Rocinha, Rock in Rio e a roda da vida

Crédtios: Caio Ferraz / ANF

Mariana*, 24 anos, vendedora de loja num dos grandes shoppings da Zona Sul e mãe de dois meninos, um de 4 e outro de 1 ano. Direto da Rocinha, ela fez parte do grupo de moradores de favela que a ANF levou para o Rock in Rio na noite de 17 de setembro a convite da organização do festival. Coube a mim a missão de acompanhá-la até o Parque Olímpico. Ela estava feliz por saber que iria, pela primeira vez, a um dos maiores festivais de música do mundo – da mesma maneira que milhões de jovens que moram nas favelas e periferias do Brasil e que só assistem a eventos como esse pela televisão.

No domingo, recebo, às 7h35 da manhã, uma mensagem sua, afirmando que esse sonho, possivelmente, seria adiado. Perguntei por qual motivo, e ela respondeu que desde às 5h30 o maior morro da América Latina estava em guerra, com um tiroteio intenso nas mediações onde ela mora. Por motivos de segurança, Mariana estava deitada no chão abraçada aos dois filhos.

Não consegui mais dormir. Passei o resto da manhã e boa parte da tarde me comunicando com ela. A angústia de saber que os moradores da Rocinha estavam em meio ao fogo cruzado me fez relembrar o que vi na minha infância e adolescência, na favela de Vigário Geral. Eu e minha família vivemos o drama de passar dias e noites sem poder sair de casa por conta das infinitas guerras entre facções rivais ou entre a polícia e o tráfico.

É triste pensar que a primeira guerra que enfrentei foi antes mesmo da primeira edição do Rock in Rio, há mais de 34 anos. Certa vez, eu e minha família ficamos trancados em casa por mais de três semanas, pois os tiroteios não cessavam. Quase morremos de fome, desolados em meio àquela guerra insana. Tenho irmãos, irmãs e amigos de infância com sequelas graves, afinal, além de destruir, a guerra deixa feridas e dores incuráveis na psiquê humana. Felizmente, a minha fé inabalável e a minha veia poética me ajudavam a manter o mínimo de sanidade. Sobrevivi, e posso hoje ser um cientista social que possui a capacidade de narrar em primeira pessoa porque viveu na pele os dramas da segregação e da violência.

Às 16h30, consegui me encontrar com Mariana. Ela me deu um abraço super apertado e estava trêmula por ter conseguido sair da Rocinha. Ainda assim, continuava apreensiva por ter deixado os dois filhos e a mãe para trás, mas feliz por realizar seu sonho: assistir ao vivo aos shows do Rock in Rio.

Por conta da guerra na Rocinha, perdemos a foto oficial com os outros convidados. Mas, por insistência dela, conseguimos enxergar que, enquanto a roda gigante girava, a vida de milhares de moradores da Rocinha estavam paradas, sem saber quando o mundo voltaria a dar voltas e quando o sol brilharia num chão de estrelas, fazendo de nós um só coração, uma só canção, uma cidade mais fraterna, humana e justa.

Mariana vai retornar comigo ao Rock In Rio no dia 21, mas, dessa vez, espero que ela possa realizar seu sonho de dar voltas na roda gigante e que a Rocinha consiga ver a roda da vida voltar a girar em paz.

* Nome fictício.