Memórias dos tempos de luta

Créditos: Reprodução Internet

Mais um domingo de sol, cheio de claridade e luz. De onde estou, vejo o céu limpo, simplesmente azul. Dia que nos dá energia, que nos impele para vida, que nos guia como viajantes que somos sem dia ou hora certa de aportar.

Leio, leio, leio muito, cozinho e tenho aprendido coisas deliciosas; quase não saio, nunca soube “chutar lata”, andar sem rumo, andar por andar. Sempre saí com destino certo, sempre tive uma direção, e ainda não aprendi a só olhar o horizonte e ir. Então, sento e leio, e com isso ando, corro, pulo, viajo nas folhas impressas. Fico pensando em como outras mulheres como eu estão reagindo agora, como encaram a vida enquanto estão no olho do furacão, como se sentem enquanto a vida passa, enquanto observam o tempo. Será que reagem de forma menos tensa? Será que conseguem viver com alguma leveza? Como resistem?

Enquanto escrevo, percebo que eu e meus filhos passamos pela vida de forma discreta, entre os pingos da chuva. Talvez, pela forma com que a compartimentei, achei mais fácil dividi-la em partes distintas.

Primeiro, a vida doméstica, onde sempre foi território nosso, pessoal, onde muitos poucos conseguiram entrar e os que chegaram até nós foram educadamente distanciados. Foi uma forma de proteção para uma microfamília em que a mãe passava mais tempo trabalhando do que com eles, e que o pai estava ausente desde que eram pequenos. A casa foi o útero onde sempre fui eu mesma, com defeitos e qualidades. Não sei quantos filhos conhecem realmente os pais ou quando foi que os descobriram em sua grandeza e na sua pequenez. Os meus me sabem, e isso sempre gerou em nós uma confiança respeitosa. Nunca valeu mentir: mamãe ama, adora, venera, mas mãe é mulher, sangra todo mês, tem TPM, fica puta com o mundo e consigo mesma. Nesses dias, como dizia uma amiga, “Dez anos de análise” para os três. Mas o amor foi exercício diário e, mesmo nos dias de pouca sintonia, foi o elo que nos uniu e fez dessa caminhada não mais de um homem buscando liberdade e sim uma família à procura dela.

A segunda era a vida do trabalho, onde a minha mente se voltava completamente para a militância. Mais que consciência era a necessidade de dar uma direção digna para uma família que vivia entre dois mundos – portanto, a vida de casa era deixada em casa como forma de precaução, para que eu pudesse dar conta das coisas sem me ver emaranhada em dezenas de conselhos ou interferências, e depois não pudesse conduzir a vida sobre o fio da navalha que era conviver com a marginalidade, trabalhar com ela e orientar os filhos para perceberem-se cidadãos apesar da vida fronteiriça em que vivíamos. Os amigos foram mantidos distantes – não que eu não os quisesse por perto para dividir o que gosto, o que ouço, o que leio ou o que amo, mas sempre a vida nos jogou para o futuro, para a espera. Estávamos sempre esperando o dia em poderíamos ser nós mesmos, sem o peso da prisão.

A terceira: a vida de mulher de preso. Mais uma vez, tinha que dividir as forças para suprir o equilíbrio doméstico e o dele de ir semanalmente até a boca do inferno, ficar nua, ter as partes íntimas espiadas, a comida vasculhada, passar horas de fugaz esperança em um pátio cheio de uma triste alegria pelo reencontro veloz, o relógio gigante a nos olhar, cronometrando o tempo da felicidade oferecida em doses homeopáticas, ou ficar encarcerada, na visita íntima, em um cubículo cinza, frio como os túmulos, e ser regurgitada no final da tarde com um sentimento de vazio, de impotência, de pesar. Ali, eu era visita, portanto, a vida doméstica também era uma vida não multiplicada, não compartilhada. Sempre fiz o movimento de ir até as pessoas, mas nunca o caminho contrário foi estimulado. Era prudente que nos mantivéssemos o mais longe possível de problemas que eu não pudesse resolver e que poderiam nos desunir em vez de criar uma resistência contra as intempéries.

A verdade é que é barra pesada ser mulher de um homem preso, com três filhos, sem relações familiares, ser militante de direitos humanos numa área difícil – a prisão, e ser, ao mesmo tempo, esposa, mãe e público-alvo do seu próprio trabalho. Então, as coisas não foram do jeito que eu gostaria, foram do jeito que deu, que a minha sanidade permitiu. Se foi a melhor maneira de lidar com elas?
Não sei, mas apesar de toda improbabilidade, ainda nos amamos.

E que venha o futuro!

 


 

Mexendo em antigos papéis, pedaços de histórias guardadas há muito, resgatei um texto dos tempos de luta…