O cenário da pandemia tem rostos, cor e localização geográfica

População na rua. Crédito: Reprodução

A realidade da pandemia ocasionada pela covid 19 em sua particularidade já é uma catástrofe mundial com consequências graves e até de algum modo, irreparáveis, se considerarmos as milhares de vida humanas ceifadas por essa enfermidade.

É corriqueiro ouvir que esta doença não escolhe condição social ou qualquer outra variável de segregação entre pessoas. Daí, talvez mesmo que inconscientemente absorvamos a ideia de que todas as pessoas que são acometidas por tal moléstia passem pelas mesmas situações de modo generalizado e único.

Mas não é isso que apontam estudos sobre esse cenário. Algumas perguntas norteadoras são necessárias para desencadear uma reflexão mais apurada sobre tudo isso.

Diante do acometimento da doença, todas as pessoas têm as mesmas condições de enfrentar esse problema, considerando aí, facilidade de acesso aos equipamentos e processos de saúde e tratamento?

O isolamento social é possível e cômodo para todos os indivíduos, sem gerar constrangimentos e prejuízos nas suas vidas cotidianas?

Quem são os curados e falecidos nesse mosaico macabro de imagens horripilantes que estampam os noticiários todos os dias?

Segundo dados da CNN Brasil com base em boletins epidemiológicos do Ministério da Saúde, “A cada dez brancos que morrem vítimas da Covid-19 no Brasil, morrem 14 pretos e pardos, que em sua soma, representam os brasileiros negros”. (CNN BRASIL).

Na matéria do publicada no portal G1, alguns dados curiosos são apontados quando mostram que houve uma aumento exorbitante de mortes entre pretos e pardos vítimas da covid 19 num período de quatro semanas. O salto passou de 32,8% para 54,8%, e se formos comparar a porcentagem de doentes internados com base no recorte racial, pacientes brancos, mesmo em queda, somam 51,40%, enquanto pretos e pardos chegam apenas a 46,7% das internações, mesmo considerando o percentual maior para mortes entre estes.

Os dados mais recentes trazidos pela CNN Brasil, com matéria publicada em 05.06.20, apontam a continuidade no descompasso desse extermínio. Na análise das mortes, pretos e pardos somam 57%, enquanto brancos chegam a 41% das vítimas fatais dessa doença.

É possível que estes dados sejam ainda maiores se levarmos em consideração a falta de transparência no trato com as informações que deveriam ser notificadas pelos equipamentos de saúde. Em 21 deste mês, o portal da Agência de Notícias das Favelas, publicou uma matéria que aponta para a nenhuma seriedade quanto as notificações sobre o perfil racial dos doente pela covid 19, mostrando que apenas 8 das 27 unidades da federação, divulgam os dados referentes a raça desses pacientes.

A Portaria nº 344, de 1º de fevereiro de 2017, torna obrigatória no Art. 1º “A coleta do quesito cor e o preenchimento do campo denominado raça/cor serão obrigatórios aos profissionais atuantes nos serviços de saúde, de forma a respeitar o critério de autodeclaração do usuário de saúde, dentro dos padrões utilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e que constam nos formulários dos sistemas de informações da saúde como branca, preta, amarela, parda ou indígena”.

Na verdade, essa falta de seriedade com as informações sobre o cenário que engloba os acometidos pela covid 19, vem se intensificando quando o Ministério da Saúde tenta diariamente boicotar esse serviço de informação para a sociedade. Diante disso, sobram indagações e conjecturas sobre a realidade efetiva desse cenário, isso gera, obviamente, uma série de danos à sociedade quando pensamos em políticas públicas para setores sociais distintos.

O fato é que devemos considerar que pessoas negras são mais efetivas no mercado de trabalho informal. Infelizmente, elas que geralmente são de regiões periféricas das cidades, têm pouca facilidade aos tratamentos e equipamentos de saúde, dificultando a procura por atendimentos, as vezes, devido a localização geográfica, que não favorece o traslado desses indivíduos até o atendimento médico.

A Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, feita pela Fiocruz em parceria com o Conselho Federal de Enfermagem em 2013, mostra outro dado relevante também para aqueles que estão na linha de frente contra a covid 19. É que segundo a pesquisa, “entre os profissionais de enfermagem brasileiros, 42,3% são brancos e 53% pretos e pardos”, incluindo aí, enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem”.

A busca pela sobrevivência certamente faz com pretos e pardos fiquem mais vulneráveis a contrair o vírus porque precisam sair para buscar mecanismos que lhes possibilitem viver. Empregadas domésticas, entregadores, garis, entre outros profissionais que na sua maioria são pretos, não gozam dos mesmos privilégios dos brancos abastados.

A administração da cidade de Belém/PA, declarou no dia 06.05.2020 que o trabalho de empregadas domésticas passaria a ser considerado como serviço essencial. De acordo com o prefeito Zenaldo Coutinho em declaração numa rede social: “Empregada doméstica está prevista como atividade essencial. […] Tem pessoas que precisam, pela necessidade de trabalho essencial, a ter alguém em casa. Uma médica ou médico, por exemplo, precisa de alguém que ajude em casa”. (G1).

Para a estudante de Pedagogia e militante do Levante Popular da Juventude, Ana Fátima, mulher negra e periférica, “A nossa cor da pele ela influencia muito, isso é muito triste, […] muitas mulheres ainda estão trabalhando em casas de pessoas brancas no centro nas cidades para poder estar fazendo as coisas domésticas de casa e deixando seus filhos só. […] a mulher negra, ela acaba mesmo nesses tempos difíceis, sendo objeto para estar fazendo coisas para uma galera branca, é muito difícil, muito complicado tudo o que a gente vive, e aí, nós mulheres negras sofremos mais”.

Ana Fátima. Estudante. Crédito: Arquivo pessoal

Ainda nessa linha de reflexão, o estudante de Pedagogia, membro da UJS e da UNEGRO, Saymon Lopes, ressalta, “As políticas públicas não chegam nos bairros periféricos e mais carentes das cidades e nesse período de pandemia tudo fica mais difícil pra quem mora nessas áreas. Precisamos nos isolar pra não sermos contaminados, mas também precisamos trabalhar para se mantermos vivos nesse CIStema capitalista. E não só lutamos contra o corona vírus, lutamos diariamente contra a repressão policial que aumentou nesse período, contra o descaso do governo federal e contra a falta de acesso às políticas públicas”.

Saymon Lopes. Estudante. Crédito: Dedita Ferreira.

O que vemos escancarado nesses relatos é a acentuada desigualdade social e geográfica quando falamos da realidade sobre a disseminação da covid 19 na sociedade brasileira. Essa desigualdade toma rosto e endereço quando se considera os pretos e pardos que se situam geograficamente em regiões periféricas das cidades.

Isso se torna mais grave quando esses rostos são ignorados e se tornam apenas números relativizando suas histórias. Fica a suposição de que a falta de informação que contraria a legalidade, não é algo do acaso, é na verdade, estratégia pensada e executada com o intuito de maquiar dados e situações, para que isto contribua de alguma forma com a falta de efetivação de políticas públicas que minimizem os impactos da desigualdade, principalmente nesse momento.

Não é à toa que o próprio Ministério da Saúde vem engenhosamente se dedicando ao descaso com as informações sobre a situação nefasta ocasionada pela covid 19, e pior, além de tudo isso, é o corpo de gestores desse Ministério ser formado por pessoas que não são da ala de profissionais da saúde.

Infelizmente, seguimos nesse cenário de horror, onde alguns têm o privilégio de se isolar e trabalhar de casa, já outros, têm que se submeter a potente possibilidade de contrair o vírus pelo fato da necessidade de ter que trabalhar para sobreviver. E diante da realidade de ter contraído a doença, tudo piora, pois, as condições de acesso e tratamento não são iguais para todos, sobrevive possivelmente, quem pode mais.