Vocação para as trevas

Como dizia Millôr Fernandes, temos um grande passado pela frente. Imagem: reprodução internet.

Faz pouco tempo uma declaração de Jair Bolsonaro passou quase despercebida, merecendo quando muito comentários jocosos nas redes. Foi quando ele, em nova tentativa de minimizar a figura de seu vice Hamilton Mourão, pediu desculpas ao deputado príncipe Luis Philippe de Orleans e Bragança por não tê-lo convidado a compor a chapa vitoriosa nas últimas eleições.

A preferência de Bolsonaro pode ser vista como maneira tardia de descartar o general Mourão na campanha, mas também insinua (se não revela) a vocação imperial, a tendência absolutista que predomina no inconsciente nacional.

O Brasil é um país velho também neste aspecto, tem saudades de um rei, na impossibilidade dele um general, alguém para exercer o papel de pai, a autoridade que não se questiona na estrutura social retrógrada, apadrinhada antes pela igreja católica e hoje pela igreja evangélica inspirada, mantida e subsidiada pela sua matriz conservadora norte-americana.

O autoritarismo brasileiro é o mesmo desde a colônia e sempre foi franco e descarado. Nunca fomos livres como outras nações vizinhas sul-americanas que conquistaram a liberdade dos espanhóis. Aqui deu-se que o Dom João VI, de volta a Portugal, recomendou expressamente ao filho que declarasse a independência e pusesse a coroa na cabeça “antes que algum aventureiro lance mão”.

Por “aventureiro” o rei entendia o imigrante português abastado e em menor escala o brasileiro rico. Daí o Brasil nasceu da vontade das elites, sem guerra, sem república e com um imperador filho do colonizador.

Nascemos europeus imperiais sem pedigree, apenas mesuras ensaiadas de cachorros vira-latas diante de um trono sem história, duques, condes, marqueses de rabicó e viscondes de sabugosa. Já entramos velhos, defasados e antiquados no mundo.

Os dois imperadores que tivemos foram coroados na igreja do Carmo, ainda de pé no centro do Rio de Janeiro. Nenhum foi militar. Aliás, as Armas se ressentem desta lacuna histórica: o único herói fardado foi o alferes Tiradentes, pobre, traído e enforcado, esquartejado, cabeça e membros espetados nos postes das Minas Gerais. Sua casa foi derrubada e o terreno salgado para que não germinasse vida alguma ali.

Os países sul-americanos tornaram-se repúblicas independentes, mas nós sempre fomos europeus exilados em nosso próprio chão. Só proclamamos a nossa república em 1889, na esteira da abolição da escravatura – mais um resultado da insatisfação dos donos de terra e escravos do que do valoroso movimento abolicionista. Continuamos escravagistas e antidemocráticos.

A república veio na figura de um Deodoro da Fonseca febril, montado no cavalo tangido para o Campo de Santana, o animal e o marechal forçados em seus papéis. Deodoro era próximo de D. Pedro II, mas as circunstâncias históricas definiram o enredo. Assim a república nasceu militar e prosseguiu com Floriano Peixoto, o “Marechal de Ferro”, nosso segundo presidente.

Além desses e dos cinco da ditadura militar, tivemos três eleitos: Hermes da Fonseca, Eurico Gaspar Dutra e Jair Bolsonaro, convencidos de que militar vale e pode mais do que civil. Daí nossa república ser o que somos ao longo dos 130 anos de proclamação comemorados na metade do mês passado.

Não temos um bom retrospecto republicano, salvo pela constituinte de 1946, ao fim do Estado Novo getulista, com legalização dos partidos e eleições livres nas quais elegeram-se vários representantes pelo Partido Comunista. Entretanto, em maio do ano seguinte, menos de um ano depois, o partido teve o registro cancelado e seus deputados foram cassados.

Desta forma pouco democrática, o Brasil vem tropeçando na história, perpetuando elites absolutamente desinteressadas no estado de direito, nas liberdades individuais, na construção da cidadania e na igualdade. É tanta ignorância sobre si mesmo que o povo apoia e aplaude o opressor e se dá por feliz com a bola rolando, mas é indiferente à escola de seus filhos e às vitimas da insegurança pública.

Tudo isto parece desfilar diante dos meus olhos como num filme, quando o desembargador gaúcho afirma que a escritura de um imóvel é detalhe, o que importa é quem o utiliza, e seu colega em Belém do Pará repete que os índios jamais gostaram de trabalhar e por isto os negros, escravizados por negros, foram trazidos para a escravidão que, afinal, lhes foi benéfica.

Absurdos deste calibre não surgiram na cabeça dos excelentíssimos juízes, são ensinados desde há muito nas escolas elementares a crianças que os repetem pela vida, igual o desembargador paraense e o próprio vice-presidente da república, Hamilton Mourão, que não era ninguém na fila do pão até o exército o indicar vice de Bolsonaro.

Como escrevi lá em cima, o Brasil sente nostalgia do passado anterior ao descobrimento, mas não aqui, com os indígenas. O passado medieval europeu em que os povos tinham horror ao saber, queimavam gente em fogueiras, acreditavam na Terra plana, feitiço, trovão e raio, abominavam qualquer novidade e iam à igreja para aprender como se comportar.

Quando dizem que o Brasil experimenta a mescla de George Orwell, Aldous Huxley e o seriado O Conto da Aia, o que me vem à mente é o italiano Giovanni Boccaccio com seu Decameron do século XIV, lama, merda e baixaria para todos os desgostos. Odiamos a ordem e o progresso, somos a negação da inteligência, somos o elogio à insensatez.

Porque não conhecemos a própria história, temos muita dificuldade, quando não impossibilidade, de corrigir distorções e erros. Desde a primeira constituinte, no ano seguinte à independência, o imperador se reservou o direito de vetar o que lhe desagradasse, o que levou à dissolução da assembleia e a promulgação da constituição ditada por ele.

Mesmo a constituinte de 1946 se instalou sob a inspiração da constituição de 1937, a polaca, promulgada por Getúlio no primeiro ano da sua ditadura, mantendo poderes excepcionais ao chefe do estado. Sempre com apoio do capital nacional e estrangeiro, jamais visando o bem comum, o povo.

Até os governos do “Lulinha paz e amor”, o conciliador que manteve a roda girando para os ricos, mas reservando uma pequena parte para os pobres, desagradou os lucros exorbitantes do capital.

Parece que o Brasil está fadado a viver na Idade Média, plantando e exportando, tendo as riquezas naturais exploradas, sem acesso a tecnologias avançadas, a um lugar digno entre as nações. Rússia, Índia, China e África do Sul, parceiros do Brics, pouco a pouco nos relegam à condição de um país que abdicou da luta pela sobrevivência.

Somos um “case” para brasilianistas estrangeiros se debruçarem em busca de explicações políticas, econômicas e psicológicas para a vocação vira-lata do povo que, uma vez tendo se sentado à mesa, preferiu voltar a catar as migalhas no chão.