Além da Barricada

Créditos: Reprodução do Facebook

Domingo

O dia estava ensolarado, as crianças brincavam no meu quintal e diferente dos dias costumeiros, eu não me irritei. Deixei que subissem nas árvores, fui até o mercado e, na volta, carregava nas mãos uma sacola com iogurte e biscoitos.

A conta não era nada absurda. Diminui as cervejas e pronto, tudo certinho para levar uns mimos para os dois meninos da vizinha. A recompensa? “Ô manhêeeeee! Olha o que a Valéria trouxe pra genteeee…é BIS-COI-TOOO”.

Sim, na maioria das vezes eles trocam meu nome pelo da minha irmã. Mas e daí? Quem se importa?

Segunda-feira – 05:00h

Saí para trabalhar. Ainda era horário de verão, mas eu precisava chegar até a casa do meu amigo para aproveitar uma carona para a Ilha do Fundão e de lá seguir de BRT para o trabalho. A lua ainda estava no céu, mas a gente iria passar em mais duas esquinas para dar carona a mais duas pessoas. Assim seguimos, em plena segunda feira, com o pagode alto no carro me fazendo lembrar os domingos de almoço que tínhamos em casa, quando ainda era adolescente. Quando eu queria ser tudo que pudesse, sem limites.

“Sonhar é de graça menina. Aproveite cada segundo”, dizia minha mãe.

Fim de expediente.
Cheguei em casa às 21h, exausta. Afinal, na volta não tem carona e muito menos espaço no ônibus para sentar. São em média 3h entre Barra da Tijuca e Duque de Caxias, isso se o motorista for legal e não passar pelo Fundão.  Mas quem se importa? Aquele dia eu tinha fechado mais uma missão, o projeto finalmente tinha sido aprovado pelo cliente e a menina da Baixada Fluminense, dava o recado de que a gente consegue.

Mas no meio do caminho tinha uma barricada.

Epa! Isso não estava aqui quando eu saí, pensei! Estranhei e meio sem entender, entrei em casa e já fui perguntando o que havia acontecido. Nenhuma explicação parecia fazer sentido e dali em diante, a cada um que perdíamos, a cada tiro que eu ouvia, a cada operação, obviamente não anunciada, ou a cada mãe que chorava, tudo parecia fazer menos sentido ainda. É como se todo esforço tivesse um peso muito maior.

Quantas barricadas precisamos empurrar, driblar, para chegar do outro lado vivos? Como a gente faz pra meditar e aprender que esse não é o nosso Karma?  E pra quem chega lá, como fica a responsabilidade e a autocobrança de mudar os territórios? E quando isso não acontece o que a gente faz? Se culpa e se acha indigno de um avanço individual para só então avançar no coletivo? Pegar impulso, fôlego!

Eu não quero mais falar de tristeza, da falta de condições básicas, do difícil acesso para alcançar mais lugares altos, dos impedimentos para ser referência, sem ter que passar recibo de pobreza, “certificado de favelada” ou perder meu lugar de fala por ter alcançado um lugar mínimo de ascensão.

Quero conhecer as fronteiras da minha alma, como disse Fernando Pessoa, para que eu possa finalmente dizer: eu sou eu.

Quero ultrapassar o Oceano Atlântico e permitir que mais jovens, de 16 anos, cheguem à Bélgica para discursar sobre Direitos Humanos, percorrendo com plenas condições os 9.431 km em busca de seus sonhos. Como fez o Gelson Henrique na primeira vez que saiu do país para representar os jovens de Campo Grande, no Rio de Janeiro.

Quero gritar no meio da favela que #PavunaVenceu ao abrir caminho para Elaine Rosa chegar até a Califórnia, representando a Feira Crespa para o mundo, depois de percorrer 10.424km até a Universidade de Stanford.

Desejo que mais jovens sejam convidados a cruzar o oceano para sair da Maré e trabalhar em Luanda, como tem feito Ana Paula Lisboa fazendo pontes de mais de 6 mil km entre um país e outro.

Quero celebrar a ida de cinco jovens com diferentes histórias de transformação, que juntos vão da França à Angola representando tantos outros.  Seja individual ou coletivamente como tem feito o Dream Team do Passinho.

Quero ver poesia chegar ao Peru, pela voz de mais meninas negras que, assim como eu, pouco conheceram seus pais, mas que como a MC Martina (Sabrina), pegam sua resiliência e se tornam porta voz, abrindo caminhos para outras iguais.

Que a gente avance as barricadas e alcance mais que os quase 9 mil km que Raul Santiago está percorrendo esses dias, articulando e realizando pontes com um povo igualmente potente aos cariocas que citei acima e que vivem em Nairobi no Quênia.

Sabe o que eu quero de verdade, mesmo? Que os meninos do início dessa história possam encontrar recursos, oportunidades e escolhas diferentes. Que eles, mesmo que ainda sejam tão pequenos, consigam se manter vivos para ultrapassar oceanos e fronteiras, conquistando tudo o que for capaz de transformar suas vidas.

Que possam encontrar seres humanos disponíveis a injetar ânimo. Como aconteceu comigo durante minha jornada ao me deparar com a Eliana Mara Chiossi que, aos 35 anos, após sair do Itaim Paulista, concluiu seu mestrado e foi apresentar sua tese em Oxford, na Inglaterra. Isso em 1996, quando eu ainda sonhava em ser bailarina, professora, médica, jornalista e, hoje, é professora doutora em letras pela UFBA, se reinventando diariamente aos 55 anos para transformar a sociedade, através de uma educação para além da academia.

Que as barricadas não nos impeçam de viver sem limites e com um nova olhar, novas oportunidades e muito mais chances de resgatar os que ainda não chegaram lá.

Que possamos ser ponte para tantos outros conquistarem seus territórios de mudanças. Sem culpa, sem cobrança destrutiva, apenas não esquecendo de que somos mais que nossos lugares de resistência. Seja na Argentina, na França, no Quênia, no Chile ou ali em Portugal, nós somos potência, totalmente capazes de ocupar todos os lugares. Mesmo que nos digam o contrário.

“Não se limite a fronteiras: saia para o novo. A você é dado sentir o gosto da liberdade de escolha”, Alberto Saraiva.