Nada novo sob o sol

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Os grandes jornais tentam induzir o leitor a crer que o País encontra-se estarrecido com escândalos de corrupção ligados ao financiamento empresarial de campanhas. A mais nova crise no governo teria abalado os grandes partidos, o sistema político e a própria ideia de República, que teria de ser refundada. Mas terão mesmo os últimos acontecimentos a capacidade de provocar perplexidade e revolta, como se espera de situações escandalosas? Quem é que foi realmente surpreendido ou ficou decepcionado com a exibição pública da falência do sistema político? A polarização nas três últimas eleições presidenciais (2006, 2010, 2014) nos ajuda a responder ambas as questões.  Como se sabe, essa polarização pode ser explicada, ao menos em parte, pela divisão entre o voto predominantemente popular (eleitores com menos renda e menos escolaridade; regiões e sub-regiões mais pobres) que levou às vitórias sucessivas de Lula e Dilma e os votos oposicionistas, mais enraizados nas camadas médias das regiões Centro-Sul.

Para analisar mais de perto essa polarização é preciso voltar a 2002, ano da vitória de Lula. É verdade que, durante a década de 1990, a atuação dos parlamentares do PT foi marcada pelo “denuncismo” e pela defesa da ética contra a “velha política”, mas a candidatura de 2002 não foi moralista; foi, pelo contrário, uma autêntica adesão ao sistema político. Ao contrário de figuras como Jânio Quadros ou Collor de Mello, Lula não foi eleito com a bandeira da moralidade. É claro que o PT acumulou ao longo dos anos um “capital político” como “partido da ética” e, ao menos para o seu eleitorado tradicional, ele representava a esperança de renovação, mas o determinante na vitória de Lula foi o compromisso e não o enfrentamento com o sistema político. Tratava-se de preservar o modelo econômico e estancar a grave crise social gerada pelas reformas do modelo anterior. Em outras palavras: Lula não foi eleito para combater a corrupção (e muito menos para liderar um processo de mudanças profundas) e sim para viabilizar um “pacto social” que desse ao sistema político um último fôlego, após o desmonte privatista do Estado. O modelo de governo que surgiu a partir daí reafirmava, por um lado, o compromisso do Estado com os grandes grupos econômicos; por outro lado, dava continuidade e ampliava de maneira substancial os programas de combate à miséria (primeiro o “Fome Zero”, depois a “Bolsa-Família”) formulados durante os anos 1990, em experiências locais, como contrapartida do ajuste econômico.

Na eleição de 2006, manifestou-se pela primeira vez a polarização eleitoral. A oposição das camadas médias dos grandes centros ao pacto lulista foi alimentada pela denúncia do “mensalão”, usada pela mídia para deflagrar sua cruzada contra a cúpula do PT. Do outro lado, as camadas populares que compõem a base da pirâmide social apoiaram maciçamente a reeleição de Lula. Nem as denúncias quase diárias, nem a queda dos aliados mais próximos afetou a imagem do presidente junto aos mais pobres. É comum que se atribua esse apoio à indiferença, à falta de cultura ou a um novo tipo de clientelismo que teria rifado o futuro do País ao preço de migalhas dadas aos pobres. A realidade é bem outra. O motivo para a alta popularidade de Lula não era apenas a “blindagem” da mídia – com a qual as elites econômicas reafirmavam o pacto da eleição anterior – mas, sobretudo, a retomada do crescimento econômico. Decisivas para a estabilidade do governo foram a ampliação do emprego, da renda do salário e do crédito popular, que, juntamente com os programas emergenciais, estabeleceram um sistema mínimo de proteção social – tudo isso, é claro, na dependência de uma frágil conjuntura externa alimentada por circuitos deficitários globais.

A sobrevivência do governo durante a tempestade política de 2005 tinha menos a ver com a indiferença em relação ao sistema político do que com a identificação de Lula com uma efetiva redução da pobreza de massas. Era um voto pragmático, não ideológico; pelo menos não no sentido da ideologia político-partidária. Também uma grande parte da “classe média” teve razões materiais para alimentar sua animosidade ao governo: o pacto lulista foi costurado apenas com as elites e produziu efeitos positivos principalmente sobre a base da pirâmide social; uma situação decorrente de novos padrões de estratificação e de conflitos de interesses que pouco tem a ver com o marxismo de manual da “luta de classes”.[1] Ao invés da “conciliação”, o pacto lulista estimulou, embora de modo irrefletido e contra sua própria ideologia de integração dos pobres na “nova classe média”, uma lógica concorrencial no interior do sistema de assalariamento. O que aparecia, do lado das camadas populares, como um processo de ascensão e compensação, significava, por outro lado, o achatamento das condições de vida das camadas médias e a proliferação de formas rebaixadas e precarizadas de assalariamento. Além disso, as “políticas afirmativas” direcionadas a segmentos específicos da população alimentaram uma hostilidade crescente daqueles que viam a ampliação do consumo popular como ameaça à sua posição social.

