Crônica: Frieza na rua

crédito: Laguna Informa

Ninguém sabia de onde viera. Sorvia ao longe a tigela de um líquido quente ao despontar da matina. Que o fez sorrir a boca desfalcada. Que às vezes, por serviços prestados, o segurança lhe deixava.

À beira do canal, de grama alta, que a Avenida dos Campeões acompanhava, antes de encontrar a foz da Avenida Brasil, concentrava os tipos mais menosprezados do bioma urbano.

Deitados, camuflavam-se. Apesar dali todos saberem, ainda assim se escondiam. Moviam-se como se a iminência os pegasse pelos braços. Os empurrasse. Não lavaram os rostos, não descansaram. A morfina se apresentaria durante o dia. O álcool. Muitas vezes durante toda noite. Por hora, conquanto, era preciso catar, ingerir, para se manterem em pé.

Acudia ao chamado, por Junior. Sem primeiro nome. Se evocado por um desconhecido, negava. Se perguntado sua origem, dissimulava. Rejeitava a própria constituição, porque não tinha certeza aonde ir. Sem passado, talvez, fosse tudo possível. Acostumara sua mente ao banimento. Um errante. Um deportado.

Se acaso insistissem, dos infernos diria. A contingência, simplesmente, o entregara ali. As palavras vinham com esforço. Trocava pouco. Olhava. Aproximava, como quem só podia pedir. Esquivava-se da vereda percorrida como um bicho a um predador. Mas, vai saber o quanto ela ainda o percorria.

Fugira do manicômio? Teve quem presenciou ali mesmo um caso desses. Dois homens grandes, crachás à mostra. Depois de cercá-lo, saiu se revolvendo naquela casaca branca, para o imobilizado torso. Um lance rígido, triste. Parados. Silenciosos. Viram-se capturados provavelmente.

E se amotinassem? Desespero também paralisa. Não tivera amigos de infância, esposa, filhos, mãe, em que acidente da estrada ficaram pra trás? Tornaram-se miragem, viraram poeira? Ou tudo se fora no carteado? Desviava a rota. Perdera a trilha. Vergonha de voltar.

A negligência vem de há muito no corredor aberto da Avenida Brasil, não diferente, antes, à linha do trem. Aqui, naturalmente, essas reincidências históricas se cruzam. Surgindo assim das primeiras favelas aos complexos. Com suas divisões internas, de um lado da estação o Alemão, de outro o centro comercial de Bonsucesso, como de um lado da Brasil a Maré, de outro os grandes galpões de fábricas. E, portanto, o receio dos Senhores e seus vigilantes.

Em específico depois de falidas, endividadas, tomavam o lugar às ocupações. Batizadas com nomes de novelas correspondentes aos anos em que foram exibidas: Uga Uga, Laços de Família etc… Como a demanda era maior que a oferta, os excedentes se apoderaram das margens do canal. Muitas vezes formando família. Não sem o antigo choque entre essa gente e os representantes da lei.

Sob a cerração do amanhecer de quinta, após a noite mais fria do ano, depois de cair granizo em partes da cidade, Junior que aparentava cinquenta e negava o passado, não apareceu junto à bóia do segurança, nem em nenhum outro serviço esporádico. Serviço de pau de inchada. Ou visto debater por lixo ou álcool, nem outra eminência, nem ocultado no mato. Mas, encolhido ao pé da pilastra da ponte, que ali surgia. Foi levado, depois de horas chiando, por dois homens de branco, em meio à crise de hipotermia.

− Tá dormindo melhor que agente. − Dias depois, frente à ocupação.

− Não morreu? Cova rasa, sabe o que nos espera.

Logo os rumores se apossaram do vale do canal.

− Vi ele perto da “sobe e desce”, catando.

− Disseram que tá jogado na fila de atendimento.

− De repente até acham sua família.

− Ou sai de lá preso.

− Naquela noite, tomou um esculacho dos PM. Tu não viu? Dormiu gemendo, que nem cachorro.

Uma velha de voz tremula:

− Foi envenenado.

− Como? O quê?

− Polícia num dá conta de milícia lá vai investigar assassinato de mendigo?

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