Da Chacina da Candelária até hoje, 27 anos de abandono das crianças de rua cariocas

Cruz com os nomes dos oito meninos executados na Chacina da Candelária - Foto da Internet

Nesta quinta-feira, 23, completam-se 27 anos da Chacina da Candelária, execução de 8 meninos de rua em frente à igreja da Candelária, no coração do Rio de Janeiro. Um crime que chocou a cidade e o país e teve repercussão internacional, pelo qual foram condenados os policiais militares Nelson de Oliveira dos Santos Cunha, Marcos Aurélio Dias Alcântara e Marcos Emanuel. A motivação? Vingança por eles terem jogado pedras numa viatura da PM em protesto pela prisão de um menino que morava na rua.

Claudete Costa, catadora de material reciclável, tinha 12 anos quando a chacina aconteceu. Vivia na rua com a mãe e os irmãos e estava sempre com os meninos da Candelária,”todos os que morreram eram meus amigos, a gente sempre se reunia no chafariz pra brincar e tomar banho, era um momento de criança em que a gente esquecia os problemas e só se divertia, geralmente entre meia noite e uma hora da manhã”.

Naquela época a professora e ativista pelos direitos humanos Yvonne Bezerra de Mello já se dedicava a alfabetizar crianças em situação de rua. Seu trabalho com os meninos da Candelária começou no início dos anos 90, quando o grupo se formou. Ela lembra:

“Na época eram muitos grupos de rua, comecei a me interessar por essas crianças para saber se tinha alguma ONG ou alguma instituição que trabalhasse com elas, depois montei uma escola sem portas nem janelas e escutava e aprendia sobre a vida deles, vi um universo que me deixou muito sensibilizada”. A maioria dos que estavam no grupo da Candelária tinha entre 6 e 12 anos e estava na rua, geralmente, por abuso, maus tratos e violência em casa.

Três dias antes da chacina da Candelária, uma reportagem na televisão sobre os meninos que viviam em frente à Candelária mostrou Yvonne em segundo plano dando aula à garotada atenta, enquanto algumas brincavam no chafariz. As palavras das crianças na reportagem eram de esperança em mudar de vida através da educação.

Assim que começou seu trabalho com as crianças de rua, Yvonne percebeu que ninguém se importava com elas: “Eu procurei as subprefeituras da cidade, mas senti um profundo desprezo por essas crianças, ninguém queria ajudar e eu sempre sentia na minha cabeça que alguma coisa ia acontecer com algum dos grupos”, afirmou.

O perigo que Yvonne pressentia se intensificou na tarde do dia 23 de julho de 1993. Houve uma manifestação no centro da cidade, quando a PM prendeu um adolescente cheirando cola e começou o tumulto. Como ele era conhecido dos meninos, o carro da polícia foi apedrejado e Yvonne, que estava no local, logo chamou os meninos. “Nesse dia falei para que eles se acalmassem, e reforcei que me ligassem, caso vissem algo suspeito”. Na época Yvonne sempre dava três fichas para algumas crianças ligarem se sentissem ameaça de agressão.

Claudete também se lembra da madrugada daquele 23 de julho. Depois de um dia de coleta de material reciclável, ela, sua mãe e seus irmãos estavam na cooperativa quando começou a encher de gente por causa das manifestações que começaram na Praça XV e alcançaram a Avenida Presidente Vargas.

Em casa, Yvonne recebeu, pouco depois da meia-noite, a ligação de “Bocão”, um dos meninos da Candelária, “Tia, tia!! Estão matando a gente”. Ela foi direto até a Candelária: “Eu cheguei antes de todo mundo e quando eu olhei aquilo exclamei ‘Meu Deus do céu!’, pensei em organizar os meninos e falei pra eles que deveriam ficar calmos, pois apareceria muita gente”, relembrou.

Claudete, que sempre brincava no chafariz naquele horário, não foi naquele dia. Estava de castigo na cooperativa. “Eu tive a sorte da minha mãe ter me colocado de castigo limpando uns carrinhos em que a gente pegava os materiais recicláveis. E as outras meninas acabaram não indo também”, ela se recorda.

Como Yvonne suspeitava, foi chegando muita gente ao local, entre curiosos, imprensa e polícia, as crianças não desgrudaram dela um segundo sequer. “Depois que o rabecão saiu com os corpos, ninguém deu atenção às outras crianças que estavam ainda ali. Então quando eram seis horas da manhã eu fui levando de sete em sete na minha camionete até à delegacia policial. Começou a chegar político e um monte de gente e ali mesmo já me tiraram de cena, nem deixaram eu ficar com os meninos na delegacia”, disse. Muita gente quis se aproveitar da situação como oportunidade de aparecer na mídia e Yvonne, que era contra, foi tachada como vilã da história.

