Como Superar “Fake News”

Esse ano, a população brasileira decidiu se jogar nas profundezas do fascismo escancarado. Além das preocupações com nossa segurança física, com o meio ambiente (o futuro da humanidade) e a decência humana básica, lidamos também com o coração partido de ver certos familiares saindo do ‘armário fascista’. Um mecanismo de defesa popular tem sido culpar tudo nas Fake News. “As pessoas não realmente pensam dessa forma, elas foram manipuladas pela mídia. Acredite, Google Steve Bannon”. Mesmo que eu queira acreditar nisso, não posso deixar de interpretar esse fenômeno como ginástica mental.

Queremos acreditar que o problema não é a democracia, que são as Fake News que interferem com ela. Só que Fake News não é notícia, e não é novidade, nem é algo que promove a alfabetização midiática. É algo que nos distrai disso. Já reproduzimos informações falsas para fins políticos desde antes de o Brasil ser um país (na verdade, pode ser a razão pela qual somos um).

O que veio primeiro, os valores pessoais ou a mensagem encaminhada no WhatsApp? Não importa, porque os dois dependem um do outro para existir, como a galinha e o ovo. Ou será? Talvez eu não saiba realmente como nascem as galinhas, quais são os fatos e onde os encontro? Talvez Bolsonaro não tenha sido esfaqueado, talvez o Kit-gay seja real, quem sabe? Nada disso importa.

Fatos científicos são em grande parte baseados em consenso e, graças a isso, nos sentimos razoavelmente confiantes em relação à coisas como galinhas botando ovos e cavalos tendo corações. Consenso e política, por outro lado, parecem ser conceitos muito, muito mais distantes. A Democracia que conheço depende fortemente da polarização, e de valores retrógrados, nenhum dos quais são recentes ou provocados pela Fake News. O poder de manipular a população é algo que pode facilmente ser enquadrado como heroico, basta ver como o Jigsaw (do Google) veio galantemente salvar as crianças do Ísis maligno. Porém, o mesmo poder de manipulação pode ser facilmente enquadrado como um comportamento inautêntico de vilões russos.

É possível ver, no entanto, que existe algo que detém o poder de definir o que é um terrorista, quem é o vilão, quem é o herói, e a vítima. Não é o grande Eles; aqueles no poder. Bem, não só… São os valores que nós internalizamos de nossos ancestrais, e os olhos pelos quais escolhemos vê-los.

“Quem dorme com os olhos dos outros, não acorda a hora que quer”

(Segundo Seu Paulo Preto, um negro velho, Babalorisá, do Alto da Mina, em Olinda)

Todos e todas nós aprendemos, somos influenciados(as) pelos nossos ambientes, pelo passado, admiramos e acreditamos. Isso não significa seguir cegamente, porque até isso é uma reflexão de nossos princípios políticos pessoais.

Toda mídia é opinião, tem uma perspectiva e um propósito político. Algumas são transparentes e honestas, outras nem tanto. De qualquer forma, a mídia que consumimos é um reflexo de nossos valores, e não vice-versa. Se não sabemos quais são os nossos valores, ou como reconhecer como eles são representados na mídia que nos bombardeia constantemente, será que é porque somos preguiçosos, “maria-vai-com-as-outras”, ou propriamente preconceituosos?

Digamos que alguém na sua família esteja preocupado com a homossexualidade sendo promovida nas escolas, e pensa em votar em alguém que diz que orientação sexual pode ser resolvida com uma boa porrada. Ou estão com preguiça de pesquisar se essa “promoção” está realmente acontecendo, onde, como, e o que isso significa para a sexualidade infantil, se “na verdade” a homossexualidade é “ensinada”, etc. Talvez estejam acompanhando as pessoas ao seu redor e não tenham meios para sair da mentalidade do grupo. Ou são simplesmente pessoas homofóbicas que acham que precisamos prevenir que a homossexualidade se espalhe; acham que a família tradicional deve ser preservada, que as práticas gays são perturbadoras, e se identificam instantaneamente com a mensagem. De qualquer forma, os resultados são os mesmos. Dedicar o esforço de distinguir entre estes no dia-a-dia parece ser um desperdício de energia, e até potencialmente perigoso considerando a violência física nas ruas que esta eleição instigou.

Infelizmente, acreditar no direito de certas pessoas de existir é uma ideologia radical tão difundida quanto o veganismo. Enquanto alguns da esquerda estão desesperadamente tentando provar o que é Fake, estou aqui pensando que, graças à Democracia, podemos finalmente ver como as vidas de pessoas LGBTQI+, indígenas, negros, e pobres não são realmente importantes para a maioria dos eleitores… O que fazer com essa informação?

Alguns dizem: “Nem todos nós temos acesso à informação ou a capacidade de processar e analisar uma mensagem”. Bom você está aqui agora, lendo e analisando esse texto. Se você tiver uma habilidade, ou recurso, compartilhe, porque esperar essa iniciativa de nosso Governo não é eficiente. Compartilhar habilidades e recursos autonomamente é primordial para a construção de uma forte comunidade, e não significa ensinar pontos de vista políticos pessoais para outras pessoas.

Alguns dizem: “Mas quem tem tempo para verificar informações cuidadosamente hoje em dia?”. Parece que temos muito tempo para ler, assistir, compartilhar, clicar, clicar e clicar. Mas passar alguns minutos a sós com nossos próprios pensamentos parece uma tarefa assustadora. Tire um momento para pensar por si mesmo e mesma. Plante e colha uma ideia!

