Ateliê Multicultural resiste no centro histórico de João Pessoa

Deteriorado, prédio de 172 anos no centro histórico de João Pessoa abriga ateliê. FOTO: Divulgação

O Centro Histórico de João Pessoa não é mais o mesmo. Quem passa, mesmo que rapidamente, no corre-corre da vida, observa as portas fechadas de lojas e casarões tombados literalmente tombando. Essa é a situação atual do centro histórico da terceira cidade mais antiga do país, João Pessoa. Mas lá existe uma voz resistente: a do artista visual ElioeNai Gomes.

Com 38 anos de carreira e tendo seu atelier passado por vários bairros de João Pessoa, Nai – cujo espaço criativo se chama Ateliê Multicultural Elioenai Gomes – enfrenta o desafio de ser um dos poucos que ainda resiste com sua permanência em uma casa secular na Rua da Areia, 155, Varadouro – antigo reduto de cabarés e cafés concertos – do centro Histórico da capital paraibana.

A história dessa resistência, deixa bem claro Nai Gomes, não tem nenhum apoio ou parceria com qualquer órgão público da Paraíba, seja na esfera municipal, estadual ou federal.

“As pessoas pensam que estou aqui nesse casarão em parceria com a prefeitura ou que se trata de uma ocupação. Em primeiro lugar, eu detesto esse termo, ocupação; depois, não houve interesse nenhum da prefeitura, nem do estado, em criar um ambiente cultural nesse espaço. Estou aqui pela sensibilidade de um cliente, que já acompanha meu trabalho há anos, e me cedeu, em regime de comodato, o imóvel até então abandonado desde 1982, para criarmos uma atmosfera de arte e desenvolvermos ações afirmativas, sociais, artísticas e culturais para a sociedade”, esclarece Nai Gomes.

Artista visual ElioeNai Gomes, que resiste no centro histórico de João Pessoa. FOTO: Divulgação

O Ateliê Multicultural Elioenai Gomes vem oferecendo oficinas de artes e projetos contínuos, como a capoeira Angola para crianças e adultos, palestras, debates, encontros e festivais, além de abrigar coletivos de arte. “Quem quiser, pode chegar. Estamos abertos a receber todos os artistas e, por isso, somos o ateliê multicultural”, explica.

Comodato garante funcionamento durante 15 anos

Para garantir o funcionamento do ateliê com sua proposta de receber artistas de diversas áreas e realizar projetos culturais, Nai Gomes tem como garantia pelo menos 15 anos de permanência no prédio.

Isso está sendo possível através de um contrato de comodato assinado em cartório com o proprietário do imóvel que, inclusive, encontrava-se em estado de abandono até a chegada do Ateliê. O comodato é um empréstimo gratuito para uso, uma concessão de qualquer coisa móvel ou imóvel, por um certo período, com a condição de devolver ao indivíduo nas mesmas condições ao fim do prazo.

“Esse contrato de comodato é registrado em cartório, passado pela Prefeitura de João Pessoa, passado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba. O Iphan autorizou a restauração simplificada, já que o prédio hoje tem só as paredes. Ele foi ocupado até 1982”, explica.

Espaço único no centro histórico, ateliê é aberto a artistas de todas as vertentes. FOTO: Divulgação

O prédio tem 172 anos e no local funcionava uma movelaria. Um incêndio destruiu tudo em 1982. Depois disso, ficou abandonado até o início de 2023, quando uma tentativa de retomada de atividade no imóvel está sendo feita com a instalação do Ateliê Multicultural.

Segundo Nai Gomes, o que está sendo feito é uma reforma simplificada porque não tem como restaurar o prédio em seu estilo original. “É um contrato feito comigo e com o proprietário do prédio. Claro, com possibilidade de doação, mas isso só vamos ver com o tempo. Em todo caso, quinze anos são suficientes para trabalhar bastante e ser útil à sociedade paraibana”, ressalta o artista.

O início de tudo e o racismo estrutural

O Ateliê Multicultural surgiu de uma necessidade pessoal de Nai Gomes, mas foi sendo percebido como uma necessidade múltipla de vários outros artistas paraibanos. “Surgiu de uma necessidade minha enquanto artista. Desde o início da minha carreira tudo o que se exigia de um artista era ter um portfólio e sempre tudo ligado a galerias. Quando eu completei 15 anos com o meu próprio ateliê, eu percebi que as pessoas valorizavam a arte, mas não valorizam o artista, enquanto pessoa viva”, relatou.