Os sobreviventes da chacina foram levados a um abrigo na Mangueira, Zona Norte do Rio, onde Yvonne foi visitá-los. Mas tentaram impedir sua entrada e as crianças quase “quebraram tudo”: “Naquele momento eu era massacrada pela mídia, tachada de louca e outras coisas”. A pressão era tanta que no dia do enterro das vítimas da chacina, um dos meninos pediu que Yvonne não saísse do ônibus para não ser atacada pela mídia. “E ele tinha razão, o enterro estava lotado de gente da imprensa”, disse.

No abrigo, segundo a professora, as condições eram precárias e muitas crianças queriam fugir de qualquer maneira. Foi então que ela recebeu a oferta de um local pra ela abrigar os meninos. “A pessoa disse por telefone que tinha umas três casas pequenas num morro ao lado do Hospital Marcílio Dias, no Lins de Vasconcelos, para os meninos ficarem e que eles dariam alimentação e tudo mais, e eu levei”.

Yvonne continuou na busca de local definitivo para continuar o trabalho de alfabetização dessas crianças: “Passando pelo centro da cidade vi uma espécie de creche do lado de uma favela de rua onde morava a mãe de um dos meninos. Ali foi o primeiro endereço do projeto Uerê, depois essa escola foi transposta pra Maré”.

Atualmente os ex-policiais Nelson de Oliveira dos Santos Cunha, sentenciado a 261 anos e Marcos Aurélio Dias Alcântara, a 204 anos, estão soltos, enquanto Marcos Emanuel que foi sentenciado a 300 anos de reclusão em regime fechado, fugiu da prisão. Dos meninos sobreviventes da época, a maioria morreu depois por diversos motivos, entre eles Sandro Barbosa do Nascimento, que sequestrou o ônibus 174 há 20 anos e morreu dentro da viatura da PM a caminho do hospital.

Claudete mora na Cidade de Deus e está seguindo os passos da mãe na liderança de movimentos de catadores de material reciclável, como presidente da Unicatadores e da Cooperativa Reciclando para Viver e Vice-presidente da UNICOPAS. “Minha vida foi de pedinte a camelô e de camelô a catadora”, diz. Foi mãe com 16, 19 e 23 anos e sempre falou para seus filhos focarem nos estudos. Depois da morte do seu filho do meio ela teve que se manter ainda mais forte para os seus outros dois. O mais velho está casado e pensa em fazer uma faculdade e a mais nova sonha ser juíza.

“O meu conselho é que as pessoas nunca desistam de seus sonhos, objetivos e projetos e também nunca recuem ou abaixem a cabeça pra ninguém, ter foco e nunca puxar o tapete das pessoas”, completou.

Yvonne continua a educar crianças e jovens com bloqueios cognitivos e emocionais por traumas e violência no Projeto Uerê, no Complexo da Maré. Para ela, conviver com as crianças de rua da Candelária, de Copacabana, de Madureira e tantos outros lugares é aprendizado para entender que uma faixa da sociedade é excluída de tudo, é invisível. “De 93 pra cá pouca coisa mudou no atendimento primário a essas crianças, o Estatuto da Criança e do Adolescente não é cumprido na garantia de direitos. Para a maioria das pessoas ele foi feito para bandido. A sociedade não acolheu essa lei, os governos não acolheram essa lei. É uma lei muito boa, mas não foi acolhida pelo governo como um todo”, denuncia.

Hoje, 23, o “Movimento Candelária Nunca Mais” faz manifestação online para que a chacina dos meninos não seja esquecida e a memória deles não se apague. A programação está aqui. Segundo Yvonne, a Chacina da Candelária precisa ser lembrada sempre, para que a situação não fique pior.

“Os que mais morrem no Brasil são os jovens, negros e de periferia, se assuntos como a chacina caírem no esquecimento a coisa vai ficar daí pra pior. Ninguém se debruça para entender por que essas crianças e jovens são os que mais morrem, porque eles querem isso, porque o “status quo”, que detém a caneta, não quer perder privilégios. Porque esse um por cento da população não quer mudar isso, porque eles precisam das massas, pelo menos nas eleições”, conclui Yvonne Bezerra de Mello.