A guerrilha que vem de dentro

Quando tomei um momento pra olhar para dentro, pra pensar sobre o que eu estava olhando e através dos olhos de quem, foi uma terapia política. Esqueça as pilhas e pilhas de informações on-line, estas são apenas coisas inúteis que acumulamos e interrompem nosso caminho. Em vez disso, olhei para a informação que eu mesma recolhi, memórias, e pensei em como elas me fizeram sentir. Esses sentimentos guiam nossa existência política.

O fato de eu trabalhar com mídia agora não é um fenômeno arbitrário, embora tenha acontecido inesperadamente. Eu senti seu poder de mover as pessoas, e elas podem (e devem) fazer um movimento para mudar o mundo. Quando falamos sobre a responsabilidade de outras pessoas que produzem Fake News, e nossa falta de tato quando a consumimos, tendemos a esquecer que, quando compartilhamos e conversamos sobre isso, estamos participando de sua produção. Em outras palavras, nesse cenário tecnológico, todos e todas deveríamos aprender, não apenas como consumir a mídia responsavelmente, mas também como produzir um conteúdo midiático consciente e honesto.

Sempre que falo sobre o patriarcado ou anti-capitalismo, não é porque a mídia feminista e comunista fizeram uma lavagem cerebral em mim. É porque homens* têm interagido sexualmente comigo sem o meu consentimento desde antes que eu soubesse o que era sexo. É porque vejo constantemente a miséria e a pobreza desde muito antes de saber o que era “teoria de classe”, e isso me faz sentir uma série de emoções negativas. Mídia me ajudou a encontrar o vocabulário para expressar e processar como essas memórias e experiências recorrentes me fazem sentir.

Quando eu tinha 12 anos, um grupo de cerca de 8 garotos vieram pra parte de trás do ônibus e me rodearam. Algumas pessoas se levantaram e foram pra frente porque não queriam ser incomodadas ou assediadas. Eu fiquei, ouvindo meu walkman. Eles começaram a conversar comigo, dizendo que eu era linda, perguntando onde eu morava, onde eu ia saltar, até que um deles começou a se masturbar em baixo da camiseta enquanto os outros riam.

Não foi até muitos anos depois que percebi como esse evento me impactou, e sua relevância na construção de meus princípios políticos. Primeiro de tudo, eu só entendi a conotação sexual do que ele estava fazendo bem mais tarde. Mas o que mais me impactou foi a disparidade de classe em São Paulo. Eu estava naquele ônibus indo da escola pra casa. O motorista de uma garota tinha me deixado na escola, que já estava fechada, depois de ter passado a tarde na casa dela “brincando”. A tarde toda na casa dela foi uma experiência bizarra. Ela tinha uma piscina imensa, uma quadra de tênis privada, “Friends” em inglês no DVD, e basicamente sua própria seção de uma mansão. Então, de repente, eu estava em um ônibus voltando para o meu apartamento de 2 quartos no centro, quando esses jovens apareceram me fazendo sentir como se meu walkman e a minha aparência eram luxos extravagantes.

Eu poderia facilmente imaginar que eles sentiram sobre mim algo semelhante ao que eu senti sobre aquela garota; uma sensação de ser de mundos divididos por um abismo. Uma separação próxima o suficiente onde podemos acenar ou insultar um ao outro à distância, mas mortal se tentássemos nos unir (uma morte literal ou identitária). Mais perturbador do que a masturbação pública, foi o fato de que, embora algumas pessoas tenham quadras de tênis privadas e uma infinidade de objetos reluzentes inúteis, outras precisam cheirar cola para não sentir fome e dormir na rua.

Deste ponto em diante, levo a luta de dentro pra fora. Se entendo minha própria dor, posso facilmente imaginar a dor de pessoas LGBTQI+; a rejeição, a insegurança, a ameaça em cada esquina, e a ampla variedade de potencial violência. Nós vamos lutar lado a lado.

Deste ponto em diante, posso imaginar a luta dos povos indígenas. O deslocamento, e a assimilação forçada enquadrada como caridade. Vejo o racismo, e a violência, ninguém precisa descrever pra mim, basta olhar em volta com meus próprios olhos. Basta aparecer, e olhar.

Infelizmente, não podemos garantir pra onde a imaginação das pessoas vai levá-los(as). Muitas pessoas olharão para dentro de si e não serão capazes de encontrar princípios como honestidade e empatia, porque estarão enterrados fundo, em baixo do desejo por riqueza pessoal, e da repulsa ao comportamento desviante da norma. Tudo bem, porque isso é melhor que a negação; a negação do racismo, a negação o genocídio, a negação da violência que estamos infligindo a nós mesmos e ao meio ambiente. Essa negação é o círculo vicioso histórico do qual não conseguimos nos libertar. Aquele ciclo que nos faz repetir a história década após década, reinventando a roda e capotando, reinventando e capotando…

Regras não precisam nos guiar, integridade aos nossos próprios princípios pode.

Meu corpo, as pessoas desejam. Meu coração é espremido pra dar sangue quase todos os dias. Endureceu, e na minha idade não é um esforço pequeno espremer uma gota. Eu amo isso, porque eu me amo. Levei 30 anos para perceber que minha auto-confiança é a corda no pescoço do Patriarcado.
_______________________
Nota de rodapé:

* Se você tem vontade de reagir à palavra “homens” dizendo algo como “mas as mulheres abusam também”, pense em todas as vezes que você foi abusado(a) por uma mulher, e tente usar esse sentimento pra imaginar como eu me sinto, ao invéz de usar comentários como estes para me corrigir, ou para apontar como o que eu sinto é errado ou inválido.

Este artigo foi originalmente publicado em inglês na revista Gods and Radicals.