A oposição política construiu uma forte base de massa, já nos primeiros anos do pacto lulista, a partir do discurso moralista e da narrativa do “mensalão”. A pregação moral oposicionista disfarçava não só interesses de segmentos preteridos pelas políticas governamentais, mas ao mesmo tempo os privilégios e preconceitos dos relativamente privilegiados. Por isso, a oposição assumiu um tom cada vez mais incoerente e agressivo. Com o apoio dos grandes meios de comunicação, ela incutiu no seu público cativo a tese de que o sistema político e as instituições estavam sob o controle de uma única organização partidária. Outro feito da oposição foi convencer esse mesmo público de que os programas sociais e a retórica da integração econômica representavam uma mobilização política de antagonismos sociais. Tanto a renda básica quanto a ascensão pelo consumo, ambas definidas por critérios de mercado, se converteram, na ideologia oposicionista alucinada, em uma agenda “esquerdista”. Entretanto, estes antagonismos, inevitáveis nas modernas sociedades concorrenciais, não foram produzidos por uma estratégia política conflitiva; eram, pelo contrário, meros efeitos colaterais dos processos de inclusão induzidos pelo Estado. [2]

Toda essa conjuntura ascendente, embora contraditória, sofreu uma modificação drástica a partir da crise de 2008. O modelo de exportação de commodities no qual se assentou o crescimento da economia brasileira desde o início da era Lula sofreu um golpe. Os efeitos desastrosos da redução dos preços das matérias-primas teve de ser absorvido pelos gastos estatais. As medidas de emergência, entre o fim do governo Lula e a eleição de sua sucessora, Dilma Rousseff, puderam apenas simular por algum tempo uma situação de normalidade. Nesse quadro, os atritos do governo com as elites empresariais se tornaram inevitáveis, o que resultou na formação de um novo arranjo político capitaneado pelos partidos de oposição e com base no descontentamento das camadas médias dos grandes centros. Já as grandes manifestações de 2013 anteciparam em mais de um aspecto esse desfecho: sua composição heterogênea, retratando tanto as expectativas frustradas daqueles que ascenderam socialmente quanto o “medo da queda” que afligia os setores médios tradicionais, deu aos protestos um caráter contraditório, mas amplamente favorável a estes últimos, seja em termos numéricos, organizacionais ou ideológicos. Não por acaso, as principais bandeiras de Junho de 2013 foram a da “moralidade” (crítica genérica da corrupção política, especialmente os gastos com os megaeventos) e da “eficiência” (a exigência incoerente de um “padrão FIFA” nos serviços públicos). O foco das manifestações, portanto, foi totalmente dominado por um imaginário de “classe média”. O motivo é simples: ao longo de toda a era Lula, as massas populares foram mobilizadas apenas como “sujeitos econômicos” e estimuladas pelos programas de governo a progredir individualmente no interior do sistema salarial ou como empresários da sua própria força de trabalho.

Com a nova rodada da polarização em 2014, o bloco oposicionista ganha força e pela primeira vez seu discurso começa a chegar às camadas populares – um efeito direto da volta do desemprego a patamares anteriores aos da era Lula. No entanto, ideia de mudança continuava assentada na mentalidade de “classe média”, gerando o amalgama de moralismo, discriminação e crença pró-mercado da candidatura de Aécio Neves. Em determinados momentos, a polarização assumiu a forme de um confronto insólito entre a “modernidade” do capitalismo de cassino global para minorias e o “atraso” socioeconômico de regiões periféricas (em termos nacionais: a Avenida Paulista contra o Nordeste). Os mesmos setores de oposição declararam o gasto público, que garantira a manutenção dos níveis de investimento, como a origem da crise: invertendo-se a relação de causa e efeito, o declínio do investimento privado podia ser atribuído a uma interferência exagerada do Estado na economia de mercado supostamente “saudável”. Além disso, a grande imprensa (seguida por vozes secundárias mais radicalizadas na internet) ocultou até onde era possível a dimensão sistêmica da corrupção na tentativa de preservar os últimos vestígios de legitimidade da esfera política e de denunciar uma suposta pretensão “totalitária” do PT. Em outras palavras: criou-se o fantasma do “lulo-petismo” para ocultar o pacto conservador do seleto grupo de empresários e dirigentes organizado em torno de Lula com o sistema político tradicional e transferi-lo integralmente para o PT. Estranhamente, a “hegemonia petista” coincidiu com a absorção quase total do petismo pelo establishment político-econômico e com a condenação judicial de suas principais lideranças. Em última análise, essa operação midiático-oposicionista defendia o sistema político com a tese do protagonismo do PT e do ineditismo da corrupção como sistema. Pelo menos desde a crise política de 2005, esse discurso se confunde com a formação de uma extemporânea ideologia de mercado que apaga da história a recente crise do neoliberalismo implantado nos anos 1990 e atribui a crise econômica ao “excesso de Estado”.

