RAP no Rio Grande do Norte, PARTE 1: os sonhos das batalhas de rimas

Batalha do Coliseu talvez seja a mais conhecida entre as cerca de quinze batalhas de Natal. FOTO: Lucas Bastos

Ikaro Sousa, o Boka, conta que as batalhas de hip hop do Coliseu destruíram seus planos de ser administrador de empresas. Mas que ninguém lamente, ele está muito feliz com isso.

“Quando a gente fundou a batalha, eu estudava Administração e acabei saindo. Comecei a produzir a batalha e fui pro Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte cursar Tecnologia em Produção Cultural, na visão de me profissionalizar e fazer o momento crescer ainda ainda”.

Ao lado de seu parceiro Aldacy Júnior, conhecido também por Cafeína, Boka não se enxerga fazendo outra coisa. O trabalho que eles ajudaram a iniciar, hoje é um projeto de extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde fica o famoso Coliseu, um anfiteatro ao ar livre que pouco lembra o homônimo romano.

As batalhas de hip hop já formam um circuito consolidado na agenda cultural da cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Tiveram início em 2006 com a Batalha da Vermelha, cuja extinção foi muito lamentada pelos antigos participantes. Ela acontecia na Praça André de Albuquerque, também chamada de Praça Vermelha.

Hoje a Batalha do Coliseu talvez seja a mais conhecida dentre as cerca de quinze que acontecem em toda a cidade, como a Batalha do Vinho, no bairro do Gramoré, Zona Norte da capital, que chegou a reunir milhares de jovens em suas frequentes edições.

Íkaro Souza, o Boka, artista e produtor cultural. FOTO: Thiago Firmino

Em 2021, tive a oportunidade de acompanhar um momento de retomada e efervescência das batalhas em nossa capital, inclusive acompanhando a rotina de alguns dos gladiadores do Coliseu. Vejamos como foi.

A reocupação das praças pela juventude da periferia

Durante dois dias, acompanhamos as batalhas de hip hop que mobilizam semanalmente milhares de jovens natalenses à margem do calendário da cultura oficial. A insatisfação e a recusa em aceitar uma derrota sem luta dão o tom desse movimento. É uma explosão de dramas juvenis, problemas sociais e busca por uma identidade. As batalhas são o megafone de uma geração que se quer fazer ouvir, ainda que na marra.

Chego ao local da Batalha da Cívica às 19h00. Um grupo de jovens com pinta de estudantes secundaristas se amontoa ao redor de um banco da praça, e o pessoal está empenhado em convencer uma garota pequena e magra, com um boné vermelho da cerveja Duff, dos Simpsons, e uma camiseta onde se lê Amsterdã, a se inscrever para os duelos que estão previstos para as 20h. Após alguns empurrões, ela topa a parada.

A garota se chama Alice, tem 16 anos e frequenta o EJA Tiradentes, onde deve concluir o ensino médio em breve. Ela chegou há já algum tempo, vinda do bairro de Mãe Luiza, onde mora — uma comunidade que se ergueu sobre o morro que abriga o famoso farol da cidade de Natal e que, mesmo tendo uma das melhores vistas do litoral de toda a urbe, carrega um forte estigma ligado à pobreza e à violência. Alice chegou mais cedo para esperar o evento do dia com outros colegas, “porque o papo é bom”.

A devoção às batalhas é de quem pratica e de quem assiste, como na Batalha do Coliseu. FOTO: Thiago Firmino

Locais, nomes e personagens das batalhas de rima

As batalhas costumam levar o nome do local onde ocorrem, nesse caso, a praça Cívica, oficialmente praça Pedro Velho. Ela fica no bairro de Petrópolis, que concentra diversas escolas públicas. Trata-se de uma das regiões com maior IDH do estado do Rio Grande do Norte e dos raros bairros da capital construídos de forma planejada.

Petrópolis é fruto do Plano Palumbo, região idealizada pelo arquiteto italiano Giácomo Palumbo nos princípios do século 20. Embora pareça ter sido ontem para muito de nós, é um passado distante para a maioria dos jovens reunidos para rimar, que nasceram neste novo e acelerado século. As batalhas da Cívica ocorrem sempre às segundas-feiras.

Alice, cujo nome de guerra é MC Scobar, já vai para sua décima batalha. Para ela, é um lugar onde pode mostrar seu valor. “A gente vive numa comunidade onde os homens acham que são superiores, que tem coisas que mulher não pode fazer.”

Mas na comunidade do hip hop, ela crê que as coisas são diferentes, pois “aqui não tem isso, pessoal respeita a gente e a gente tem voz”. Ela diz que prefere criar suas rimas “no calor da batalha”.

Heranças musicais familiares

Mc Scobar frequenta as batalhas há três meses, e sempre que participa dos duelos prefere rimar sobre temas sociais, especialmente os relacionados à realidade da comunidade onde vive com os pais.

Seu único irmão, Adilson, faleceu aos 19 anos, num afogamento na praia do Meio. Ela acredita que o ambiente das batalhas é estimulante para produzir música e cooperar, aprendendo com trovadores mais experientes.

