VIDIGAL: vidas e memórias em movimento – PARTE I

Foto: Miriane Peregrino

Localizado na Avenida Niemayer, Zona Sul do Rio, o Morro do Vidigal tinha cerca de  nove mil moradores. Os primeiros moradores do Vidigal chegaram na década de 1940.  A Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi inaugurada em 18 de janeiro de 2012 e abrange geograficamente os morros do Vidigal e da Chácara do Céu. Essa é a 1ª parte de uma matéria sobre o Vidigal abordando turismo, história e memória da favela após a implantação da UPP.

 Por Miriane da Costa Peregrino

 1. “O Vidigal é Nosso”, dizia a placa

Na praça da favela, no alto de uma árvore, uma placa: “Projeto: ‘O Vidigal é Nosso’”. Uma frase curta, mas curiosa: quem ali sentia a necessidade de afirmar aquilo numa placa pública, pendurada logo na entrada da favela, como uma afirmação de resistência e também como uma advertência?

Alguns moradores afirmaram que a placa tinha sido iniciativa de um rapaz chamado “Emerson do cachorro-quente”, mas quando tentei localizá-lo me disseram que não morava mais ali. Uns afirmaram que sua família não pode mais pagar o aluguel do Vidigal e foi morar em Xerém, outros contaram que ele era um rapaz talentoso e que foi vencedor da 1a Corrida do Vidigal. Surgiram ainda outras histórias. O fato é que a frase é marcante e provoca reflexões sobre o “nós” que está embutido no “nosso” e que se opõe a um “eles”.

Foto: Miriane Peregrino
Foto: Miriane Peregrino

No contexto das recorrentes denúncias de moradores sobre a crescente especulação imobiliária no Vidigal e a onda de estrangeiros comprando imóveis na favela (incluindo ai os nomes de Madona e David Beckham), é fácil entender que o “nós” remete aos moradores antigos da favela, os que nasceram e/ou cresceram ali e ali residem há muitos anos em oposição ao “eles”, aos estrangeiros e a chamada “playboyzada” que passou a frequentar e mesmo residir no morro após a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em 18 de janeiro de 2012. A dicotomia existe, é verdade, mas ela não é suficiente para explicar as profundas transformações que atingem o Vidigal. Entre janeiro e fevereiro deste ano, ouvimos alguns moradores da favela e suas falas apontam os diversos interesses em jogo na disputa por esse território.

2. Vidigal na moda, favela em crise

Por sua localização privilegiada entre São Conrado e Leblon, por sua vista deslumbrante e pelo maciço investimento de dinheiro público no projeto de “pacificação” das favelas cariocas, o Vidigal está atraindo turistas e moradores com maior poder aquisitivo. As consequências vão desde engarrafamentos de 1h dentro do morro, obras e mais obras dentro da favela (tanto para ampliação de casas quanto para novas construções),  recorrentes quedas de luz e crescente especulação imobiliária.

17h. Trânsito completamente engarrafado, caminhão e trabalhadores da Light num poste do Largo do Santinho. Moradores se queixando da falta de luz. O taxi não conseguiu passar: “Tá faltando luz direto. Tá caindo direto. Ontem faltou luz por umas 3 ou 4 horas”. – informou o taxista e morador do Vidigal, Orlando Souza, 44 anos.

Os engarrafamentos também são queixa do morador Jaime, 55 anos: “É muito caminhão. É caminhão da Comlurb, caminhão da prefeitura, caminhão de entrega, caminhão de loja de móveis. Ai parece que combinam de vir tudo numa hora só e pronto! Até pra moto que é de fácil acesso, fica difícil subir”

Fim de tarde no Largo do Santinho: engarrafamento e queda de luz. Foto: Miriane Peregrino
Fim de tarde no Largo do Santinho: engarrafamento e queda de luz. Foto: Miriane Peregrino

Por ruas, becos e vielas a quantidade de sacos de cimento e pedra para obras também chamam a atenção. O morador e mototaxista Bianor, 43 anos, comenta a situação das obras: “Tem muita obra, mas é pra eles mesmos [os gringos], é pra hostel. Morador não tem condição de fazer uma obra dessas. Se você olhar é tudo chapa de aço. Morador não tem condição de fazer isso, casa de morador é concreto, tijolo…”

