Claiton: o cotidiano dos meninos de rua na cidade do Rio de Janeiro

Caminhando pela zona sul, local onde trabalho como guarda municipal, em um dia de verão onde a temperatura beirava 45 graus e a sensação térmica chegava aos 50°, avistei um menino negro descendo a Rua Visconde de Ouro Preto, localizada em Botafogo. O calor estava tanto que eu não conseguia entender como aquele menino tão pequeno, conseguia caminhar tranquilamente com os pés descalços em um asfalto que facilmente seria capaz de fritar um ovo. Curioso que sou, e preocupado com a situação do menino, atravessei a rua e tomei a liberdade de pará-lo para saber o que havia acontecido com o seu chinelo e aproveitar para conhecer essa criança que vagava sozinha sem camisa, short preto e descalça, sem a presença dos pais, por volta do meio dia nas ruas da zona sul, pois a julgar pelo seu estado, não sendo preconceituoso mas apenas observador, não me pareceu ser morador de um daqueles condomínios que o cercavam. Vestido como guarda, aos olhos destes meninos que vagam pelas ruas da cidade, representamos sempre alguém que irá persegui-los e os encaminhar para abrigos os quais eles odeiam. Então atravessei pelo meio dos carros para que não tentasse correr ao me avistar e, sendo assim, surgi na sua frente sem que ele esperasse. Vi no seu rosto a expressão do medo com um olhar desconfiado. Esboçou correr, mas quando o chamei, acredito que ele através do meu tom de voz, entendeu que não o iria fazer mal. De instante chamei sua atenção perguntando sobre o seu chinelo que no momento era o que mais me inquietava, então perguntei:

– Ô moleque, cade o seu chinelo, rapá?

– Arrebentou, eu estava correndo e ele acabou arrebentando.

– Arrebentou como? Deu mole? Vai ficar andando nesse sol com os pés assim? Tá fodido.

– Não, já estou acostumado. Arrebentou faz tempo.

– E onde estão seus pais? Tá fazendo o quê na rua?

– Nem sei, não sei deles não.

– Como assim não sabe dos seus pais? Qual é seu nome?

– É Claiton. Meu nome é Claiton.

– Fala ai, brother, cadê seus pais?

– Pô, não sei não. Já estou na rua há muito tempo, minha mãe mora lá na Boiuna.

– E teu pai? Cadê ele?

– Não sei. Não conheço. Falam que ele é camelô lá na Uruguaiana. Eu já fui lá, mas não sei quem é não.

– E por que você não tá em casa com a tua mãe? Vai ficar na rua de bobeira?

– Minha mãe é crackuda pô, ela sai lá da Boiuna e fica lá no Jacaré na linha do trem.Quero ficar com ela não!

– Ah, entendi agora. E você tem quantos anos, brother?

– Sei lá, acho que tenho 9 ou 8.

– Como assim, você acha? Não sabe quando tu nasceu?

– Pô não sei não, tô sempre na rua.

– Coé tio, me arruma 5 reais ai?

– Vai fazer o que com 5 reais? Vai comprar um chinelo?

– Vou nada! Vou comprar um saco de bananada pra vender, pô.

– Quanto é uma merda dessas?

– Pô, a que eu compro é 30, mas vem bananada pra caralho.

– Beleza, vou te ajudar, mas você tem que juntar dinheiro. 5 reais não é nada.

– Pra você 5 reais não é nada, mas pra mim que tô na rua, 5 reais é dinheiro pra caramba, me sinto até rico.

– Hahahaha você está certo, um garoto de 8 anos me ensinando sobre a vida, é foda.

– Pensei que você ia me bater.

– Bater por quê?

– Toda vez que chega um guarda ou policia, é sempre pra bater. Nunca falam nada com a gente, só metem a porrada.

– Eu não, vou te bater por quê? Tu é criança, rapá.

– Sei não, mas eles sempre batem.

– São covardes, por isso que eles batem. Não liga, não vou te bater, tô só trocando ideia contigo. Tu rouba os outros?

– Eu não! Os moleques que roubam. Eu só vendo bananada. Eu tenho medo, não quero apanhar não.