A nova agenda de corte de gastos e desmantelamento da proteção social, iniciada em 2015, em meio ao processo de afastamento da presidente Dilma, foi uma consequência da crise. Mesmo o governo Dilma já se orientava claramente nesta mesma direção. O processo de desconstrução da era Lula também foi alimentado pelo início da Lava-Jato, em março de 2014, a partir de Curitiba, mas em associação direta com a oposição (agora no governo) e, sobretudo, com a ideologia de mercado. As massas que foram às ruas exigir a queda de Dilma esperavam que do novo governo germinasse milagrosamente uma “retomada da confiança” dos investidores. Desse modo, as camadas médias, sob influência da propaganda ideológica desprovida de conceitos da “nova direita”, deram um aval às medidas de desmonte. No entanto, a dificuldade de impor as reformas e a agudização da crise política produzida pelas ações do MPF, inviabilizaram o governo e aprofundaram a contradição entre os setores médios e os partidos políticos tradicionais. Se a Lava-Jato atuou de modo unilateral a fim de derrubar o governo Dilma, agora se volta também contra os aliados de ocasião. Trata-se de um conflito – cujo desfecho permanece indefinido – entre a “ideologia pura”, liberal e messiânica, de refundação do Estado e a realidade do sistema partidário-empresarial atrelado ao Estado.

Alimentando uma ilusão apocalíptica, os integrantes do MPF (não por acaso, todos oriundos dos setores médios) apenas reforçam a orientação destrutiva das “reformas” governistas e mais uma vez convergem, só que involuntariamente, com os partidos tradicionais e seu projeto de desmontagem das garantias sociais. Enquanto a “classe média” finalmente tem um choque de realidade, quando seus porta-vozes subitamente “descobrem” os escândalos envolvendo falsos portadores da esperança como Temer e Aécio, a base popular de Lula parece seguir como uma terceira força distante do conflito entre os atores principais do impeachment. Os eleitores do governo deposto foram fartamente denunciados como uma massa de manobra ignorante do “populismo de esquerda”, quando, na realidade, queriam apenas ascender socialmente por meio do consumo individual estimulado pelos governos de Lula e Dilma. Agora, essa força residual (mas de modo algum desprezível) quer apenas preservar um mínimo de garantias sociais. Se o lulismo foi, desde o início, um pacto de sobrevivência no interior do sistema político, seu esgotamento, na sequencia da crise econômica mundial, só poderia antecipar uma grave crise institucional.

Como é que as diferentes camadas sociais se comportam diante desta situação? Nas camadas médias, que até agora foram levadas pelas alternativas ilusórias do sistema partidário, se manifestam as tendências que procuram canalizar para opções autoritárias a frustração e o ressentimento gerados pela crise (não surpreende que uma candidatura que mobiliza o ódio e a agressividade cresça mais entre os setores com renda e escolaridade média). Por outro lado, nas favelas, periferias e rincões do Brasil, faz-se a escolha passiva pela segurança mínima, ainda que tal escolha implique a manutenção de duas artificialidades: a do sistema político e a da ampliação dos gastos estatais. Ao invés de um “forte abalo na vida política do Brasil”, a crise política atual não tem merecido mais do que a indiferença dos mais pobres. Fora da agenda institucional e não muito interessados na moralidade dos nossos políticos, podem simplesmente contrapor à indignação dos mais remediados uma daquelas sabedorias antigas: “Haverá algo de que se possa dizer: ‘Vê, isto é novo’? Não. Tudo já aconteceu antes; bem antes da nossa época”. Eclesiastes (1:10).

 

Notas:

[1]. Também a identificação popular com a figura de Lula sempre esteve mais ligada a uma ideia de ascensão individual pelo consumo do que à inexistente “identidade de classe”.

[2]. Entre os partidários do governo, por sua vez, a dinâmica contraditória da integração pelo consumo foi sempre deixada de lado em nome do elogio ao “capitalismo popular” que supostamente teria promovido nos seus melhores anos uma ascensão social geral.