São Paulo: a Cracolândia nossa de cada dia

Acabo de atender mais uma moradora da Cracolândia – na verdade, bairro da Luz, região central da cidade de São Paulo. Trata-se daquela mesma área com arranha-céus, arquitetura límpida, ostentação imobiliária, mas que não olha para seus pés, sua gente. Cinza, como o comportamento mesquinho de seus dominantes – políticos e grandes empresários, que passam por cima do colorido de seu povo.

Esta senhora, de 56 anos, residente numa ocupação que existe entre tantas milhares da região da Luz, relata que o filho de 16 anos é mais um “zumbi” na legião de usuários de crack da região. E vai além: “o problema não está no uso e venda indiscriminados da pedra. Está em como o governo deixou chegar a esse ponto e quer esconder seus erros debaixo do tapete”.

Tenho de concordar. Resido em São Paulo há oito anos. E, desde que Kassab era prefeito, já presenciava o desejo pelo extermínio dos usuários através da repressão policial e de esconder algo que já era público e notório há mais de uma década. Sem trabalhos terapêuticos aparelhados, sem o mínimo de condições de atendimento digno tanto aos usuários, quanto aos moradores e aos trabalhadores da região, a Prefeitura e o governo do Estado deixam claro como se aplica a política local de drogas, ignorando todo um trabalho feito por profissionais que enxergam além da força do cacetete e das bombas.

No frio de 16 graus que fazia na cidade cinza em 23 de maio, o sr. prefeito de São Paulo, em meio a uma entrevista a jornalistas a duas quadras da Rua Helvétia, foi informado da demolição das paredes de uma pensão por ordem da própria Prefeitura, ferindo três pessoas que ainda estavam dentro do imóvel. O proprietário não havia sido notificado da desapropriação e sequencial demolição.

Ou seja, enquanto João Dória Jr. falava à imprensa sobre uma possível revitalização da Luz, também passava com trator em cima de concreto armado e gente. E como qualquer criminoso não querendo ser pego em flagrante delito, entrou no carro, acelerou e sumiu do local. O nome do crime? Improbidade administrativa, constante no Código Civil. O que o Estado fez? Enviou Tropa de Choque e Ronda Ostensiva com Apoio de Motocicletas (Rocam) para conter a revolta popular…

É preciso analisar a barbárie na Cracolândia não apenas sob o olhar da falta de recursos públicos e atendimento adequado a população, mas principalmente sob o enfoque da especulação imobiliária. A 700 m da rua Helvétia, funciona uma das casas de espetáculos mais luxuosas da cidade, a Sala São Paulo. Criada para ser uma sala de concertos sinfônicos, agrega entre seus frequentadores a nata da burguesia paulistana – entre eles, o próprio sr. Dória.

Não há moradores do entorno ou oriundos das periferias da cidade entre seu público, mesmo em espetáculos gratuitos que ocorrem aos domingos. Além disso, a revitalização proposta pelo prefeito João Dória nada mais é que a desapropriação, demolição e privatização sequencial de espaços públicos – e aí se concentra a especulação imobiliária, em torno de museus e espaços histórico-culturais que, através de políticas de privatização, mais uma vez atropelam os anseios da comunidade local por escolas, postos de saúde bem aparelhados, programas sociais que sejam valorizados e respeitados.

Aliás, diga-se de passagem, as Cracolândia existem nas periferias há muitos anos mas sem a devida atenção dos ricos. O extermínio, nessas regiões, fica sob o encargo do esquecimento. A Cracolândia não é uma só, e não é única. Ela nada mais é que o resultado de políticas sem nenhuma intenção de atender de fato a população que dela necessita, exceto pela política do cacetete e do desabamento. A Cracolândia é a nossa tragédia social cotidiana, onde espalha-se de maneira irremediável o público que, mais uma vez, tem suas vidas e histórias aniquiladas pelo crack e pela falta de políticas públicas decentes.