Ódio made in Brazil

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Um jovem brasileiro foi assaltado e levaram seu celular. Ele fez o que todo cidadão tem o direito de fazer: prestar queixa. Foi à delegacia e pediu para fazer um boletim de ocorrência. Mas, numa cruel inversão dos fatos, saiu de lá espancado por ser homossexual. Quando leio a notícia, lembro de Brazil, o Filme, produção dos anos 80, uma distopia que trazia em sua trilha sonora um dos nossos ícones nacionais, a música “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. No filme, o poder é exercido por um Estado totalitário, que controla a todos através da burocracia e da vigilância por computadores. E, em nome deste controle, qualquer relação de amor se torna proibida.

Diante deste caso e desta distopia, pergunto: quem entre nós nunca se sentiu vítima de um gesto, uma palavra, um olhar de intolerância? Quem já passou por isso sabe à flor da própria pele o quanto o ódio faz doer, e, talvez, tenha aprendido pela dor que a melhor resposta possível é uma resposta política: a luta, a luta na ação – pelos direitos humanos, sociais e civis.

Desde que o mundo é mundo, os seres humanos exercem os podres poderes da intolerância – seja para humilhar, negar, apartar ou desprezar o outro. Diríamos também que esta é uma herança complexa de nossa vida social coletiva se levarmos em conta toda a nossa história pelo mundo, tão marcada por ações e reações resultantes da hostilidade levada às últimas consequências. São atos de violência e barbárie ocasionadas pela não aceitação da diferença e pela retroalimentação do ódio entre os povos, que só deixaram deste legado as experiências de guerras e genocídios, as maiores tragédias humanas. Temos muitos exemplos na nossa história, incluindo a recente.

A vida cotidiana, assim como as mídias sociais, nos aponta que estamos diante de um número importante de pessoas capazes de cometer atos de violência por não concordar com ideias diferentes das suas, por não aceitar um modelo político diferente, uma raça diferente, uma classe social diferente, uma religião que não seja a mesma, enfim, por não tolerar a diferença entre os seres. Paradoxalmente, tudo o que somos e fazemos só vai nos singularizando dentro da própria trajetória humana. Somos diferentes, diversos, igualmente diferentes.

A tentativa de igualdade começa, sobretudo, pelo respeito à diferença, por uma espécie de amor à diferença. E por que não podemos mais deixar o amor de fora da resposta política? Porque o ódio está vencendo – o ódio às mulheres, aos negros, aos pobres, aos marginalizados, aos nordestinos, aos homossexuais. Ódio, ódio, ódio… O ódio que tem sido usado como bandeira “política” para se chegar ao poder pela pior das vias, a da violência.

Ora, sabemos o quanto isso pode parecer desagradável: disponibilizar-se para amar, amar para além do seu raio de segurança. Afinal, o amor foi vulgarizado, o ódio não. E não é fácil como num estalar de dedos e pensamentos. É um exercício contínuo de aceitar e ser aceito, é um exercício extraordinário de consciência. Até porque é muito mais fácil sentir raiva e guardar ressentimentos. Amar é ter a audácia de assumir a sua parcela mais humana – é tirar a casca, a couraça e deixar de lado a mesquinharia, a falta de gentileza, de empatia, de solidariedade.

A perplexidade contemporânea nos coloca diante de atitudes para lá de esquizoides, se pensarmos nas últimas e tantas demonstrações de ódios explícitos que vão ocorrendo no mundo – e aqui no nosso país – numa onda crescente e assustadora. Poderemos nos questionar se estamos de fato perdendo contato com nosso lado humano, com nosso humanismo, perdendo também a capacidade de enxergar o outro. Para onde então caminha a nossa humanidade? São tantos os episódios de confrontos. E por que os fragilizados são as principais vítimas de tanto desprezo? Porque há neles um sentido gregário de identificação, porque há neles um sentido que os une pela diferença e pelo testemunho da história que tantas vezes os violenta e massacra como minorias.

Mas aos políticos que ostentam a bandeira do ódio, devemos dizer nas ruas que é possível guardar uma medida de crença, talvez, utopia – a mesma que nos faz suportar a existência, o engasgo, e que nos faz também suportar tantas mazelas, seja nas atuais injustiças, no Congresso, nessa estrutura em metástase.

Espero e devo crer que boa parte da população brasileira quer mudar este quadro caótico de anomia. E, com bastante esperança, quero acreditar que muita gente não vai compactuar com esse dito fascismo de ocasião. A maioria de nós ainda acredita no Brasil e o faz porque ama, sente, compreende, escuta, se solidariza. É claro, precisamos ir às ruas, lutar por nossos direitos usurpados. Precisamos nos levantar com coragem (palavra de origem latina que une Cor + Agir e que significa “agir com o coração”), mas não no sentido passional. Agir com o coração aqui é reunir forças para lutar pela democracia com amor, que é uma ponte, uma bandeira que nos conecta ao outro sem revanchismo.