Obras no alto do morro. Foto: Miriane Peregrino
Obras no alto do morro. Foto: Miriane Peregrino

A moradora Rosa Batista, 57 anos, aponta para a questão da descaracterização da comunidade e para o fato de que a infraestrutura do Vidigal não mudou, não acompanha o processo de aumento populacional: “Cada vez tem mais gente vindo morar aqui… tá havendo uma mudança de moradores. Aqui era um lugar que todos se conheciam e agora é um mar de gente diferente, empreendimentos diferentes, principalmente estrangeiros” – e acrescenta – “E a infraestrutura é a mesma de 9 mil moradores! No posto de saúde tem cerca de 16 mil famílias cadastradas e a infraestrutura continua a mesma!”.

 3. Turismo em alta… pra quem?

Embora seja verdade que as trilhas e o cenário do Vidigal sempre atraíram turistas, o fato é que com a instalação da UPP, em 2012, o fluxo, não só de turistas mas também de novos moradores, estrangeiros ou não, foi mais do que triplicado.

Mesmo que no Vidigal a política de segurança pública não tenha sido oficialmente complementada com uma política de turismo, como vimos na favela Santa Marta, na prática cotidiana ela é visível. O morador Jaime se queixa e questiona a lógica da pacificação na favela e a ausência de outras políticas públicas para o Vidigal: “Fim de ano você tinha que ver: subiu muito turista aqui, independente de ser de outro país ou não. Com a pacificação do morro o que seria mais essencial é uma assistência social, cadê que eu não vejo?”

Outro problema apontado pelos moradores é que quem lucra com esse turismo não são os moradores da favela e essa atividade não gera renda que fique na própria comunidade.

“Quem explora o turismo mesmo é o guia que vem lá de baixo. Agora que o pessoal está começando a criar uma conscientização de ter o nosso guia” – afirma Hiran Lima, 47 anos – “Mas você tem o processo de pessoas que vem lá de baixo com um grupo de estrangeiros, cobrando x por pessoa. Eles sobem e não consomem nada dentro da comunidade, fazem o que eles querem: vão lá pro alto, vão pra trilha… e o que eu vejo é que tem, por parte deles, uma falta de consciência ecológica, tá tendo muito desmatamento, muito lixo pelo caminho… A subida tá desordenada, acho que caberia a algum órgão, interno da comunidade ou de fora, ver isso”

Na opinião do morador Roberto, 31 anos, era necessário estabelecer uma taxa para se cobrar pela subida e esse valor deveria ser revestido para a melhoria da favela: “O turista vem, mas tenta gastar o mínimo que pode. Pra mim tinha que ter uma taxa, teria que pagar mesmo pra poder visitar. Se paga 35, 60 reais em outros lugares ai, só porque é uma comunidade não vai poder pagar?”

O mototaxista Bianor também reclama que os turistas e esses novos moradores que chegam no Vidigal não deixam legado para a comunidade: “Eles não deixam nada pra gente aqui de legado. Eles não gastam nada aqui. A única coisa que alguns fazem é subir de moto”.

A cobrança de um legado para a comunidade do Vidigal, que aparece na fala de todos os entrevistados, também é uma insatisfação de Rodrigo Ferreira, 34 anos, membro da Associação de Moradores do Vidigal.

“Eles não tem deixado um legado aqui na comunidade. Eles estão explorando a comunidade, a imagem, e não estão deixando nada, algo que a gente pudesse futuramente aproveitar” – mas Rodrigo pontua – “Nesse caso, não vejo nada de positivo não, em contrapartida é democrático. O espaço taí, as pessoas tem esse livre arbítrio de poder transitar aqui. E como você vai impedir que as pessoas transitem aqui? É contraditório. Ainda que elas venham pra cá e não deixem legado elas tem esse direito, é o progresso. Não necessariamente quando elas vem pra cá tem que deixar algo aqui. É como se a gente tivesse indo pro Leblon, não necessariamente quando a gente desce pro Leblon a gente tem que deixar um legado pro Leblon. A gente simplesmente vai pro Leblon, assim como as pessoas vem pro Vidigal. Elas vem pro Vidigal simplesmente. O direito de ir e vir é assim, as pessoas simplesmente vem. É complicado, é contraditório”.

