De João Pessoa (PB), Kazuza é símbolo da luta por inclusão na universidade

Eduardo Wanderley Marques, o popular Kazuza, 50 anos, morador do conjunto habitacional José Américo de Almeida, periferia de João Pessoa, Paraíba, é estudante de Pedagogia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), campus de João Pessoa, capital do estado. Mas até chegar ao ensino superior, ele enfrentou muita luta.

Kazuza fez cursinho preparatório para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), através do Pré-ENEM, oferecido pelo Projeto PET- Conexões de Saberes de Acesso e Permanência de Jovens e Adultos de Origem Popular à Universidade-Comunidade.

O PET faz parte de um projeto de extensão universitária da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), coordenado pela professora doutora Suelídia Maria Calaça, vinculado ao MEC desde a década de 1980. Cursinho de origem popular, iniciou suas atividades na comunidade da Maré, no Rio de Janeiro.

Kazuza, apelido de infância, é amante da cultura hip-hop, especificadamente do breaking, a dança que é um dos quatro elementos da cultura de rua. Iniciou seu interesse pelo ensino superior a partir de experiências sociais durante alguns anos trabalhando no ramo cultural.

“Foi através da cultura hip-hop que comecei a criar interesse pelo estudo superior, pois comecei a trabalhar em instituições educacionais ministrando oficinas de dança de rua, e foi em uma dessas instituições que conheci alguns professores que me incentivavam a voltar a estudar. Tinha parado no primeiro ano do ensino médio”.

Ele concluiu a etapa de formação na Escola Estadual Daura Santiago Rangel, pelo EJA– Educação de Jovens e Adultos.

Kazuza mora com os pais, que são idosos. Tem 2 filhos, está desempregado e almeja se profissionalizar na Pedagogia. Ministra algumas oficinas sobre cultura urbana, em centros culturais, rodas de break, e, por conta da dificuldade financeira, às vezes vai andando ou de bicicleta para a UFPB, de segunda a sexta-feira.

Kazuza chegando na UFPB. Quando a bicicleta quebra, ele vai caminhando para a Universidade. FOTO: Arquivo pessoal

O PET na UFPB

Com base no MEC, o PET é regido pelo princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Visa promover a formação ampla e de qualidade acadêmica dos alunos de graduação envolvidos direta e indiretamente no programa, estimulando a fixação de valores que reforcem a cidadania e a consciência social e a melhoria dos cursos de graduação.

A versão implementada pela Universidade Federal da Paraíba conta com um corpo de professores e professoras bolsistas e voluntários. Tem como objetivo desenvolver ações que aproximam o acesso de jovens e adultos de origem popular à universidade.

O cursinho pré-vestibular visa atender prioritariamente negros, indígenas e outras minorias oriundas de diversos contextos e coletivos sociais. Pretende ainda incluir em atividades que promovam a valorização da diversidade étnico-racial e político-cidadão, construção de um diálogo aberto e participativo.

Segundo Alex Figueiredo, professor de Biologia do cursinho, os jovens e adultos assistidos pelo projeto relatam que foram excluídos da escolaridade convencional por questões financeiras, sociais e culturais. Em geral, passaram por diversos episódios de rejeição ao longo de suas vidas, ficando excluídos dos ambientes acadêmicos.

Esse ambiente que potencializa as relações sociais é uma via de mão dupla: professores, bolsistas, voluntários e cursistas não se limitam ao aprendizado técnico-científico. Eles ampliam a abordagem para formação de pessoas capazes de exercer sua liberdade e autonomia diante da realidade social.

Ainda de acordo com o professor de Biologia, estudantes “encontram no cursinho, portanto, um espaço de aprendizado e troca de experiências. Mais de 400 pessoas já foram atendidas. Além das aulas didáticas, também participam de palestras e formação complementar em política e cidadã e direitos humanos.”

Estudantes do Projeto PET participando de palestra no auditório da UFPB. FOTO: Divulgação

Kazuza: símbolo de perseverança e resistência

“Kazuza foi um presente na minha carreira. Sabe aquele educando que toda professora sonha? Que respeita, interage, que traz provocações e te motiva a continuar? Kazuza foi esse estudante. Sempre fez as atividades, solicitava livros, sempre lia e debatia sobre as leituras. Com ele aprendi muito, ele é dono de um conhecimento riquíssimo. Em muitos momentos, foi meu parceiro nas demandas das aulas e um amigo que ouvia e encantava nos sonhos”, afirma Uliana Gomes, professora voluntaria da disciplina de Sociologia.

Conseguir a tão almejada vaga no curso de Pedagogia representou para Kazuza mais um caminho cheio de obstáculos, pois o ingresso no ensino superior não o deu garantias de permanência no curso, seja pela própria dinâmica interna da instituição ou pelas questões pessoais.

