Nilcemar Nogueira: ‘Não tenho varinha mágica’

Créditos: Tiago Nascimento / ANF

Entrevista: Nilcemar Nogueira, secretária municipal de Cultura do Rio

Os quadros dos avós na parede do gabinete já denunciam: a cultura está no sangue de Nilcemar Nogueira. Neta de Dona Zica e Cartola, fundadora do Museu do Samba e ex-diretora do Museu da Imagem e do Som, ela ganhou em janeiro a dura missão de arrumar a casa e comandar uma das mais importantes pastas de uma cidade que ainda tentar respirar arte em meio a uma profunda crise financeira. Nesta entrevista, a secretária municipal de Cultura da gestão Marcelo Crivella esclarece pontos importantes, alguns deles polêmicos, de seus primeiros meses à frente da SMC.

 

 A Voz da Favela: Enquanto mulher negra de origem popular, como a senhora se vê ocupando um cargo como esse?

Nilcemar Nogueira: Em primeiro lugar, gostaria de registrar que a Agência de Notícias das Favelas teve papel fundamental nesse convite. Fizemos uma parceria para um debate (o Encontro da Favela com Candidatos à Prefeitura do Rio, organizado pela ANF antes das eleições municipais 2016) no Museu do Samba (do qual era diretora) que me oportunizou falar de toda uma militância. Acho que isso influenciou bastante. Para mim, está sendo superdesafiador, porque não é usual haver negros no primeiro escalão. Sou representante da cultura popular, mas não tenho encontrado resistência, porque, além da minha história familiar, tenho formação técnica. Meu histórico de militância vem da cobrança contra a não inclusão em políticas públicas de um lado da cidade que sempre ficou à margem de ser contemplado, e ele está agora incluído nas pautas de governo. Estou livre para apresentar as propostas para o prefeito e tenho tido apoio na execução dessas ideias.

 

AVF: Quais são os desafios?

NN: Nós estamos vindo de 24 anos com o mesmo grupo político no poder e diante de um novo pensamento de governança, inclusive. A sociedade faz cobranças como se os problemas tivessem sido criados agora, mas eles estão postos há anos. São várias as urgências em um momento de muita austeridade, com uma crise mundial. Mas isso não tem sido um impeditivo para que a gente trabalhe, pense e execute as ações necessárias. Estou pensando política cultural para todos, em igualdade de condições de acesso, e também a cultura como um vetor de desenvolvimento socioeconômico e cultural. Passamos os últimos três meses fazendo muitas escutas e desenhando um programa estratégico.

 

AVF: O que podemos esperar de concreto daqui para a frente, então?

NN: Primeiramente, uma gestão participativa, que não vai pensar em cultura apenas pelo viés do entretenimento. Há um vício do olhar sobre a cultura. É como você fazer obra e pensar no saneamento básico. As pessoas pensam: “Ah, esse governo não está fazendo nada”, porque ele não aparece. Mas esse é um alicerce que você precisa fazer ou a casa cai. Estamos trabalhando para fazer com que uma parte da sociedade veja valor no que é produzido do outro lado da cidade. Agora, também estou abrindo um edital para fazer uma circulação de mão invertida.

 

ANF: O que significa isso?

NN: É ter circulando não só o que é produzido na Zona Sul. É levar para lá o que é produzido na Zona Norte, ter pauta para essas produções dentro dos teatros da Zona Sul. Às vezes, as iniciativas populares não se apresentam da melhor maneira porque nunca tiveram apoio. Então, a expectativa é dar condições. Temos também um estado desesperador de sobrevivência, e aí estamos falando não só das linguagens tradicionais. A gente quer dar foco e importância para a gastronomia, para a moda…

“A favela tem de falar por si mesma.”

AVF: Para a economia criativa num geral?

NN: Sim. Nossas agendas importantes, como os palcos de música da festa de réveillon, também têm que abraçar cada vez mais aquilo que é referência aqui. Ter mais samba, mais funk, que é um lado criativo da cidade.

 

ANF: Há muito questionamento da população a respeito das Bibliotecas Parque, que são polos culturais importantes para as favelas. Há alguma possibilidade de a SMC agir em favor delas?

NN: As Bibliotecas Parque pertencem ao Estado.

 

ANF: Sim, mas houve um movimento de que a Prefeitura ia asssumir algumas.