Na opinião de Rodrigo, o Vidigal é de quem gosta do Vidigal, não necessariamente de quem nasceu e mora ali. Rodrigo reconhece que há algumas pessoas que chegam querendo ajudar, mas nesse momento em que a favela ganha grande visibilidade há muitos oportunistas também: “O Vidigal é uma daquelas comunidades onde pessoas que tem um pouco mais de instrução viram que podem investir e dar muito certo. Poucos lugares no Rio você tem um visual como esse, o potencial que nos temos aqui”.

Na avaliação de Rodrigo há no próprio Vidigal pessoas com ideias para desenvolvimento local, mas que não possuem capital para investir nisso: “Você tem muito talento no Vidigal, e nós aqui dentro temos até essa visão, mas não temos como explorar. A gente tem até as ideias mas não temos como captar, como investir nas nossas ideias. Mas o empresário [que vem de fora] tem como, tem a mesma visão e tem o capital. Difícil não é a ideia, o difícil é o capital”.

4. Festa Pra Quem?

Percebemos que o turista, estrangeiro ou não, que sobe o Vidigal não está necessariamente interessado no favela tour que se vê na Rocinha, por exemplo. Embora essa prática também exista no Vidigal, a maioria desses turistas está mais interessada em fazer a trilha do morro Dois Irmãos e ir nas festas ditas alternativas que ocorrem no alto da favela a preços bastante salgados para o gosto e o bolso do morador favelado.

“Os eventos na comunidade não são pra quem mora no morro isso é verídico, é fato! Isso é tudo feito pro pessoal subir, evento caro, bebida caríssima. Já é uma coisa pra separar” – afirma o morador Hiran Lima – “Se você entrar num evento desse vai ver um ou dois moradores, o resto é todo mundo lá de baixo”.

O morador Orlando Souza comenta que tem vários estabelecimentos comerciais caros no alto da favela: “Tem Belmonte, Laje do Vidigal… quem não subia a favela agora tá subindo direto. Os moradores não vão porque é pra bacana. Custa muito caro, não é nada popular”.

Turistas em terraço  no Arvrão, alto do Vidigal. Foto: Miriane Peregrino
Turistas em terraço no Arvrão, alto do Vidigal. Foto: Miriane Peregrino

 “Os moradores em si não tem acesso as festas porque é muito caro o que eles cobram. No caso, morador não tem condição, só vem pessoal lá de baixo” – diz o morador e mototaxista Bianor, que também questiona a falta de relação dos visitantes com a comunidade: “Eles lá e a gente aqui. Não tem relação nenhuma, entendeu? Eles sobem no carro deles, descem… A trajetória que fazem é essa”. Já o alemão e morador do Vidigal, André Koller, 41 anos, lembra: “Antigamente tinha van lá embaixo pra subir, agora a van sai direto do Leblon. Custa 200 reais pra entrar, é outro publico não tem tanto haver com o morro”.

Os moradores do Vidigal apontam ainda outros incômodos em relação às festas que acontecem no alto da favela. Para além de não serem acessíveis aos moradores antigos, as festas duram a madrugada toda e com som alto. Enquanto isso, as festas típicas da favela como o funk e o pagode são proibidas ou inviabilizadas constantemente pela UPP.

“Tem festa que dura dias, a UPP não faz nada. Quem mora no entorno dessas festas passa sufoco. O Vidigal fica todo tumultuado de carro. Raríssimos eventos são feitos pra comunidade. Esses [no alto do morro] são realmente feitos pra não ter morador” – afirma Hiran Lima – “Na festa paga acontece o que quiser, rola dias. Ai o morador faz um eventozinho na casa dele, na laje, ai alguém reclama e a UPP vai lá acabar. Os jovens não tem mais direito ao baile funk que é uma identidade do morador. Nosso bloco do Vidigal não pode ficar até mais tarde. O local é nosso, mas a gente não tem mais o direito de usufruir”.

Rodrigo Ferreira chama atenção para o fato de que a UPP faz uma série de exigências aos produtores culturais locais quando propõem a realização de eventos no Vidigal sendo que o mesmo procedimento não acontece com os eventos realizados na favela por produtores de fora.

