História negra ressurge no bairro oriental da Liberdade, em São Paulo

Rosto da estátua de Madrinha Eunice na Liberdade.
Fachada da Capela dos Aflitos em 1939, quando tinha 160 anos. FOTO: Hermann Graeser

Neste mês de abril, quando for divulgado o resultado do concurso que escolherá quem vai construir o Memorial do Aflitos, no bairro da Liberdade, será dado mais um passo para a ressurgimento de parte apagada da história de negras e negros na região central da capital paulista, onde, desde o início do século 20, predomina a cultura Oriental, representada por japoneses e cada vez mais coreanos e chineses.

O Memorial será erguido exatamente onde, em 2018, foram descobertas ossadas na área em que funcionou, por quase um século, o primeiro cemitério público de São Paulo, o Cemitério dos Aflitos, entre 1775 e 1858. Nele, eram enterrados corpos de escravos, indígenas, indigentes, excomungados, criminosos, muitos executados a duas quadras de distância, no Largo da Forca, a última que funcionou em São Paulo, onde hoje está a Praça da Liberdade, ponto central do bairro turístico.

Nessa praça, há um ano, está instalada a estátua de Madrinha Eunice, o ponto mais visível da história negra no bairro. Se depender da discreta placa no chão, não se perceberá a dimensão da presença afrodescendente na área. No quadrinho de mármore que se confunde com o calçamento, cuja informação em letras brancas vem sendo apagada pelo pisoteio constante, lemos que Deolinda Madre, nascida em Piracicaba, em 1909, morreu em São Paulo, em 1995, e “foi precursora do samba paulistano. Em 1937, fundou a escola de samba Lavapés no bairro da Liberdade”.

Madrinha Eunice é a segunda estátua de uma série de monumentos em homenagem à história de negras e negros na capital. É um marco importante, mas discreto, sobretudo se comparado à reforma da Capela dos Aflitos, ao filme sobre o herói Chaguinhas, ainda inédito ao público, uma história em quadrinhos e um projeto de lei, ações que recuperam fatos históricos que poucos conhecem: a Liberdade foi um bairro de população preta antes da presença oriental.

Ao desenterrar ossadas, emerge a história

O Memorial dos Aflitos, cujo concurso promovido pela secretaria Municipal de Cultura definirá seu construtor, começa a ser reivindicado após a descoberta de nove ossadas no terreno onde se construía um prédio comercial, em 2018.

A área de pouco mais de 400 metros quadrados está ao lado da Capela dos Aflitos, referência negra histórica. As pesquisas arqueológicas resultaram em descobertas valiosas, como contas de vidro no pescoço de uma ossada, adorno dedicado a Ogum, orixá de religiões de matriz africana. Os restos mortais têm mais de duzentos anos e remontam à época em que funcionava o Cemitério dos Aflitos e de intensa povoação de descentes africanos escravos e livres.

O Memorial dos Aflitos deverá ter duas entradas. Uma delas, na rua Galvão Bueno, a mais movimentada da Liberdade, vai evidenciar a cultura negra – se tivesse somente uma entrada no lado oposto, a construção ficaria escondida, pois a Rua dos Aflitos é uma viela pouco percebida, de uma quadra, no final da qual está a Capela dos Aflitos, imperceptível à maioria dos turistas.

Segundo um dos padres responsáveis pela Capela, o negro José Enes de Jesus, “fizemos um ato na descoberta das ossadas. Existe um lado místico, transcendente. É muito importante buscar, de todas as maneiras, desenterrar aquilo que historicamente foi soterrado. Não sei por que isso tudo está vindo à tona agora, mas a gente acredita que o homem lá de cima tem o seu tempo. Uma coisa puxa a outra.”

Padre José Enes de Jesus em mestrado em igrejas antigas, como a Capela dos Aflitos. FOTO: Marcos Zibordi

Igrejinha degradada de imenso valor histórico

A Capela de Nossa Senhora dos Aflitos, construída em 1779, está escondida entre os muitos atrativos da Liberdade. Tem a largura da rua, nem dez passos de profundidade, poucos bancos. Após mais de dois séculos resistindo como o último resquício da periferia preta de São Paulo, será restaurada. A autorização saiu em janeiro.

A igrejinha está deteriorada. Tem goteiras, rachaduras e visíveis desgastes causados por 244 anos de resistência. Serão retirados elementos que não fazem parte da construção original, os “espúrios”, em linguagem arquitetônica. O toldo e as grades frontais sairão da frente da Capela. E, internamente, entre outras melhorias, devem ser reconstruídos o altar e o local onde as velas são acesas, o velário, que traz risco de incêndio.

