“Territorializar é o primeiro passo para a diminuição da desigualdade”

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Créditos: Marina Moreira

 

Entrevista: Marcus Faustini

Diretor de teatro, escritor e documentarista, Marcus Faustini é um grande agitador cultural. Com pelo menos 30 anos dedicados à arte, o menino do Cesarão, Santa Cruz, já circulou por todo o Rio de Janeiro produzindo livros, filmes, peças e promovendo intervenções culturais. Sua prática se dá com iniciativas como a Agência de Redes para Juventude, incubadora de projetos que estimula a atuação de produtores culturais que trabalham questões que afetam diretamente e transformam a vida de seus atores sociais.

 

Você foi um dos primeiros a falar sobre essa ideia de cultura enquanto território. O que isso significa exatamente?

Não existe território sem sujeito. Território não é região, não é localização. Território é aquilo que se produz ali: a memória, as invenções, os circuitos econômicos… O território popular sempre foi tratado apenas como lugar, então, o conceito de território é mais politizador porque ele força as narrativas da cidade a pensar esses lugares a partir da produção dos seus sujeitos, qualifica aquele espaço a fim de alcançar garantia de direitos e respeito. Você passa a ver a potência dele, não só o que ele não tem. E mais: ao trazer esse conceito das ciências sociais para a produção cultural e artística, você também rompe com a representação dos pobres que existia até os anos 1980 e 1990, com a ideia do pobre ingênuo, puro. Romper com isso é dizer que naquele território existe uma produção contemporânea. Para quem está colocado no campo do passado, basta a reparação. Mas, quem está no campo do contemporâneo, quer direitos. Favela, subúrbio, periferia têm produção contemporânea. O conceito de território ajuda nisso, além de também ser fundamental para mostrar a diversidade da produção cultural. A quem interessa chamar todos os territórios populares de uma única coisa? Isso gera pouco direito, como tudo que é muito generalista. Esse conceito é necessário na luta pela diminuição das desigualdades, gerar direitos e novas expressões.

 

O que essa ideia do território pode trazer enquanto prática política cultural?

Reconhecer as ações que existem dentro do território. Não foi à toa que a gente conseguiu, depois de todos esses anos, alcançar políticas como o Território Cultural e o Ações Locais. Mas não adianta fazer um edital pro teatro e ter vários contemplados em Santa Cruz. Tem que pensar que teatro se faz lá. Territorializar é o primeiro passo para a diminuição de desigualdade. Ao mesmo tempo, é preciso também desterritorializar, circular. Esse conceito, de alguma maneira, deixou mais livre tanto a minha geração quanto a de agora pra expressar sua subjetividade. Nunca existiu uma diversidade tão grande de ações vindas das periferias. A gente garante direitos inventando um novo mundo no dia a dia.  O próximo passo é viver o território não mais como representação, mas como suporte. Como você rompe com a representação? O autor deixa de ser o centro na ação territorial. O centro está em toda parte e o autor apenas dispara uma ação. O resultado é o que a gente está vendo agora no Rio: mais vozes, seja do rock aos bate-bolas, dos grupos de teatro de Santa Cruz, do próprio Parque de Madureira. A cultura popular não é estática, ela também se modifica. Você não pode colocar essa cultura apenas como uma reedição do que era a cultura popular original. Ela se afeta pelos territórios onde se vive. O maior lugar de disputa política é o contemporâneo e o território é um dos conceitos importantes para esses tempos.

 

Como você vê essa produção cultura artística da periferia hoje?

Acho que a gente está num ponto de virada. O boom da periferia acabou, e era preciso que ele acabasse. Houve um momento em que a periferia estava em todos os lugares, das novelas às revistas. Se tivesse continuado desta forma, estaria só servindo de commodity às principais indústrias. É preciso consolidar esse campo agora como um campo reconhecido, entender as diferenças, consolidar mais centralidades culturais. Se tudo for tratado como expressão cultural sem analisar as diferenças territoriais, isso não gera direito e você não desenvolve as potências de cada lugar. Nós precisamos de uma política de indústria cultural popular brasileira que pense vocações territoriais. Continuar tratando esse campo só com Ponto de Cultura é manter a desigualdade. Políticas também devem se transformar. Eu acredito no desenvolvimento de uma indústria cultural popular contemporânea. Não tenho dúvida de que o audiovisual é a chave nesse novo momento, além da necessidade de criar uma nova crítica para pensar essa produção e em novas centralidades. Nós podemos desenvolver uma nova indústria aí. Eu quero me dedicar a isso nos próximos anos. Toda expressão cultural precisa do audiovisual para se potencializar, para se transformar em pop – eu gosto do pop, porque ele chega longe.

