Sonhamos Pré-Sal, viramos Pré-Síria

Créditos: Marcus Galiña / ANF

Estavam lá reunidos, na mesma sala ampla: moradores do Complexo do Alemão, ativistas, Defensoria Pública, vereadores, redes de televisão, mídia alternativa, grande mídia, deputados, cúpula da PM, Ministério Público e mães que perderam seus filhos na estúpida guerra carioca. O auditório da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro estava cheio. Muitas pessoas de pé. À esquerda, quatro ou cinco fileiras de policiais fardados, com algumas mulheres. A fala do deputado Marcelo Freixo foi contemporizadora, com boa argumentação, querendo diminuir a tensão entre os dois lados. Relembrou as vítimas fatais de ambos e frisou a indiferença do Estado com quaisquer das vítimas.

Mas que dois lados seriam esse? Os moradores da favela são um lado. Só eles sabem o que passam. Suas residências estão sendo invadidas, perfuradas, até roubadas diariamente por agentes do Estado. Seus filhos, seus amigos, seus parentes estão morrendo, baleados, em incursões destrambelhadas, que espalham sangue e dor. Todos os dias. As escolas onde seus filhos estudam não funcionam. A bala come, a escola fecha; a escola abre, a operação começa, todos ao chão. Alunos são baleados no pátio.

Morre gente dentro de casa, morre gente indo trabalhar, morre gente de tudo que é jeito.

Eles não vêem, no horizonte possível, possibilidade de mudança de postura. Os anos seguem passando e o quadro não se altera… Crianças morrem e não há punição. Execuções são flagradas e nada acontece. A mais constantemente punida é a população das favelas. Isso é parte da sociopatologia da vida carioca.

O outro lado era a polícia, o braço armado do Estado. A polícia que mais mata e a polícia que mais morre. Nossos números são desoladores. Nossa aparente normalidade é um caso a ser estudado pelos mais argutos psicólogos sociais.

Compareci à Audiência, marcada para as 14h num intervalo entre dois compromissos de trabalho. Não pude ficar muito. Que bom que fiquei para a assistir a corajosa fala do Raull Santiago, do Coletivo Papo Reto. Raull botou o dedo na ferida – ali o dedo e a ferida estão no mesmo corpo. O morador, só ele, pode ser o dedo e a ferida. E a fala dele foi precisa, dura, factual. Olho no olho com os policiais, verbalizando dor, revolta, mas também enfrentamento e coragem. Papo reto, com altivez, verdade e autoconfiança. Raull foi o principal advogado naquela arena onde tentavam lidar de forma blasé-institucional com a afronta estatal aos direitos das pessoas. Só vi a Constituição, o Direito e a Justiça vibrarem na fala deste inspirador jovem ativista, guerreiro da luta coletiva que vai inspirar e fazer prosperar o crescente movimento dos direitos civis da população das favelas.