Segundo o arquiteto Igor Carollo, autor do projeto de restauração encomendado pela Cúria Metropolitana de São Paulo, agora a luta é pela captação de recursos. Ele calcula o valor da obra em R$ 2 milhões e de 9 a 12 meses de trabalho. Não há data para o início da reconstrução, por dois motivos: falta de dinheiro e processo judicial.

O Ministério Público aciona a Cúria Metropolitana de São Paulo por eventual responsabilidade na degradação da igreja. Segundo Eliz Alves, da União dos Amigos da Capela dos Aflitos, “nosso maior problema continua sendo verba”.

No final do beco, só a ponta da torre da Capela dos Aflitos pode ser vista. FOTO: Marcos Zibordi

História em quadrinhos une negros e orientais na Liberdade

Além da reforma da Capela e da construção do Memorial, em dezembro do ano passado é relançada uma história em quadrinhos que recupera a história de negras e negros na Liberdade.

Chama-se Indivisível, de Marília Marz. O nome da obra se explica pelo fato de que orientais e negros estão intrinsecamente ligados ao mesmo bairro. Por isso, a contracapa é também uma capa, ou seja, cada lado do livro leva à história de uma etnia, cujas narrativas se encontram nas páginas centrais.

A história em quadrinhos surgiu de um trabalho de conclusão de curso em Arquitetura. A autora costuma frequentar a Liberdade com amigas desde a adolescência. Fã de mangás, desconhecia a origem negra do bairro.

“Um professor me disse que a Liberdade era uma bairro negro. Aquilo me pegou de surpresa e, como é algo que fala diretamente à minha identidade como mulher negra, eu falei, nossa, é o trabalho que eu quero fazer. Achei que eu conhecia o lugar, mas na verdade tinha toda uma parte da história que eu não fazia a menor ideia”.

Em setembro de 2022, três meses antes do lançamento por editora da história em quadrinhos Indivisível, a Justiça determina a desapropriação do terreno onde será erguido o Memorial dos Aflitos. A decisão dá à Prefeitura a posse da área que abrigará a construção.

Página da história em quadrinhos Indivisível, de Marília Marz, sobre negros e orientais na Liberdade

Documentário recupera mítico Chaguinhas

Poucos meses antes da história em quadrinhos ser lançada, em meados de 2022, é finalizado o documentário Chaguinhas, que recupera a impressionante história do herói negro da Liberdade, atualmente cultuado como santo – há um projeto de lei de autoria da deputada estadual Leci Brandão (PCdoB) para transformar seu culto em Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de São Paulo.

Não se pode compreender a importância da produção cinematográfica sem conhecer minimamente o lendário soldado, executado duzentos anos antes do trabalho audiovisual de dois alunos do Senac, filme premiado e inédito ao público, ao qual a reportagem teve acesso.

A trajetória de Chaguinhas é preservada oralmente e em fontes acadêmicas, como o longo artigo de Antônio de Toledo Piza, publicado em 1901 na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.

Chaguinhas é o cabo Francisco José das Chagas. Em junho de 1821, ele e outros soldados lideram revolta em Santos. Estão sem receber há cinco anos. Tomam a cidade, libertam presos, prendem autoridades, saqueiam alimentos, roubam armas, sequestram homens ricos, fuzilam navio português no porto. Dias depois, são presos.

Trazido para São Paulo, Chaguinhas e o soldado Joaquim José Cotintiba estão condenados à forca, mas não há tal equipamento de morte na capital paulista. Ordem governamental manda construí-lo “no lugar mais público e vizinho do cemitério geral”, narra Piza, e “de madeira duradoura”.

Erigido onde hoje é a Praça da Liberdade, o que acontece na execução é praticamente inacreditável.

Corda da forca arrebenta três vezes

O texto publicado pelo historiador Antônio de Toledo Piza é minucioso. Chaguinhas e o companheiro estão presos a duzentos metros da forca. Segundo o historiador, não se sabe o dia exato da execução, que deve ter ocorrido entre janeiro e maio de 1822 – outros relatos históricos, como o do padre Antônio Diogo Feijó, Paulo Cursino e de Patrícia Oliveira, indicam outras datas, 19 e 20 de setembro.

As fontes são unânimes em afirmar que, na hora da execução, rompe a corda que enforcaria Chaguinhas. Diante disso, o povo coloca sobre ele uma “bandeira de misericórdia” e segue até o palácio governamental clamando pela diminuição da pena, conforme o costume da época. Os gritos de “liberdade” por Chaguinhas teriam modificado o nome de Bairro da Pólvora, em referência a um depósito do explosivo construído no local, para Liberdade.