A partir daí, segundo Nai Gomes, ele foi percebendo e reconhecendo que existe realmente o racismo estrutural, as galerias não optam pela mão-de-obra do artista negro e do indígena.

Anualmente, ElioeNai Gomes organiza festa no centro histórico para promover arte e identidade. FOTO: Divulgação

“Eu trabalho com o recorte dos povos originários. Essa é a temática do meu trabalho enquanto artista multivisual e sou um artista negro que trabalha a questão da negritude, do povo cigano, do povo quilombola. Como eu acredito que a arte é para todos e não deve ser elitista, procuro fazer da minha arte uma ferramenta potente de transformação social, de educação e de humanização. Foi aí que surgiu o Ateliê Multicultural há 18 anos’, destaca Nai Gomes.

Centro histórico como fortalecimento da identidade

O Ateliê Multicultural Elionenai Gomes tem como missão resgatar, fortalecer e expandir a identidade afro-indígena paraibana, utilizando a arte como ferramenta principal de todo o processo de transformação social. Ele é conhecido também como “quilombo urbano da paraíba”.

“Eu escolhi vir atuar no centro histórico de João Pessoa para dar visibilidade aos moradores dessa região. Também quero manter a minha própria identidade porque foi aqui no centro que eu estudei, foi aqui que eu vi meu primeiro pôr do sol, onde eu tive a consciência de que sou um ativista, foi o local onde realizei minha primeira exposição. Então, eu vim atuar aqui no centro com essa visão humanista da inclusão dos moradores na cadeia produtiva do turismo e de serviços”, descreve.

Alunos em um dos cursos oferecidos pelo Ateliê Multicultural em João Pessoa. FOTO: Divulgação

Ainda segundo Nai Gomes, sua instalação e resistência no centro histórico tem como objetivo tirar da invisibilidade os próprio moradores da região, pois há uma visão de que não há moradores ali, que se trata apenas de comércio – que, aliás, está em sua maioria, fechando as portas.

Degradação proposital para exploração imobiliária?

O que acontece que é o poder público não supre as necessidades dos moradores, como segurança humanizada, iluminação, calçadas, isso tudo seria o mínimo a ser oferecido para se ter uma vida digna. Quem mora na parte baixa é obrigado a subir ladeiras – e ladeiras esburacadas – para realizar comprar, buscar serviços de saúde, entre outras atividades cotidianas.

“Reconheço que há um interesse em degradar o centro histórico porque a nossa orla – nas praias de Tambaú, Cabo Branco, Bessa – já está chegando à saturação. Vai chegar um momento em que não há mais como crescer, então vão se voltar para o centro histórico. Com o abandono, os imóveis vão perder valor e a especulação imobiliária terá como adquiri-los muito baratos para erguer prédios e obter lucros cada vez mais exorbitantes”, analisa Nai Gomes.

Imagem do projeto de restauração do casarão no centro histórico de João Pessoa

Para finalizar esse raciocínio, ele diz: “Acredito que sem identidade não há memória e sem memória o ser humano fica vítima de qualquer discurso manipulatório”.

Premiações e reforma

A mais recente conquista ou reconhecimento ao Ateliê Multicultural Elioenai Gomes aconteceu em setembro, em João Pessoa. O Ateliê ficou entre os 10 projetos apresentado na Expo-Favela Paraíba, que irá representar o Estado na Expo-Favela nacional, que vai acontecer em São Paulo.

Cada um dos projetos foi contemplado com um aporte financeiro no valor de R$ 40 mil pelo Governo do Estado para investir em seus negócios. “Eu vou utilizar essa verba para concluir a reforma simplificada do Sobrado Azulejado. Estamos em campanha de visibilidade e há mais de um ano e estamos agora na fase dois da campanha, que consiste em arrecadar recursos financeiros através da disponibilização de todo o seu acervo a venda, como também contratando nossos serviços artísticos. O orçamento para a restauração total do imóvel é muito alto”, disse.

Projeção de como ficaria o espaço interno do casarão reformado no centro histórico de João Pessoa

Outros reconhecimentos já ocorreram, mas nunca como parceria para manter o espaço funcionando, apenas como título. Além das premiações tidas como oficiais, vários grupos de cultura popular, músicos e outros artistas surgiram a partir do Ateliê, que abre seu espaço para os artistas que não possuem local para seus ensaios.

Serviço

Interessados em colaborar com a restauração devem fazer contato pelo Instagram @atelie_multicultural ou e-mail ateliemulticultural@hotmail.com

Esta reportagem foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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