 

Nós precisamos de uma política de indústria cultural popular brasileira que pense vocações territoriais.

 

Os sujeitos de periferia precisam também se institucionalizar, criar suas organizações para disputar incentivos com o Estado. Para um cara de classe média, é fácil ser coletivo. Ele já nasce institucionalizado com o amigo arquiteto, vende um brownie no Recreio e é capa de jornal. Temos que enfrentar isso. Eu não quero ser alternativo, eu quero disputar a centralidade. O Rio não aproveita ainda 50% do seu imaginário porque não coloca os pobres num lugar de protagonistas na produção cultural. A gente também fala muito da luta pelo direito à diversidade no Brasil pensando na diversidade da identidade cultural brasileira tradicional. Mas precisamos pensar na diversidade urbana, que não é uma coisa só. A diferença e o território são os próximos conceitos capazes de produzirem direito. Como você chega nisso? Com recorte territorial. Política de juventude, por exemplo, não pode ser generalista. O jovem não vive só a escola, ele não é só um estudante, ele vive a cidade. Uma política de juventude tem que ser pensada pela cidade e de maneira territorializada. A favela não é o outro da cidade. O cara da favela circula a cidade. É decisiva a circulação, ela foi decisiva na minha história. Então, pensar o território, já que o território é produção dos sujeitos, é pensar os sujeitos. Bato sempre nisso: não se pode só levar políticas de assistência social para os territórios populares, elas têm que estar junto de uma política de desenvolvimento econômico.

 

Você concorda com a ideia de que a cultura dos territórios foi afetada pela questão dos mega eventos que a cidade vem recebendo nos últimos nove anos? Por quê?

Os megaeventos interferiram na história da cidade. Modificou uma série de relações. Houve avanços e conflitos, erros e muitos acertos. Eu acho que elas também não podem ser descoladas do momento político que a gente vivia no país, de uma base social popular no Brasil que mudou nos últimos anos, infelizmente. Eu acho que é cedo ainda para fazer uma análise. Mas onde aconteceu conflito foi por falta de diálogo. Por que avançaram as políticas na cultura durante esse período? Porque teve diálogo, teve escuta. Não dá para negar que alguns territórios sofreram violações e outros tiveram grandes avanços.

 

Mas você consegue enxergar esses avanços especialmente na produção cultural?

Não só na produção cultural, mas em outras áreas, como no atendimento básico da saúde, na mobilidade, renda e educação. Você não pode dizer que 18 escolas construídas na Maré e 300 escolas novas na cidade é populismo. Houve avanços no município. O Parque Madureira é uma invenção urbana que transformou o bairro numa centralidade da cidade. As arenas culturais, que foram criadas no subúrbio, têm programação de alta qualidade e público maior que os espaços culturais do Centro e da Zona Sul. Isso é avanço. Venho de uma época em que não era fácil ser artista na periferia. Muita coisa melhorou. Mas no campo da segurança não foi assim. Diziam que a UPP levaria desenvolvimento. A UPP é um fracasso. É uma política que não foi seguida de desenvolvimento social e de participação. Era uma grande esperança, mas ficou apenas na ocupação policial em comunidades importantes da cidade e manteve uma lógica de guerra que leva à morte de moradores e policiais. Já está provado que a guerra às drogas só serve para gerar mortes.

 

A gente garante direitos inventando um novo mundo no dia a dia.