Driely Xavier, professora voluntaria da disciplina de Redação, fala que acompanhar o crescimento dos estudantes nesse processo de acesso ao conhecimento é extremamente gratificante. Significa constatar que a educação transforma as pessoas, que dá a elas uma nova visão de mundo, de papel social e de esperança em dias melhores.

Ela reforça que esses processos ajudam a entender a importância de pensar numa educação que esteja voltada a necessidade das pessoas. Trata-se de processo emancipador que acontece de dentro para fora, reconstruindo sonhos, expectativas e realidades. Kazuza é a representação concreta desse processo de acesso ao conhecimento.

Os muitos desafios de Kazuza

Kazuza diz que foi muito difícil entrar na faculdade, principalmente vindo da realidade de onde ele vem, onde a maioria das pessoas não têm expectativas sobre o ensino superior. No máximo, querem terminar o Ensino Médio e concluir um curso técnico para conseguir emprego.

“Eu tentei por longos anos me preparar para o vestibular. Porém, sempre senti que estava longe de conseguir ser aluno de um curso superior. Nesse período, fui várias vezes na UFPB para tentar conseguir uma vaga em algum cursinho, mas nunca consegui, só em 2017 fui selecionado”, comenta Kazuza.

Ele sempre estudou em escola pública. Vivenciou nos anos 80 modelos de ensino conservadores, algo semelhante à realidade criticada por Paulo Freire em seu livro Pedagogia do Oprimido: a famosa educação bancária, um modelo que fez Kazuza desistir da escola por várias anos. Era uma rotina muito repetitiva, pouco ou nada acolhedora.

“Não me adaptei e por muitas vezes me evadi. Tive que abandonar a sala de aula para trabalhar, sempre tive problemas financeiros. Esse fator sempre foi um obstáculo, mas aprendi a superar e usar esse obstáculo como fonte inspiradora, ou seja, tenho que erguer a cabeça e estudar para mudar de realidade”, diz Kazuza.

Agora na Universidade, os desafios são outros: a idade, a carga horária das aulas, a quantidade de conteúdos das disciplinas, a necessidade de manter o Coeficiente de Rendimento Acadêmico (CRA), a falta de alguns equipamentos, como computador pessoal.

Cursinho está com inscrições abertas

A Universidade Federal da Paraíba (UFPB), anteriormente Universidade da Paraíba, é uma instituição de ensino, pesquisa e extensão, vinculada ao Ministério da Educação, com estrutura multi-campi e atuação nas cidades de João Pessoa e e outras cidades.

A Universidade tem sua origem com a criação, em 1934, da primeira escola de nível superior, a Escola de Agronomia do Nordeste, na cidade de Areia, exatamente quando as tendências profissionais da comunidade ainda eram fortemente acentuadas para Medicina, Advocacia ou Sacerdócio. Eram carreiras tradicionais entre famílias da classe dominante rural e compunham as aspirações dos setores de classe média da população.

Em suas dependências, funciona o cursinho pré-vestibular que proporcionou a Kazuza sua entrada na UFPB. Desde 29 de março, no Campus II, em Areia, o Centro de Ciências Agrárias (CCA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) está com inscrições abertas para 160 vagas no curso preparatório ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Também será formada uma lista de espera com 40 candidatos, a serem chamados em caso de desistências.

O projeto é destinado prioritariamente a jovens e adultos de Areia, Remígio e cidades circunvizinhas que estejam cursando ou que concluíram o ensino médio em escolas públicas. Estudantes bolsistas da rede privada também podem participar.

As aulas serão gratuitas e acontecerão diariamente na Central de Aulas (Prédio da Mata), durante o período noturno, das 19 às 22h15.

Para participar do projeto, o estudante deve se inscrever por meio de um formulário eletrônico disponível até o dia 14 de abril.

No mesmo formulário, há um link para a Chamada da Seleção, com todas as orientações.

A relação dos convocados será divulgada em 15 de abril, com as matrículas e o início das aulas previstos para o dia 17 do mesmo mês.

Cássio Silva

@cassio_avlis

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

Gostou da matéria?

Contribuindo na nossa campanha da Benfeitoria você recebe nosso jornal mensalmente em casa e apoia no desenvolvimento dos projetos da ANF.

Basta clicar no link para saber as instruções: Benfeitoria Agência de Notícias das Favelas

Conheça nossas redes sociais:

Instagram: https://www.instagram.com/agenciadenoticiasdasfavelas/

Facebook: https://www.facebook.com/agenciadenoticiasdasfavelas

Twitter: https://twitter.com/noticiasfavelas