As autoridades não cedem ao pedido de clemência e o ritual de execução se repete: o condenado tem as mãos amarradas, capuz colocado no rosto e, quando o cadafalso se abre debaixo dos pés, a corda arrebenta novamente. “Supersticioso, horrorizado e indignado”, narra o historiador, o povo vai novamente ao palácio governamental exigir a diminuição da pena. O ódio ao negro rebelde é enorme: a indulgência é negada pela segunda vez.

Na terceira tentativa, ao invés da corda comum, um laço de amarrar bois, de couro trançado, buscado no matadouro, envolve o pescoço de Chaguinhas. Narrativas populares falam em um terceiro rompimento e morte por espancamento. Assassinado, o corpo é levado ao cemitério próximo, onde ossadas são encontradas em 2018, local em que será construído o Memorial dos Aflitos.

Piza observa que o corpo de Chaguinhas é sepultado sem os exames médicos de praxe. Uma cruz erguida no local da morte vira local de peregrinação, rezas e comemorações religiosas. Com o tempo, ruas são abertas, casas construídas, mas permanece o Largo da Liberdade, hoje a conhecida praça diante estação de metrô do bairro turístico.

Apesar das mudanças profundas pelas quais passou o bairro, apagando quase toda a história negra, o culto ao soldado negro sobrevive. Na Capela dos Aflitos, todo ano, no dia 20 de setembro, é rezada a missa em homenagem a Chaguinhas, fé que o documentário com seu nome fixa pela primeira vez.

“Teve algo de divino”, diz diretor do documentário

Documentário ainda inédito ao público recupera, pela primeira vez em vídeo, mítico Chaguinhas. FOTO: Divulgação

“Eu sei que isso vai parecer papo de maluco, mas tem muita coisa que aconteceu durante esta produção – eu sou uma pessoa religiosa – e tenho certeza absoluta que teve algo de divino”, conta Diego Hajjar, um dos diretores do documentário Chaguinhas, produzido durante a pandemia de coronavírus. “Tinha algo ali nos ajudando o tempo inteiro, entenda como quiser.”

Para ele, há um apagamento histórico de Chaguinhas. Com exceção das pessoas ligadas ao seu culto na Capela dos Aflitos, não se fala sobre o rebelde soldado negro. Seu companheiro na direção do documentário, Fernando Martins, pretende combater isso.

“Desde o começo do projeto a gente viu que não ia ser só uma obra artística, um projeto da faculdade, seria uma maneira de espalhar a história do Chaguinhas. Mas a gente não achava que o filme ia tomar as proporções que tomou e continua tomando”.

Diego Hajjar conta que a ideia do documentário vem da leitura da história em quadrinhos Indivisível. “Eu fiquei completamente em choque. Saí contando para todos os meus amigos se eles sabiam que a Liberdade era um bairro negro”.

Culto a Chaguinhas pode virar patrimônio cultural

A pedido da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (UNAMCA) em 2020 a deputada estadual Leci Brandão (PCdoB) apresenta projeto de lei para tornar o culto a Chaguinhas um Patrimônio Cultural Imaterial do Estado de São Paulo. Segundo ela, “esse soldado negro é uma prova da religiosidade, da fé da população negra. Já faz muito tempo que essa luta existe. Vai ser uma vitória da história do povo negro, com certeza absoluta”.

A devoção a Chaguinhas pode ser constatada toda segunda-feira, em dois horários, na Capela dos Aflitos, onde são rezadas missas em sua memória. Há uma porta de madeira, que a tradição acredita ter sido a que trancou Chaguinhas antes da execução, diante da qual são pedidas intervenções espirituais. O ritual de fé consiste em enfiar os pedidos escritos nas frestas da porta e bater três vezes na madeira.

É o que faz desde criança a devota Denise Vitoriano, de 66 anos. Sua mãe a trazia para a Capela dos Aflitos, onde aprendeu “essa cultura de fazer os pedidos”. Adulta, virou professora e, quando deu aula em escola próxima, esperava ansiosamente o ônibus para, depois do trabalho, chegar a tempo na missa em homenagem a Chaguinhas.

Ela é a favor da restauração e do projeto de lei da deputada Leci Brandão. “Eu vejo com muitos bons olhos, desde que a gente não fique impedido de fazer coisas na capela. Quero um Chaguinhas com liberdade”.

Devota de Chaguinhas, Denise Vitoriano frequenta a Capela dos Aflitos desde criança. FOTO: Marcos Zibordi

O projeto para transformar o culto a Chaguinhas em patrimônio está na Comissão de Educação e Cultura e o parecer deve ser dado pela deputada estadual professora Bebel (PT). Ela apoia a “iniciativa da maior importância”, pois “é preciso recuperar a história daqueles que são pouco lembrados ou esquecidos pela história oficial”.

Marcos Zibordi

@mzibordi

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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