 

Mas chamo atenção para uma coisa: por que na Maré houve 18 escolas construídas? Porque havia ali uma sociedade civil que produzia forte e com capacidade de se institucionalizar, produzir conhecimento e articulação, que soube dialogar com o governo para produzir direitos. Eu insisto que a categoria de cidade é importante também para a gente, saber pensar a cidade. A cidade não é só uma representação do poder. Ela é também um laboratório que pode interferir no poder. Os grupos de origem popular vão pagar um preço muito caro se continuarem a ser só rebeldes. Rebeldia é uma estética da classe média antiga. Eles têm um fetiche nisso. É possível ser alguém que diminui a desigualdade social não adotando essa estética. Rebeldia é diferente de resistência. E a resistência é decisiva para quem sofre violações de direitos que devem ser seguidos de propostas de soluções. O poder público deve estar mais aberto à participação, esse é o próximo passo. Tivemos laboratórios de diálogo nesses últimos anos, devemos aprender com isso.

 

Como?

Com as pessoas que vivem nos territórios influenciando políticas, criando modelos, circulando. A rebeldia comportamental não diminui desigualdade. Ela forma uma nova elite política na cidade, mas nós, que viemos de famílias populares, precisamos de políticas comunitárias. Eu sinto falta de ver a esquerda agindo no território. Por que os evangélicos se fortaleceram tanto? Porque estão no território o tempo todo. Dominar os repertórios da cidade, do Estado, das desigualdades, e propor soluções é um pouco a minha tarefa. Eu não quero cair no fetiche de ser um rebelde a vida toda e ficar bem na foto de guru romântico. Eu quero melhorar a cidade. Eu acredito no encontro, toda a minha vida foi feita deles. A cooperação comunitária, muito ligada às ideias do Sennett (Richard Sennett, sociológo britânico), é invenção, é tratar o território como lugar contemporâneo, conectado.

 

A questão é o que vem exatamente depois dos Jogos Olímpicos, não é?

É isso que me interessa: qual é o futuro da cidade? Chegamos até aqui, com avanços e contradições. E agora? Para onde vai a cidade? É só trocar grupo político? É por isso que acho que tem que territorializar para que, independente de partido, haja a garantia de uma continuação na diminuição da desigualdade. Sou a favor de fundos territoriais, não só para a cultura, mas para outras políticas. A gente precisa ter uma política organizada e territorializada agora. Isso implica numa mudança de chave mental, porque, para pensar por território, não estamos preparados, da esquerda à direita.

 

E como se pensa esse território, então, para alguém que vem fazer política de fora para dentro?

Fortalecer as instâncias territoriais é a primeira coisa: as subprefeituras, a articulação de políticas. Além de uma política de juventude. Acho que esse é o próximo passo.

 

Você fala muito da questão da narrativa da periferia. Mas de que maneira a periferia poderia se tornar dona de sua própria narrativa, que ainda é muito pautada pela grande mídia?

Eu acho que é hora de ter grandes produtoras vindas da periferia, empresas alternativas, atuar em rede. Temos que deixar de só ter projetos, precisamos de instituições. É um misto de se institucionalizar e estar presente nos territórios. E acho que a gente deixa a descoberta de potências para os grandes meios hegemônicos, que botam essas potências como caricatura. Quando a gente narra só os problemas, a gente está narrando só o que se espera que a gente narre. A grande mídia está acostumada a tratar o que vem dos territórios populares como jocoso, folclórico, pitoresco… Ou seja, o outro, o que não faz parte, o que está além da fronteira. Então, para disputar a institucionalidade é preciso narrar a vida.

 

E isso sob qualquer formato?

Sob qualquer formato, lógico. Temos que falar para mais gente. E para isso, você tem que trabalhar com os diferentes também dentro do território, não ir lá para conscientizá-los, mas para fazer junto. Eu acho que precisamos aprofundar as narrativas potentes. O “passinho” foi algo que nos ensinou muito, que rompeu barreiras. Mostrou um novo jeito de dançar, uma nova intervenção urbana, uma nova geração, nova mobilização… Temos muito o que aprender. A cidade mudou e ainda pode mais. Precisamos dar o passo número dois com o compromisso de pensar a cidade, além de apenas marcar posição. E para isso é preciso pensar a cidade por onde ela começa, por Santa Cruz. Nossos conceitos atuais ainda não dão conta disso. É hora de invenção.

 

Publicado na edição de Agosto de 2016 do Jornal A Voz da Favela