“A gente vive numa comunidade onde os homens acham que são superiores”, diz MC Scobar. FOTO: Instagram

Como outros jovens artistas com quem conversei, a vocação para a música surgiu na vida de Alice (que pratica violão, sax, teclado e bateria) ainda na infância, por influência de parentes músicos.

É o caso também de Fênix, uma das referências locais apontadas por Alice. Quando o pai dele faleceu, Fênix herdou um espólio modesto que, contudo, mudaria sua vida: dois CDs, um de Edson Gomes e outro do grupo Racionais.

“O que me move é falar da quebrada, do que vivo. A galera me conhece mais por esse meu estilo, de ser agressivo. Não é pra vencer a batalha, é pra passar a realidade. Quando a galera da comunidade me encontra, diz logo: esse cara fala a nossa verdade”, conta Fênix, também ele residente em Mãe Luiza.

E é Fênix mesmo, e só. Ele explica que não se sente à vontade se chamado de outra forma, “sou mais Fênix que eu mesmo”; então, por cortesia, nem pergunto seu nome de batismo. Tem 18 anos e é um dos muitos que começaram no rap no embalo das batalhas da Vermelha.

Fênix caiu dentro e não saiu mais

Quando Fênix herdou os CDs do pai, tinha apenas 4 anos e se encantou, sobretudo pelo ritmo. Porém, só depois, na adolescência, foi completamente fisgado pelo gênero. Sua mãe se casou novamente, após a viuvez, e Fênix não se adaptou à nova vida doméstica, tendo que se mudar para o interior, onde viveu alguns anos por conta própria.

Fazia bicos para se sustentar, na maior parte das vezes ajudando um primo a arrancar estacas para cercados de sítios da redondeza ganhando, quando muito, 20 reais por dia. As situações por que passou na luta pela sobrevivência o marcaram, e, voltando à capital, relembrou as letras que ouvia nos dois surrados CDs, sempre que sentia saudades do pai. Aquelas letras falavam da sua vida, e fazer letras seria a partir de então o caminho para contar sua história.

“Sou esforçado”, ele conta, “gosto muito de fazer o que faço. Podia estar em casa, diante da TV, na casa da namorada. Mas só me realizo quando faço música”. A maioria das pessoas parece ser contra sua vocação, “acham que é coisa de vagabundo”.

O mercado profissional tampouco é mais colaborativo, “galera não quer pagar”, porém ele segue na busca de uma realização profissional que expresse a vocação que descobriu e diz ser para toda a vida. Conta ainda que já foi de Mãe Luiza até Ponta Negra a pé — uma caminhada de 12,2 quilômetros segundo o Google Maps — para participar da Batalha do Disco. Nas batalhas, ele diz que conhece pessoas legais, sua segunda família.

A primeira vez que teve contato com batalhas de hip hop foi pelo Youtube, o confronto Mc Douglas Jean versus Mc Vinisão. Depois disso, caiu dentro e não saiu mais.

Rimas no calor da batalha, como gosta MC Escobar

As batalhas começam por volta de 8 da noite. Um Mc (mestre de cerimônia, me explicam) anuncia os primeiros contendores e um participante instiga a moçada, “se tu ama essa cultura como eu amo, grita”, ao que a galera responde “hip hop, hip hop”.

Depois de repetir o grito de guerra algumas vezes, uma pequena caixa de som é conectada a um celular e começamos a ouvir a batida. Inicia-se o primeiro round da batalha.

No par ou ímpar se decide quem começa, e à capela os oponentes se revezam em rimas improvisadas, que de início versam sobre histórias pessoais dos desafiantes, com muita provocação mútua e esculacho. Logo segue para disputas de estilo, influências na cultura hip hop, questões sociais e de pertencimento.

O que se canta na batalha, fica na batalha

Serão frequentes nas batalhas a que assistirei nos dois dias da reportagem as referências à cor da pele (branquelos contra negros), bairros de origem (playboys contra manos), preferências musicais (funk, beat, etc.).

Esses elementos entram em cena num tom de provocação, mas denotam claramente uma busca por identidade, que se dá tanto na autoafirmação quanto na ênfase das diferenças. Também tem muita zoação sobre a qualidade da rima adversária e enaltecimento das próprias habilidades linguísticas – o clima é pesado, direto, no queixo.

Ao final de cada round, a galera aplaude a batalha e os oponentes se abraçam com sincera fraternidade. O que se canta na batalha, fica na batalha.

É o público quem decide o vencedor de cada round com manifestações de gritos, aplausos e assovios, que o mediador avalia. E, como no primeiro duelo, cada qual venceu um dos rounds iniciais. Temos um terceiro, de desempate, que dará a vitória a Mc TK, em sua primeira batalha da noite.

No terceiro duelo, Fênix versus Kadu

Embora declare que não vê os duelos de forma competitiva, Fênix entra forte na briga e vence o primeiro round de forma arrasadora. No segundo, Kadu empurra o adversário para as cordas com um forte ataque sobre as qualidades rítmicas do outro.

No entanto, não teve jeito: a reação de Fênix foi imediata, “esse homem não é bandido, mas roubou a minha lombra”, reconhece na sequência da batida, e parte para o contra-ataque. Ao final, a plateia confere a vitória a Fênix, por dois rounds a zero.

