Resenha: Eles Não Usam Tênis Naique

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Créditos: Ratão Diniz

 

Invenção é a chave do espetáculo “Eles Não Usam Tênis Naique”, que a Cia Marginal apresentou na abertura do festival Comunidade em Ação, no Galpão Gamboa, durante todo o último fim de semana. Diante de uma sinopse que poderia ser clichê para uma produção de favela (a relação entre pai e filha, ambos mergulhados na vida do crime), a peça ousa em linguagem e surpreende.

Quatro atores em cena se revezam em dois papeis: depois de fugir da favela por conta de uma invasão da polícia, a gerente do tráfico Roseli reencontra seu pai adotivo, o ex-traficante Santo, que retorna depois de 20 anos de desaparecimento. Os embates entre os dois, cuja relação de amor e crueza às vezes beira a bipolaridade, é o mote da história. As boas lembranças dividem espaço com as mágoas, assim como os conselhos podem ser fontes de discussão acalorada. Os laços sentimentais que os unem são, entretanto, a ponta do iceberg que discute o binômio tráfico e favela em uma dimensão contemporânea, muito diferente do viés ideológico dos senhores do crime de duas ou três décadas atrás.

São inevitáveis as comparações com “Eles Não Usam Black Tie” e as disputas geracionais da classe operária descritas por Gianfrancesco Guarnieri na década de 1950. Mas longe de ser uma mera versão, “Eles Não Usam Tênis Naique” está anos luz à frente não apenas deste clássico do teatro brasileiro como de muitas das produções do momento presente. A peça ganha o espectador pela originalidade dos recursos cênicos escolhidos pela diretora Isabel Penoni e na direção musical de Thomas Harres, que dialoga com a tensão presente no ar a todo o tempo. A energia e a naturalidade com que flui o texto entre o elenco também impressionam. Para cada um dos atores está reservado um grande momento – e todos brilham juntos em uma ou outra cena, como no número musical “Hiltinho mata rindo” ou quando relatam ao público histórias pessoais relacionadas à violência vivida no dia a dia de sua condição de moradores de favela.

É importante frisar ainda que o que poderia ser uma história banal sobre crime e favela se converte, antes de tudo, em um exercício inventivo de linguagem em que prevalece não o maniqueísmo, mas o dualismo típico do conflito de gerações. Em resumo, “Eles Não Usam Tênis Naique” é um espetáculo que tem drama e também comédia, que tem improviso e também número musical, que tem amor e ódio, que tem teatro e também, acima de tudo, verdade.