“A burocracia é muito grande pra gente realizar evento aqui. Eles pedem bombeiro, subprefeitura, uma série de documentos que talvez a gente precise em alguns lugares, mas talvez na rua não. Ai, eles pedem pra alguns lugares, pra algumas pessoas e pra outras não…” – afirma Rodrigo – “Um exemplo, evento na rua. Se a gente faz um evento na rua eles querem documento do bombeiro, subprefeitura e uma série de outros órgãos. E aí, a gente consegue. Conseguido isso, a gente começa a fazer o evento e eles reclamam da Lei do Silêncio. Eu entendo que a Lei de Silêncio começa e termina quando incomoda o outro. Tudo bem, mas a lei diz que na Lei de Silêncio a gente pode trabalhar ai com 80 decibéis. Como você mede isso? Com um aparelho chamado decimetro. Ai, se o policial que vai lá não tem esse aparelho como ele sabe se você tá fora ou se você tá dentro da lei? E ai ele quer embargar o seu evento porque ele fala que tá atrapalhando a Lei do Silêncio.  E ele embarga seu evento na rua, ele fala que o morador tá reclamando e que você tá fora da lei. Enquanto que nesses hotéis, nesses hostels, o evento começa 4 horas da tarde, 2h da tarde ou 10 h da noite e vai ate as 6h da manhã. E atrapalha, traz todo um transtorno pra comunidade, e ai eles podem, porquê? Ai, a comunidade não é atrapalhada? São dois pesos e duas medidas. Quer dizer que quem tem muito dinheiro pode tudo e o pobre não pode nada? Porque o pobre não pode fazer festa, não pode nada”.

Para Rodrigo, o Estado deveria fornecer ao policial o medidor de som: “O estado tem que fornecer. Ele [o policial] não tem capacidade de ouvido pra falar que eu to fora. Já nos hostels eles nem sobem lá em cima pra ver e as festas vão até 6h da manhã” – e continua – “A comunidade esta cerceada de fazer evento e os playboys não. E essas festas que tem lá em cima não são feitas pra comunidade. É dentro da comunidade voltada pra playbloy, com ingresso a 200, 400 reais, quem mora na comunidade não vai. Não to fazendo juízo de valor, é como te falei, eles vem exploram a comunidade e eles não deixam legado. É porque é no Vidigal e o Vidigal é uma comunidade pacifica”.

As situações descritas nas entrevistas evidenciam uma segregação do espaço com base no poder econômico dos moradores e dos novos frequentadores e proprietários na favela. Bianor também reclama da postura do poder público em relação as festas dentro do Vidigal: “[Lá em cima] fazem festa e dura a noite toda. Incomoda as pessoas, mas eles tem o poder deles, entendeu?”

5. Eu moro, tu moras e eles…

O Vidigal há anos atrai moradores “do asfalto”, brasileiros e estrangeiros que não podem ou não querem pagar os exorbitantes aluguéis do Baixo Leblon e outros bairros nobres da cidade, mas é inegável que esse fluxo se intensificou após a implantação da UPP, em 2012. Dentre os marinheiros de primeira viagem, ou seja, os que foram morar no Vidigal antes da UPP, conhecemos a história do carioca Raff Giglio, 50 anos, e a do alemão André Koller, 41 anos.

Inicialmente morador do Baixo Leblon, Raff Giglio trabalha educação através do esporte no Vidigal há 22 anos. Se mudou para a favela há 18 anos, quando se separou da primeira esposa. No Vidigal construiu uma nova vida, se casou com uma moradora dali e criou o Instituto Todos na Luta: “Fui ING durante muitos anos que é Individuo Não Governamental, ai em 2010 virei ONG”.

Durante muito tempo Raff trabalhou sem patrocinador e que chegou a manter seu projeto com as crianças no Vidigal através da academia que funcionava na entrada de um condomínio próximo a subida da favela: “Quando teve a guerra em 2004, da Rocinha e Vidigal, a academia faliu. E a academia sobrevivia dos alunos ‘do asfalto’ que pagavam mensalidade. Então, com o que eu apurava com a receita da academia eu sustentava o meu projeto com as crianças no Vidigal. Eu bancava. Mas só que quando teve a guerra, eu não tinha mais condição de pagar o aluguel, mas a administração da época do condomínio me deixou usar em regime do comodato eu fiquei alguns anos assim”.