“Não é pra vencer a batalha, é pra passar a realidade”, explica MC Fênix, que vence Kadu. FOTO: cedida

A periferia toma o centro de batalhas

“É que não sou conhecido da galera”, explica Kadu, 22 anos. “Isso também atrapalha um pouco”. Ele diz que as batalhas são boas para praticar, “aqui é esporte, para fortalecer”. Kadu vive no Passo da Pátria, outra comunidade periférica de Natal, embora localizada no centro da cidade.

Enquanto as batalhas se desenrolam, um morador da região se aproxima e puxa conversa enquanto observa, de canto de olho, as atividades do cachorrinho que leva para passear. Outras pessoas passam desconfiadas, evitando a região central da praça que, exceto durante as batalhas, está sempre despovoada e com um clima hostil.

Perguntei mais cedo a Alice se as batalhas são bem vistas na comunidade. Ela contou que hostilidades são incomuns e que o clima geral é de tranquilidade, mesmo com a polícia. Apesar disso, lamentou as dificuldades em se obter acesso a alguma infraestrutura, como uma fonte de energia que possibilite o uso de aparelhos melhores para acompanhar os músicos.

Energia da rima supera energia elétrica

A bela Praça Cívica é pouco frequentada pelos moradores das redondezas, que se ressentem de uma noção de insegurança, embora seja fácil perceber ali a constante presença de viaturas da polícia e de serem raros os relatos de furtos ou agressões.

No local, há pessoas que improvisam suas casas, uma delas armada de forma tocante sobre uma árvore; roupas são vistas quarando sobre os arbustos mal podados; crianças exibem sua letargia típica dos dias quentes e muito úmidos, que parecem, a cada ano, menos ventilados.

Há ali uma fonte cujo chafariz costuma ser ligado nos dias comemorativos, como o do desfile de 7 de setembro, ocasião em que a praça recebe um público nada habitual.

E como que para ilustrar as preocupações de Alice, no final do primeiro round da segunda batalha acaba a bateria da caixa de som que marca o ritmo do duelo. O público tem que gastar as cordas vocais para conferir o acompanhamento adequado dali em diante.

Batalha do Coliseu começa com Mc Sabota

No dia seguinte fui à Batalha do Coliseu, um anfiteatro localizado no setor 2 da Universidade Federal, que é regularmente ocupado para atividades culturais independentes.

A Batalha do Coliseu teve início com um recital de um estudante da Escola Estadual Berilo Wanderley chamado Rodrigo, o Mc Sabota. “O próprio Sabotage já deu palavras de incentivo”, ele explica.

MC Sabota, na Batalha do Vinho, Zona Norte de Natal-RN. FOTO: YouTube

O Sabota potiguar, com 21 anos, é um exemplo clássico dos muitos jovens que encontram no movimento hip hop uma saída para as enrascadas da vida. Teve problemas com drogas ainda muito jovem e diz que chegou a perder a fé em si. Ele alega que a atividade artística lhe conferiu um senso de “responsabilidade moral” diante de seus amigos e colegas.

A poesia, que diz ser hoje sua melhor amiga, também fez com que ele se interessasse mais pelos estudos. Intensificou o ritmo de aprendizagem porque percebeu que, para contar aquilo que desejava, era preciso não apenas saber rimar, mas conhecer a história, a filosofia, a política — e também para poder fazer frente aos oponentes nas batalhas.

A descoberta da literatura e do protagonismo

As referências culturais e históricas, pelo que pude perceber, são constantes nos versos de muitos dos trovadores do rap que se enfrentam nesses eventos. Fala-se em história antiga e regiões remotas do planeta, ícones da luta negra e feminista, revoluções, fatos contemporâneos e cultura pop.

Temos um bom exemplo disso nos poemas que Mc Sabota recitou na abertura da Batalha da Cívica. Ele diz que se inspira e improvisa temas novos nas batalhas, mas que é nos poemas que se disciplina a melhorar os versos, “arquitetar o pensamento de forma construtiva”.

Lê muito autores potiguares, como o patrono da escola onde estuda, Berilo Wanderley, a quem lamenta o ultrajante desconhecimento por parte de seus concidadãos. Chama esse entusiasmo recém descoberto de “cobiça por literatura”.

Para ele, participar das batalhas é “muito importante. Traz protagonismo. Dá voz. Eu aprendi a assumir o protagonismo por causa do hip hop. Antes eu não daria uma entrevista. Não pensaria que tenho algo a dizer. Hoje, organizo atividades culturais na escola, para envolver outros nessa atividade que mudou minha vida“.

Quando Mc Sabota começou com os recitais no colégio, não teve apoio “por causa da vida que levava antes. Mas meu trabalho mostrou que agora é diferente. Agora confiam em mim. Aceitei o protagonismo”.

Na Batalha da Cívica que acompanhamos, se reuniram ao menos uma centena de jovens das mais variadas origens; estudantes secundaristas de diversas regiões da capital, universitários de áreas diferentes.

Esta reportagem foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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