Nosso problema é só Brasília?

Capa do DVD com imagens da chacina nos presídios - imagem editada para não retratar as cenas chocantes (Créditos: Reprodução Internet)

É comum ver, na fala do brasileiro, a sensação de que tudo de ruim que temos no país está concentrado na Capital Federal e na classe política que lá se encontra. Parece que basta cair uma bomba nuclear em Brasília, e todos os nossos problemas enquanto nação estariam resolvidos. É evidente que a afirmativa é um erro. Não estou defendendo os nobres políticos que habitam o Planalto Central, mas, o fato é que eles nada mais são que um reflexo de nossa – doente – sociedade. Para tanto, vale uma minirretrospectiva 2017.

O esperançoso 2017 mal começou e já nos traz muito do que nos envergonhar. Se, na China, 2017 é o ano do galo, no Brasil, parece ser o ano do mico. Após mais de 60 dias do ano, pouco menos de 17% do total, já vivenciamos fatos que irão entrar nas mais tristes páginas de nossa História.

A começar pelas carnificinas nos presídios: somente nos primeiros 15 dias do ano, os massacres deixaram 133 pessoas mortas – ainda não se sabe o número total e oficial – em dez episódios diferentes distribuídos por oito estados (Alagoas, Amazonas, Paraíba, Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Rio Grande do Norte e Roraima). As mortes foram executadas com requintes de crueldades e, graças à evolução tecnológica e contribuição dos guardas prisionais, foram gravadas pelos próprios presos e depois jogadas no buraco negro da internet. Não tardou até que fossem compiladas em DVDs espalhados pelos centros comerciais das grandes capitais e que simplesmente se tornassem um sucesso de vendas, esgotados nas melhores estabelecimentos do ramo. Ter consciência do sucesso entre os ditos “cidadãos de bem” de um DVD que apresenta a forma brutal com que um ser humano tira a vida de outro e posteriormente corta seu corpo em pedaços demonstra claramente o nível assustador em que a nossa sociedade se encontra. O gozo com a dor alheia, seja quem for o maltratado, não pode ser encarado de outra forma senão como doença. Este fato, somado ao sem número de declarações de ódio como: “tinha que matar mais”, “tem que fazer uma dessa por mês” etc. nos faz concluir que a diferença entre quem segurou a faca e quem comprou o DVD ou proferiu tais declarações é apenas a oportunidade.

Em São Paulo, durante o mês que passou, a esposa de um ex-presidente viveu graves problemas de saúde em razão de um AVC, sendo internada e, posteriormente, chegou ao óbito. Nesse ínterim, a atitude de alguns médicos, que clinicam em um dos hospitais mais bem conceituados do Brasil, surpreendeu o país. Do vazamento do prontuário médico até um “tutorial” do que fazer para encurtar a vida da paciente, tudo foi divulgado na mídia após esses diálogos serem flagrados em conversas de grupos no WhatsApp. Um rapaz e uma moça, brancos, classe média, executores da profissão mais respeitada dentro de uma sociedade, aqueles a quem esperamos que nos salvassem, estavam fazendo justamente o contrário. Com certeza, essas duas pessoas, assim como quem comprou o DVD, se encaixariam no padrão coletivo de “cidadão de bem”. Mas sempre me questiono: será que tal expressão ainda faz sentido?

No Espírito Santo, familiares de policiais militares protestaram por diversas pautas, impedindo assim os policiais de saírem para efetuar o patrulhamento das ruas. Estes atos resultaram no colapso de algumas cidades do Estado e em mais de 100 mortes. Mesmo chegando a este número absurdo de vidas perdidas, a ausência de policiamento perdurou por dias. Saques também foram comuns no período. Tantos os familiares de policiais, que verificando a proporção do caos social instalado poderiam ter permitido a atuação da Polícia Militar, quanto os policiais, que poderiam ter enfrentando de maneira pacífica os manifestantes/familiares e ido às ruas trabalhar, e também os cidadãos que cometeram os diversos crimes registrados – todos esses atos demonstram que diversas esferas de nossa sociedade precisam rever seus conceitos de certo e errado. A construção do caos aqui foi um trabalho coletivo.

Nestes três casos simbólicos – teríamos muitos mais por falar, como a morte por arma de fogo de mais uma criança nas favelas do Rio de Janeiro -, vemos um resumo da sociedade brasileira e suas atitudes em tempos atuais. Seja o médico, uma figura de elevada estima social, sejam cidadãos comuns e policiais, que compõem a parte mediana de nossa estrutura social, ou mesmo os criminosos, ignorados por nossa sociedade e retirados do convívio coletivo, todas estas pessoas demonstram que precisamos repensar nossas ações em cada esfera da vida pública, social e coletiva. Que vivemos uma crise não há dúvidas, mas ela não é somente econômica, ela é também ética e social. Esta é uma crise que afeta o bolso, mas também nossas relações humanas e, a cada dia, mais nos desumaniza.

Em 9 semanas, tivemos mortes, roubos, prevaricação, descaso e atitudes eticamente condenáveis – tudo que vemos em Brasília, através da mídia, ao longo do ano inteiro. Mas, dessa vez, os absurdos também estavam do lado de fora da capital. Brasília é apenas um espelho do que nós somos.