Raff Giglio conta que seu projeto também foi atingido pela questão da especulação imobiliária no Vidigal: “Ai aproximou-se esse negócio de pacificação, valorização e mudou também a administração do prédio e que não via com bons olhos o trabalho social que eu prestava pra comunidade, não queriam nem o meu aluguel. Eu batalhei, batalhei e até consegui quem bancasse o aluguel pra mim, mas não quiseram. E colocaram uma placa lá: aluga-se”.

Por algum tempo, Giglio usou espaço cedido pela Associação de Moradores do Vidigal e recentemente alugou um espaço onde hoje funciona o instituto: “Os grandes parceiros da ong são ex-alunos, pessoas físicas, empresas, mas o poder público nunca ajudou no projeto”.

Sobre o fluxo de turistas e novos moradores pós-UPP, Raff Giglio afirma que houve uma abertura e que o lugar tem atraído o “gringo mochileiro”: “Com essa valorização, esse glamour, a playboyzada tá subindo direto o morro. Muita gente que não conhecia o Vidigal passou a morar, conhecer. Tem uma casa lá no alto do Vidigal que tem 15 estudantes da PUC morando: um é brasileiro, 14 são gringos. Veio morar aonde? Veio morar onde é mais barato”.

André Koller, por sua vez, contou que costumava visitar o Brasil nas férias escolares, pois seu irmão mora em São Paulo. Quando terminou os estudos se mudou pra lá, se casou com uma brasileira, e veio morar no Rio de Janeiro, Baixo Leblon, após a separação: “O Leblon estava caro. Eu morava num quarto/sala. Não era uma condição agradável de viver, tinha vista pra uma garagem do outro lado da rua e era barulhento também”. Apesar disso, Koller conta que a proprietária do imóvel avisou que ia aumentar o aluguel: “Eu falei pra ela: ‘Você vai passar uma mão de tinta no apartamento? A porta do armário estava arrancada, tinha uma janela quebrada, tinha uma infiltração no banheiro, a cozinha era um lixo. Vai fazer alguma coisa?’ [ela disse] ‘Não’. ‘Então, porque está aumentando o aluguel tanto?’. E ela respondeu: ‘Ah, porque valorizou’”.

Koller conheceu o Vidigal por conta de um fusca que ele e seu amigo, o português André, compraram para trabalhar. Sempre que o carro dava algum problema eles levavam para a  oficina mecânica que ficava no Vidigal. Um dia, comentando o problema do aumento do aluguel no Baixo Leblon, o mecânico ofereceu um apartamento que tinha fechado ali no Cantão. O lugar estava inabitável, mas Koller tinha experiência em construção civil e fez a reforma. A mudança ocorreu antes da pacificação.

“No inicio, quando cheguei aqui, eu estava com medo: ‘um gringo no morro…’ Mas, depois de um tempo, vi que não era nada disso, todo mundo me tratou com o maior respeito. Era ‘bom dia’, ‘boa tarde’… eu não tava acostumado com isso lá no Leblon! Conheci meu vizinho do Leblon quando estava me mudando e a mesa bateu na porta dele e ele veio ver o q estava acontecendo. Aqui, em três meses, eu já conhecia todo mundo da rua”. – conta André Koller.

Sobre o crescimento de moradores estrangeiros na favela, André chama atenção para o fato de que há muitos imóveis sendo alugados por moradores antigos: “Não era muito comum alugar espaço, não tinha essa cultura de aluguel aqui. Tinha uma moça que colocou um cartaz que aluga só pra estrangeiro e ai gerou a maior polêmica, teve reunião e ela falou que o estrangeiro paga mais pelo espaço. Eles culparam os gringos para aumentar o preço dos morros, tanto que tem morador que não acha lugar pra morar e se muda pra baixada. Por um lado, o gringo já tá sacaneado por pagar mais e depois ele é culpado por pagar mais, mas quem são donos dos imóveis são moradores, nascidos e criados aqui. No final são moradores alugando pra moradores. É fácil culpar os gringos porque é mais visível, né?”.

