêm o pedido de que não arrombem a casa, mas peguem a chave na vizinha.

Fonte: Correio Braziliense