O menino que brincou de mudar o próprio destino

A paralisia cerebral, os membros atrofiados e a cadeira de rodas não foram obstáculos para Gilvã Mendes.

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Superação é a palavra que define o menino negro, que nasceu pobre, em uma família de cinco irmãos no Nordeste de Amaralina – um bairro marcado pelo tráfico -, teve uma paralisia cerebral que resultou em membros atrofiados e dificuldade nos movimentos e na fala, mas nunca desistiu da vida e dos sonhos.

Gilvã sempre foi apaixonado por poesia e desde pequeno sonhava em ser escritor, embora só tenha aprendido a ler e escrever em casa e só entrou na escola aos 12 anos, por conta da dificuldade de aceitação das escolas. Aos 17, estava na quinta série. Mas, em 2009, aos 24 anos, apesar da dificuldade para teclar, provou sua determinação e realizou seu grande sonho ao lançar seu primeiro livro “Queria brincar de mudar meu destino”/Editora Papirus, uma autobiografia, recheada de poesia que narra a “história de um amor quase impossível entre um jovem e a poesia. Um amor tão forte e avassalador que superou barreiras – a começar por uma barreira feita de duas rodas.”

“Não existem limites para mim”, afirma o poeta sorriso, escritor e, hoje, psicólogo, Gilvã, que está com 34 anos, casado, tem uma filha e já vai lançar seu segundo livro “Aqueles malditos olhos azuis”, uma obra de ficção profunda que narra em forma de um conto psicológico a vida de Nice, uma típica mulher negra brasileira. A obra produzida com recursos próprios, será lançada em julho/2019 e abordará temas como racismo, machismo, violência, abandono, família, entre outros assuntos polêmicos na nossa sociedade. Confira a entrevista pra conhecer um pouco mais sobre Gilvã e o novo livro que, assim como aconteceu com o primeiro, promete impactar todos os leitores:

1)  Você nasceu preto, pobre, com paralisia cerebral, numa favela de Salvador, mas superou todas as adversidades e mudou seu destino: aprendeu a ler e escrever, tornou-se escritor, casou, teve uma filha, se formou em psicologia em 2018 e está lançando seu segundo livro. Existem limites pra você?

GM – Não existem limites para mim. Limites vêm do meio físico e das pessoas, quando elas me veem como uma mera máquina biológica que simplesmente come, evacua, bebe, urina e respira, mas são limites covardes, cruéis, dolorosos, e às vezes, é muito cansativo. Mas luto todos os dias para superá-los. Sinceramente, acredito que o que pode limitar qualquer um é o direito do outro. Se você não está fazendo mal a ninguém, não há motivos para estabelecer limites.

2)    Você tinha 24 anos quando lançou “Queria brincar de mudar meu destino” e sua vida mudou muito. Quem é o Gilvã autor do segundo livro? A obra aborda o quê?

GM – Eu tenho muito do Gilvã do primeiro livro ainda. Mas, como disse o filósofo Heráclito: “não poderias entrar duas vezes no mesmo rio” porque, segundo ele, o homem de hoje, não será mais o mesmo de amanhã. E nunca são as mesmas águas, pois elas correm para outros lugares. Nesses 10 anos, eu também mudei muito, tenho menos preconceitos, me tornei mais cético, mais crítico e sou mais consciente de mim mesmo e do meio em que vivo. “Aqueles Malditos olhos azuis” é um conto psicológico, que narra a vida tão brasileira de Nice, desde os cinco anos, até mostrá-la diante de uma decisão que mudará para sempre a sua vida.

3)  O primeiro livro foi autobiográfico e cheio de poesia, este tem um tema forte, pesado e é uma história fictícia, que se passa no Nordeste de Amaralina, seu bairro natal, e tem uma personagem chamada Nice. Em quem ela foi inspirada?

GM – A Nice do meu conto foi inspirada em todas as mulheres negras que eu conheço, principalmente nas mulheres negras e as suas descendentes que fazem parte da minha vida, como a minha mãe (D. Teresinha), as minhas irmãs (Lívia, Lucimary, Aline e Emily), as minhas sobrinhas (Larissa, Sarah e Flávia), a minha esposa (Inglid) e a minha filha (Suyane).

4) Você sempre foi apaixonado por poesia. Foi por meio dela que conquistou sua esposa?

Com certeza a poesia que ajudou-me a conquistá-la. Também foi a minha beleza, a minha baianidade (já que ela não nasceu aqui na Bahia, mas tem uma alma baiana). Brincadeiras a parte, eu acredito que o grande diferencial da relação foi a nossa verdade e amizade desde o início. Eu tento não somente escrever e recitar poesias para ela sempre, mas fazer da vida dela um lindo poema de amor, ternura e paixão! Eu tento. Mas é ela quem faz da minha vida um lindo poema. A minha vida, a minha luta, a minha poesia, os meus sonhos e projetos têm mais sentidos e vida por causa de Inglid. Nós estamos casados há três anos, mas, juntos, vamos fazer oito anos. Eu espero colocar um 0 atrás desse 8.

5)   Qual foi a maior dificuldade que você enfrentou na vida?

O olhar do outro. O que tenta me fazer mais “deficiente” não é a falta de rampas, elevadores ou de calçadas largas, mas o olhar que diminui, limita, que reduz, estigmatiza e rotula. Isso advém da falta do conhecimento, não só do conhecimento acadêmico, técnico, mas do conhecimento do dia a dia mesmo, de perguntar antes de sentenciar, de conversar antes de julgar. Como pessoa com deficiência e psicólogo, eu combato muito isso, que está aparentemente nas coisas mais inofensivas, como: “Ele é especial”. Especial, de alguma maneira, todo mundo é. Outra coisa é: “Ele é deficiente”. Não sou deficiente. Ser deficiente dá ideia de ser todo deficiente. Eu sou uma pessoa com deficiência, pois meu corpo tem uma deficiência e ela é só mais uma característica minha. Por isso, eu estou montando uma palestra, um workshop, sob a perspectiva da Psicologia, no qual pretendo fazer uma viagem da deficiência na história da humanidade e como isso afeta as pessoas com deficiências nos dias de hoje.

6) Qual sua expectativa pro lançamento do novo livro?

As melhores! Mas ao mesmo tempo, estou com medo, porque no Brasil atual, a moda é ser idiota. Ganha dinheiro quem é reacionário, maluco, perverso, machista, racista, sobretudo burro, achar que a terra é plana, dizer que Einstein estava errado, mas não apresentar nenhuma teoria para contrapor; ou que Paulo Freire é ruim para a educação, mas tem como principal (e única) didática a humilhação pública e um vocabulário de um menino da 5ª série, indesejado, malcriado, mal amado e violentado. Mas, eu acredito muito na história de Nice. A história de Nice é para estômagos adultos. Eu quero dizer também, com essa história, que não sou só uma pessoa com deficiência, negro, pobre e com uma história de superação que escreveu um livro. Eu sou um escritor. Ao longo de 10 anos, eu escrevi muito. Tenho livros escritos para os públicos infantil, infanto-juvenil, adolescentes e adultos não publicados e, agora, vou publicar “Aqueles malditos olhos azuis”, com lançamento previsto para o dia 29 de julho, o dia em que eu conheci a Inglid.