NN: A Prefeitura entende a importância. Logo de início, a gente quis muito abraçar as BPs. Mas o cenário hoje é de uma divida de R$ 4 bilhões. A própria Prefeitura possui uma rede de bibliotecas que nunca teve nenhum programa voltado para elas. Tenho conversado com a secretaria estadual, mas não sobre assumi-las, porque não temos condições financeiras. Cada BP custa R$ 2,2 milhões. Estamos estudando como fazer uma parceria para que possam ser reabertas. É preciso que a população tome conhecimento de que foi passada uma saúde financeira na Prefeitura que não existe. Cada um de nós está buscando parcerias público-privadas para implementar as urgências. Estou buscando a criação de um fundo que contemple uma política de Estado, de maneira que a cultura não fique à mercê de bons ventos econômicos.

 

AVF: No início da gestão, a senhora disse que gostaria de integrar mais a Cultura a outras secretarias. De que maneira pretende fazer isso?

NN: Umas das possibilidades é pensar nessa parceria entre escola, cultura e educação. Estamos trabalhando para que todas as escolas possam ser entendidas como equipamento cultural, tentando fazer um esforço para começar esse programa no segundo semestre.

 

AVF: O projeto Ocupa Escola já faz mais ou menos isso. A senhora conhece?

NN: Conheço. O Ocupa Escola é uma tentativa, e já houve outras com vários nomes, de ocupar o segundo turno escolar. Mas a questão está em uma atividade integrada. Outra questão é o desenvolvimento de massa crítica. A favela tem de falar por si mesma. Ela não precisa mais de intermediários para se colocar. Você precisa de uma escuta qualificada, e nós vamos qualificar essa escuta, que vem impregnada de preconceitos.

 

AVF: A senhora sinalizou que pretende construir um museu da escravidão. Em que pé está o projeto atualmente?

NN: O Museu da Escravidão e da Liberdade (MEL) é uma das grandes frentes da minha pasta. Vai ocupar o Galpão da Ação da Cidadadania, que fica em frente ao Cais do Valongo (na Zona Portuária). A sigla não significa que a escravidão foi doce, mas é uma referência ao canavial, ao lugar onde os negros estavam sendo escravizados. Vai ser um museu de território, envolvendo tudo que está naquela região. O Brasil teve 4 milhões de negros escravizados. O Valongo foi a maior porta de entrada, recebendo dois milhões. É uma historia que foi deturpada e omitida nos livros. Enquanto os favelados não entenderem por que estão nessa condição social, como cobrar reparação? Estamos falando de um lugar que o Brasil ainda não tem e que precisa ter com o compromisso de contar uma memória que ainda se encontra subenterrada.

 

AVF: O anúncio causou polêmica.

NN: A polêmica é exatamente pela forma como está sendo criado: de baixo para cima, ouvindo os negros. Vários pesquisadores querem falar sobre como essa história deveria ser contada. Mas ela precisa vir primeiro da população, e como a populaçao negra é maioria, é ela quem vai dizer. Se vai falar da herança, do legado, se vai passar ou não pela dor, não sou eu quem vou determinar.

 

ANF: Existe a intenção de integrá-lo com outros equipamentos locais, como o Instituto Pretos Novos (IPN)?

NN: Como eu disse antes, é um museu de território e já contempla todas as instituições. O IPN recentemente fez uma grande publicidade sobre as condições pelas quais estava passando. É preciso pensar qual modelo de gestão é necessário à sustentabilidade. A Prefeitura precisa abraçar até Santa Cruz. Tudo fica sempre no Centro, Zona Sul, Zona Norte. Estou conversando exaustivamente. Temos que entrar para ajudar a dar um start, mas estar sempre trabalhado para que ganhe independência. Tem que planejar, fazer diagnóstico, criar projeto e, quando implementar, essas ações precisam ser monitoradas, avaliar resultados.

Apoiar significar provocar desenvolvimento, tirar os gestores da zona de conforto.

AVF: A grande polêmica da sua gestão tem sido o não pagamento do Fomento da Cultura 2016. Como lida com a questão?

