Rota de fuga

Créditos: Reprodução Internet

Era uma vez Marta, que há dezoito anos, viu o rosto lindo de seu primeiro filho. Agasalhado, alimentado, com bochechas salientes e esboço do sorriso mais lindo do mundo. O bebê foi levado para casa.

Dentro dos limites de sua pobreza, Marta preparou um cantinho onde colocou o berço, enfeitado com brinquedos e coberto por um lençol repleto de figuras de animais. Tudo em tons de azul. Sem saber como dominar o sentimento novo, ficava muito tempo olhando o bebê no seu sono de anjo. Enfrentou as dificuldades de sono e amamentação. Tinha leite suficiente. Até ajudou uma vizinha que, também, estava amamentando, mas o leite tinha secado. Dessa época, guarda poucas fotos. Em todas elas, o que vemos é um sorriso largo, mesmo que o rosto apresente as marcas do cansaço.

Hoje, Marta tem 36 anos e é analfabeta. Não deu para aprender a ler. A luta pela sobrevivência a obrigou a ser empregada doméstica. Teve sorte em alguns empregos e ganhava roupas e brinquedos para Rafael, seu bebê. Rafael está visivelmente desnutrido, magro.

Sua beleza tem marcas e cicatrizes de uma jornada nada romântica. Mesmo com os esforços de Marta, seu filho acabou envolvido com o tráfico, na favela onde moram. Foi preso uma vez e voltou mais machucado, mais traumatizado, mais descrente. O tráfico foi o único empregador que o aceitou.

Hoje pela manhã, ele me ligou pedindo ajuda:

– Mana, estou saindo. Decidi que não quero mais essa vida. Vou saltar fora. Tô indo com a mãe para outra favela. Mas tô com medo. Não sei o que vou fazer agora. Tô com medo de não ter trabalho. Tô com medo de morrer.

O que você faria se estivesse no meu lugar, tendo sido amiga de infância do Rafael, que sempre foi um menino legal? O que você faria se tivesse acompanhado todos os passos que levaram Rafael a se envolver com o tráfico por pressões e falta de opção? O que você faria se soubesse que Rafael é um cara decente?

Se eu pudesse, mas não posso, o traria para cá. Para o meu lugar secreto, para cuidar dele, para dar aconchego, um tempo para respirar, para achar uma escola, um curso rápido para entrar no mercado. Mas… e a ficha dele? E o histórico oficial que marca e mancha sua história e o reduz a um “meliante”, “criminoso”. Quem vai empregar?

Não é a primeira vez que ele tenta. Nem é a primeira vez que os mandantes do tráfico o obrigam a voltar. Não é muito diferente migrar de uma favela para outra. Mesmo que, agora, pareça ser uma boa saída. Ou rota de fuga?

Qual a saída para meu amigo? Que futuro espera o filho da Marta? Você faria o quê?

Talvez, vai ler este texto e voltar ao trabalho. Talvez, não tenha lido o texto até o fim, porque não vê que o futuro é de todos nós. Se não tem futuro para Rafael, não tem futuro para ninguém.

Você vai ler este texto e suspirar, dizendo que não aguenta mais o Brasil e vai mudar para Portugal?

Me leva?

Eu, que nasci e cresci numa favela, também não aguento mais.

E estou aqui, sozinha, pensando na minha impotência (ou seria covardia?). Se minha casa fosse maior, eu poderia trazer Rafael para ficar aqui. Mas eu, também, estou enfrentando minhas lutas diárias e não tenho condições reais para fazer isso. E se não posso fazer, tem alguma função escrever este texto?

Talvez não. Por isso, prefiro parar por aqui.

Você conhece o Rafael? Talvez não por esse nome, porque é um nome fictício.