– Tá certo, não tem que roubar, mas tem que juntar grana da bananada que você vende, senão vai estar sempre sem nada.

– Juntar como? Na rua eles me roubam se eu ficar com dinheiro e também tenho que comprar coisa pra comer, porque não ajudam sempre não. Esse dinheiro vai rápido, é só pra comer mesmo.

– Tu não usa droga, não?

– Uso nada! Os moleque que ficam ali na praça cheirando tiner; eu só cheiro de vez em quando.

– Tá maluco, cara? Isso vai te matar, sabia disso? Vai derreter seu cérebro!

– E daí? Não ligo não, vou morrer mermo.

– Vai morrer nada, rapá! Tu é criança, tem que ir estudar, por que tu não cai lá no abrigo? É maneiro, pô, já foi lá?

– Pô, eu vou direto, mas eles querem me levar pra minha mãe, e eu não posso ficar lá dentro sempre não. E eles são muito ruins, as vezes querem bater na gente, eu prefiro mesmo é ficar na rua.

– Tu já estudou?

– Não, nem sei ler, só sei ler número.

– Sabe fazer conta? Como tu vende bananada?

– Eu aprendi na rua, me ensinaram na rua.

– Você pretende fazer o quê agora?

– Vou comprar bananada, pedir dinheiro.

– Mas o que você quer ser no futuro?

– Quero ser bombeiro.

– Se amarra em ser bombeiro?

– Eu gosto, porque salva as pessoas.

– Maneiro, tem que estudar, tem que ir pra escola.

– Pô, quando minha mãe melhorar eu vou. Mas agora eu tenho que ir lá, estão me esperando, os moleques vão lá no arpoador. Lá eles dão mais dinheiro.

– Coé moleque, toma aqui 5 reais. Só tenho isso mesmo, se não ia ali com você comprar o chinelo. Onde te encontro agora?

– Pela rua, eu tô sempre por aqui, quando passar fala comigo. Valeu tio, vou embora.

– Valeu, moleque! Arruma um chinelo! Vou comprar um pra tu.

– Valeu, valeu!

Nessa hora ele virou e seguiu andando, e eu que precisava ir resolver uns problemas de documento em São Cristóvão, acabei perdendo a hora e me atrasei um pouco nesse dia. Mas não liguei. O engraçado é que, enquanto conversava com o Clayton ou Claiton, não sei como se escreve o nome dele da forma correta, as pessoas passavam e olhavam com espanto; uns com cara de nojo, outros com cara de assustados, pois eu estava com um dos pés na parede e de uniforme, e ele parou na mesma posição que eu ao meu lado. Parecia que, por instantes, éramos amigos conversando. As pessoas não estão acostumadas com crianças que moram nas ruas, principalmente conversando com um guarda municipal que, como ele disse, só se aproxima para bater ou levar para o abrigo. Elas costumam, no geral, ser invisíveis aos olhos dos demais, parecem que não tem história para contar, parecem que brotaram do chão e vivem para pedir esmolas e jogar bolinhas nos sinais. Infelizmente a maioria desses meninos tem finais trágicos, eles nunca crescem, sempre desaparecem, mas não chegam a virar adultos. Poderia ser mágica se eles se transformassem em pássaros e saíssem voando, pois da maneira que somem de uma hora para outra, ninguém sabe o que aconteceu e para onde foram. O fato é que a maioria, me parece, nunca chega a idade adulta, pelo menos em liberdade. Essa invisibilidade por parte da nossa ignorância, acaba quando o Clayton ou Claiton, resolve não ter mais medo de apanhar, como ele disse, e acaba lhe apontando uma faca ameaçando sua vida enquanto você está a caminho da faculdade ou do seu passeio de bicicleta pelo Aterro do Flamengo. Nessas horas, e somente nessas horas, eles deixam a sua invisibilidade para saírem nos noticiários e capas de jornal. De um instante a outro, da mesma forma que desaparecem, viram estrelas de TV e tema de debate político, como esse que vemos hoje, que clama pela diminuição da maioridade penal para essas crianças que são invisíveis nas ruas. Por enquanto o Clayton ou Claiton é invisível. Por enquanto ele tem medo. Por enquanto, ele só vende bananada.

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Foto ilustrativa