NN: O Fomento é um edital sem previsão orçamentária. O próprio edital tinha uma cláusula que nunca existira antes e o condicionava à existência de orçamento. Visitei as possibilidades junto ao prefeito, que na primeira hora disse acreditar ser possível. Mas se desenhou logo a seguir um déficit de R$ 4 bilhões. Um dos argumentos é a circulação da cultura estar comprometida. A circulação está nos nossos equipamentos, cuja ativação pelo Fomento corresponde a 14%. É muito pouco. Então, é importante ter o diagnóstico. Quem é responsavel pela grande ativação do equipamento é ele próprio. É essa voz que tenho que ouvir. Ela passa não só por promover atores locais, mas parte da expectativa daquela região, sempre numa simbiose com o território onde está instalado. Esse caso cai na máxima de que um lado da cidade pensa que o outro tem que engolir tudo. Não, o outro tem que falar.

AVF: Muitos dos projetos do Fomento são na Zona Norte e Zona Oeste…

NN: Não, não são. Volto a dizer: eu não posso tomar nenhuma atitude irresponsável, prometer algo que não posso cumprir. Além disso, o produtor que só vive disso vai falir. O Fomento foi usado para ajudar a melhorar sua perfomance.

 

ANF: Como ficam nesse contexto as Lonas Culturais e Arenas Cariocas, fundamentais para a periferia?

NN: Quando cheguei, a ordem era cortar 25% de todos os contratos. Pela importância para a cidade, tive que fazer um estudo de impacto e mostrar para o prefeito que ali não podia mexer. Elas já vivem no limite. Agora seria o momento de fazer uma nova licitação. Eu suspendi. Preciso conhecer uma por uma e seu modelo de gestão. Apoiar significa provocar desenvolvimento, tirar os gestores da zona de conforto. Eles não podem ficar sentadinhos, esperando o aporte da Prefeitura. Precisam buscar parceiros no seu entorno. Mexer no movimento da pessoa é também investimento. Você ter que dar um dinheirinho, como a um pedinte, não é saudável para ninguém.

 

ANF: E o Programa Ações Locais, que promove iniciativas por toda a cidade? A senhora pretende manter?

NN: Sim, tudo que é favorável ao reconhecimento da força local será mantido, com a única diferença de que as pessoas serão treinadas a apresentar indicadores de resultado. Eu não tenho tendência nenhuma a paternalismo, as pessoas têm que ser provocadas a pensar e a se qualificar. Se elas não qualificarem sua fala, não vão chegar a lugar nenhum. Não tenho varinha mágica. O que tenho é disposição, e muita, para trabalhar. As pessoas não estão acostumadas a ouvir verdades. Comigo vão ouvir.

 

ANF: Em breve, a senhora completa um semestre à frente da pasta. Como gostaria de ser lembrada nesses primeiros seis meses?

NN: Primeiro, que sou uma pessoa que trabalha muito. Tenho uma equipe aguerrida, estou fazendo uma política estruturante, e as pessoas já estão sentindo cada vez mais a marca da minha pasta, que é cultura + diversidade. Todas as minhas ações são publicizadas, de extrema transparência. Todos os canais estão abertos. É só seguir a página da SMC no Facebook. Respondo a todos. Só não aceito desrespeito. Já precisei demitir pessoas. Agora mesmo, no Museu do Amanhã, três pessoas foram demitidas por racismo. Às vezes, ele começa comigo. Eu faço visitas aos equipamentos. Chego como qualquer pessoa, depois, digo quem eu sou. A Cidade das Artes é outro exemplo. A gente democratizou toda a agenda, porque era um elefante branco. Agora, tem o “Enfim Sexta”, que é gratuito, com grandes atrações, música clássica a R$ 10, passinho, feira gastronômica. Mas tivemos que demitir quase metade dos funcionários, porque preto e pobre era maltratado. No Museu do Amanhã, todos estão passando por um treinamento para saber que não há diferença de cor, de gênero. Todos têm que ser atendidos da mesma forma. Ele vai fazer agora em novembro uma exposição toda voltada para a cultura afrobrasileira. Ninguém percebia o racismo instalado ali dentro? O Museu do Amanhã é uma iniciativa super necessária, importante, premiado internacionalmente. Ele te provoca o desejo para o futuro. Mas onde está o meu passado? Em qual museu dessa cidade? Os outros museus estão traduzindo a história do meu colonizador. Eu quero ver a minha história, a contribuição do povo brasileiro.

Publicado na edição de maio de 2017 do Jornal A Voz da Favela.