Outro aspecto que André destaca é que os moradores que estão conseguindo alugar seus imóveis estão melhorando a renda familiar: “Acho que muito morador está se dando bem, tá ganhando dinheiro com o quartinho, com o puxadinho que alugam. Antes tinham que ir trabalhar na casa de alguém e voltar. É uma coisa positiva, entra uma renda com esses aluguéis”.

Ainda assim, esses novos moradores tem poder aquisitivo bem maior do que os antigos e, principalmente, do que os que, embora antigos moradores, não tem casa própria e pagavam baixos alugueis. Com a demanda dos novos moradores e a crescente especulação imobiliária, um fenômeno novo tem se intensificado na favela do Vidigal: moradores antigos e proprietários que tinham casas alugadas na favela passaram a dar preferência ao inquilino que pode pagar mais, seguindo a lógica do desenvolvimento econômico. E aí, a corda tem arrebentado para aquele morador antigo e sem casa própria, de situação financeira mais vulnerável que, sem condições de pagar os novos valores dos alugueis, se veem obrigados a se mudar para áreas mais distantes como Xerém e Nova Iguaçu, por exemplo.

Para o morador Luis Otávio, 55 anos, esse novo morador ou turista, que está na favela temporariamente, “chegou no Vidigal, na Rocinha, na favela da zona sul pra expulsar a comunidade, expulsar os moradores, porque ele paga 3 mil reais, principalmente o europeu, 1 euro são 4 reais! Então, ele chega aqui e paga aluguel brincando e, além disso, vem ele e mais cinco, seis dividem e entre dez, sai mais barato ainda. E o pessoal da comunidade que trabalha aqui pertinho tá tendo que morar lá longe, em Xerém, Nova Iguaçu… – conta Luis Otávio que acrescenta – “Tô fazendo uma quitinete e quero alugar por 1,500”.

Para Hiran Lima, essa situação é resultado do processo de gentrificação que a favela está sofrendo e afirma: “De tempos em tempos tinha sempre um órgão querendo tirar os moradores daqui. Eles tinham a ideia de subir, fazer disso aqui ser um Novo Leblon, um Alto Leblon. A gente tá vendo agora as coisas acontecerem de outra maneira. A gente agora tá tendo uma remoção branca. Antes era o estado querendo tirar o morador, agora é morador tirando morador. Tá caro morar no Vidigal. O mercado interno aqui tá uma loucura, tudo tá exorbitando desde alimentação a moradia”.

Se na história do Vidigal do século XX, o vilão das ameaças de remoções foi, principalmente, o próprio governo através de políticas de habitação/remoção e ações diretas, no XXI dividem esse papel não só os estrangeiros que vão morar na favela, mas também alguns moradores proprietários, e o próprio governo, ainda que de modo indireto e já sem a necessidade de atuar diretamente no processo de remoção. Mas, naquele século e neste, o que motiva a expulsão de muitos moradores é o interesse econômico de alguns.

“Acho que o Rio de Janeiro é uma cidade que tá gerenciada como uma empresa com investidores, participações e o Vidigal é um espaço bem próximo da zona sul, interessante para investimento. Não é uma questão de gringo, é um fenômeno mundial” – conclui o alemão André Koller.

Entre São Conrado e o Leblon, o morro onde se encontra a favela do Vidigal sempre foi alvo de disputas. Embora seja possível encontrar moradores antigos oriundos do Baixo Leblon, como o carioca Raff Giglio, e estrangeiros, como André Koller, bem antes da dita “pacificação”, é inegável que a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), em 2012, acelerou vertiginosamente a ocupação do morro pelo “asfalto” e está sim, em curso, um processo de expulsão via base econômica de antigos moradores. Só que agora não é mais o Estado, diretamente, quem promove a remoção. A lógica atual é mais sutil e perversa, coloca trabalhador x trabalhador e promove a expulsão silenciosa dos que são ainda mais frágeis economicamente, além de cercear a cultura local, regulando com exagerado rigor e mesmo proibindo festas populares da favela e construindo espaços de segregação cultural e econômica como, por exemplo, as festas permitidas no alto do morro.

CONTINUAÇÃO PARTE II: http://www.anf.org.br/vidigal-vidas-e-memorias-em-movimento-parte-ii/