Conhecimento das coisas que já sabemos ou herdamos enquanto cultura do saber

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“Castelando” sobre os tempos atuais, entendemos que estamos vivendo uma reorganização das ordens vigentes ou, ao menos, um tensionamento sobre essas ordens, seja no aspecto político, econômico ou social. Tudo está em jogo e em processo, até mesmo a construção do conhecimento das coisas que já sabemos ou herdamos enquanto cultura do saber que buscam refletir sobre esse tempo. Nesse contexto, o campo cultural desempenha papel fundamental.

Seja em uma perspectiva pós-moderna, pós-colonial, decolonial ou ainda anticolonial, algumas questões se fazem urgentes: quais deslocamentos se produzem nas ordens de poder e saber globais e locais? Quais narrativas estão em disputa? Quem são os sujeitos protagonistas? O que provoca tais deslocamentos? Para todas essas questões, a insurgência de narrativas contra-hegemônicas ancoradas na afirmação das subjetividades e identidades dissidentes é o que se mostra emergente.

Ao considerarmos o contexto político brasileiro atual, percebe-se nitidamente o desenho de um campo de batalha: na mesma medida em que assistimos, nas últimas décadas, a um avanço no que tange à conquista e instituição de direitos por grupos subalternizados, vivemos a pouco tempo em retrocesso e uma reação contra esses avanços, na tentativa de manter o status de privilégios e desigualdades que historicamente estrutura a sociedade brasileira, protagonizada por setores sociais conservadores do país. Na linha de frente, em defesa desses direitos, encontram-se grupos identitários identificados como minorias. São eles os movimentos negros, LGBTQIAPN+, indígenas e de mulheres, coletivamente organizados através do que chamamos de movimentos sociais. A partir da afirmação de suas identidades, tais grupos sociais vêm disputando territórios até então ocupados por narrativas hegemônicas, como os campos do conhecimento e da produção cultural, na mesma medida em que reivindicam também novos regimes de representação e visibilidade. 

A partir da compreensão de cultura como terreno de embates, negociações e deslocamentos, território de disputas simbólicas no qual é elaborado o conhecimento das coisas que já sabemos ou herdamos enquanto cultura do saber, propõe-se neste passeio literário, inicialmente, uma reflexão sobre como as narrativas insurgentes podem provocar novos posicionamentos no que tange ao papel da cultura e como a gestão cultural, enquanto campo profissional organizativo pode responder a questões próprias do momento no qual estamos vivendo. Em seguida, propõe-se a adoção de uma prática politicamente engajada como perspectiva de atuação para o campo da gestão da cultura, dado o contexto atual.

Nesse sentido, daremos destaque aos movimentos insurgentes negros, considerando a experiência da diáspora no contexto brasileiro e seus efeitos sobre a construção de uma identidade cultural marginalizada. Adotaremos como referência o que vamos chamar de aquilombamento no campo das artes e da cultura, com o objetivo de compreender o que a identidade negra periférica, como categoria social dissidente, pode propor em termos de tecnologia de organização e insurgência cultural antirracista.

Diversos são os esforços para desenvolver e instituir um conceito de cultura que dê conta dos anseios de uma sociedade em diferentes tempos e espaços. Embora a cultura seja anterior e independa de qualquer conceito a ela atribuído para acontecer, as contínuas tentativas de significação justificam-se pela necessidade que, em geral, as instituições encontram de constituir um arcabouço de significados que possa balizar ações, políticas e mecanismos pensados com o objetivo de intervir nesta dimensão da vida social. Toda política cultural e os mecanismos e ferramentas a ela relacionados partem de uma compreensão prévia do que é cultura que lhes justifique a existência e norteie os objetivos que devem ser desenvolvidos e alcançados nesse âmbito. Por esse motivo, o conceito de cultura é mutável e vem sendo reelaborado e adaptado de acordo com as condições sociais e históricas. Consequentemente, as políticas e ações que dele derivam também refletem o que se entende como prioridade neste mesmo contexto.

Considerando uma longa trajetória da cultura e seus conceitos, desde visões instrumentalistas, excludentes ou até mesmo percepções demasiadamente amplas e abstratas, partimos de um entendimento tal qual sustenta a base intelectual do Centro Cultural Que Ladeira é Essa? de que já não se trata mais de providenciar um conceito plausível de cultura, uma vez que definir ou conceituar alguma coisa é, na verdade, um ato de restrição. Ou seja, mais do que entender o que é ou não é cultura, neste momento torna-se urgente compreender de que forma e para que fins a cultura vem sendo apropriada e que papel desempenha no contexto contemporâneo. No entanto, quando nos propomos a pensar o lugar ocupado pela cultura, neste exato momento, uma questão é inevitável: Que momento é esse? Quais especificidades marcam esse momento e de que forma a cultura é capaz de produzir respostas? 

Para refletir acerca do presente se faz imprescindível considerar a corrente histórica que arrastamos nos pés e no pensamento, temos que desenvolver senso crítico sobre os embates culturais contemporâneos considerando os deslocamentos das noções de centro e periferia em curso e os questionamentos a qualquer corrente de pensamento universalizante. É por se apresentar como uma ferramenta de análise das narrativas que insurgem na fronteira que separa hegemonias e subalternidades que tal abordagem nos interessa.

É importante ressaltar que o embate cultural resulta na desarticulação da produção cultural periférica, a mesma descortina uma consciência politica na posição social da população negra, o que confere às margens a chance de se auto representar. No entanto, tal produção cultural no contexto das periferias não pode ser lida enquanto categorias de entretenimento e sim como ato politico representações estáveis na busca por garantia de direito e na marcha pelo cruzamento de fronteiras. A articulação sociocultural, da perspectiva periférica, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade sociopolítica e cultural que emergem em momentos de transformação histórica. As lutas pela afirmação das identidades empreendidas no campo do simbólico se destacam como movimentos culturais insurgentes à medida que assumem uma posição de enfrentamento a uma ordem pré-estabelecida, reivindicando novos regimes de visibilidade e autonomia para se expressar a partir das periferias que ocupam.

Compreendendo a relevância das lutas pelo reconhecimento, das insurgências identitárias é possível reinscrever nossa existência e intervir. É certo que a fronteira é um espaço de conflito e negociação e que estamos vivendo um momento especialmente crítico no que se referem às bordas que separam o poder politico, os recursos dentro do aparelhamento do estado e da periferia. Esse deslocamento das possibilidades estruturais e de recursos efetivos, também gera um espaço favorável, porem desestruturante para o ato insurgente da invenção criativa, à beira e sob as vistas do projeto central- hegemônico. 

Por fim, destaco que o conhecimento das coisas que já sabemos ou herdamos enquanto cultura do saber invoca um posicionamento urgente e ativo da gestão cultural no que se refere ao tensionamento e transformação das estruturas sociais vigentes, será possível com a adoção de novos referenciais, como é o caso da tentativa aqui realizada de visibilizar a produção cultural negra e a pertinência que o ato de se aquilombar representa neste contexto de desconstruções e deslocamentos. Desse modo, reivindica-se o abandono de qualquer posição de suposta neutralidade política por parte da gestão da cultura. No seu lugar, é hora de assumir um posicionamento estratégico e responsável no que se refere ao fortalecimento de narrativas que inaugurem novos modelos ou modos culturais.