CRÔNICA – Sem nervos

créditos: Igor de Melo

As pipas recortavam o limiar. De quando em quando uma avalanche de pés descalços, corria. Um dia pra molecada ficar sem banho, nem almoço. Era o festival. No final da tarde porém, à medida que uns poucos as mantinham vivas no ar, viam uma chama no alto do morro. Uns acharam que era fogueira de São João, e nem era época. Chegou um sabido dizendo que ia subir. E logo um outro maior, invocado que não.
Mais cedo, perto da feira, na esquina que tem três botequins colados, muito conhecida por isso, um malandro sentado num banco de escola foi pego. As cervejas, que todas caíram na agitação, pagas. Ação relâmpago, diriam. Na hora da xepa, muitos comentaram, poucos viram. Na barraca de laranjas se espalhava que forças em cooperação o levaram, numa perícia digna de filme.
Já no barraco, apesar de falar até o que não sabia, o destino tava traçado. Antes no entanto entregue pela polícia ao comando, tentou negociar. O resultado foi que chorou, esperneou, tentou calar. E berrou. Havia algozes em funções bem definidas. Todo ato era bem pensado e organizado. Os instrumentos eram enfileirados à mesa. Uns seguravam, amarravam, amordaçavam, outros pregavam, penduravam, desfiavam. Outros ainda, se mantinham só para ouvir.
Longe de uma discrição de agentes especiais para caçar subversivos, como os do exército nos anos de chumbo em diante, esses carrascos não haviam pensado em se alistar, nem tinham ideologia. Muitos cresciam com os ídolos nas camisas de futebol, pedindo doce fiado às tias da rua. Sem qualquer recurso para sonhar, ingressavam na firma. Obedientes ao chamado eram apanhamos junto ao mecanismo, o vácuo preenchido. A partir daí ambições despertariam vorazes, que por fim, roeriam os próprios nervos. Depois de olheiro, avião, depois de vapor, soldado. Aí vinha comissão e arma pesada na mão. Estava feito, era um homem.
Numa tarde dessas tirou um cochilo. Um conjunto de imagens confusas, compreendida logo após. Havia um baile, um palco e havia mulheres ao lado, as peças eram sacadas, tiros dados em comemoração, algo como, os vermes tinham sido expulsos. Saiu vangloriado.
Sem as unhas dos pés, os dedões quebrados, sem equilíbrio algum foi sendo empurrado. Deixava para trás o fio de esperança. Desfazia-se ao passo que chegava, não sabia aonde. Era a via-crúcis. À frente, um calvário e nada mais.
Rodeado e exprimidos nos pneus, quase despido com o corpo açoitado, rezou. Mas era tarde para a prece.
Depois de um tempo não havia figura ou semelhança. E, assim subiu ao céu o x9 em fuligens. O sol poente luzia penosamente. O sopro que vinha da mata encontrava a rocha e descia como uivos de lobos saciados, qual sorrisos sórdidos. As pequenas partículas iam aderindo as superfícies, das pipas, ainda no ar, das ruas, das estruturas, ao caírem. No entanto, o que sobrava ainda assim era trabalho e tinham quem o fizesse. Esse, logo após o serviço foi pra casa, levou o pão, tomou café. Lembrou que mãe reclamava tanto, que o pão já chegava frio. Não pensaria mais naquilo, não se impressionava mais. Agia por instinto, agia com o desprendimento de um estranho. E apesar, pelo incrível que pareça, sentia-se entre todos, útil.
Antes do final de semana teve o seu esperado baile. Ansioso bebeu, como se não houvesse dia seguinte. Eletrizado. Sentiu-se, depois do primeiro grande porre, como tivesse tomado uma sova. Pois esse, tinha não mais que quatorze anos.