Favelas, malandras e heróis: uma sociologia funkeira do dilema brasileiro

Anitta no clipe de "Vai, Malandra". (Créditos: Divulgação)

Em Carnavais, malandros e heróis, o antropólogo Roberto DaMatta desnuda o caráter autoritário e estratificado da sociedade brasileira explicitado na pergunta afirmativa “você sabe com quem está falando?”. Com esta frase / bordão, a elite brasileira afirma a sua superioridade e status social diante do interlocutor que é colocado “em seu devido lugar”. Atrás da aparente cordialidade, se estabelecem relações de força, violência e profunda desigualdade que caracterizam as nossas relações sociais.

O contraponto a este “herói” autoritário, representante da elite brasileira, traço afirmativo da desigualdade violenta de nosso país não seria, para DaMatta, uma liderança revolucionária, transformadora e messiânica. Nossa antítese do autoritarismo é a figura do malandro, que não respeita nem crê nos valores da autoridade e do poder, mas se aproveita deles em seu benefício. O malandro não quer dominar a estrutura do poder e a ela se sobrepor – e assim ser absorvido por ela. Ele vive nas lacunas deixadas pelo sistema, e se nutre de seus absurdos e de suas contradições.

Alguns aspectos desta análise genial de DaMatta chamam hoje mais atenção do que quando foi publicada, em 1979: tanto os “heróis” quanto os “malandros” são tipificados por personagens masculinas. De Pedro Malasartes, ícone da malandragem, ao panteão dos heróis nacionais, como Tiradentes a Duque e Caxias, temos uma sociedade brasileira representada por homens. Nenhuma figura feminina, da ficção ou da história, é associada a um dos pólos, seja como representação autoritária, seja da malandragem.

Restava para a mulher um não-lugar, nem dentro do poder oficial, nem fora do sistema, como inversão carnavalesca e malandra. E foi a partir dessa terra de ninguém antropológica que Anitta bagunçou o coreto com “Vai, Malandra”. Seu novo hit, com clipe filmado na favela, quebrou recordes na internet e já ultrapassou com folga as 23 milhões de visualizações em 48 horas. Já caminha para se tornar o maior lançamento mundial da música pop de 2017.  

Anitta é muito mais que um rosto e um corpo bonito: a menina de Honório Gurgel se consolida como um dos maiores nomes do show business planetário. Assim como já fizeram Michael Jackson, Madonna e outros astros da música pop, escolheu a favela como locação de seu clip. Mas faz isso como cria do morro, representante legítima de um modo de vida e cultura periféricas, transformando o tabu em totem: o banho de sol na laje, a piscina de plástico e o bronzeamento com fita isolante adquirem novo status como ícones de uma malandragem relacionada ao modo de vida cotidiano dos meninos e meninas das favelas.

Longe de ser mulher-objeto, Anitta é abelha-rainha, uma artista e entertainer global, completamente consciente e – para usar termos “politicamente corretos” – empoderada em seu lugar de fala.

Alguns discursos do feminismo tendem a ser implacáveis na crítica da objetificação do corpo feminino como a naturalização de padrões estéticos que produzem opressão. Ao mesmo tempo, há feminismos que exaltam o poder feminino, como se devesse a mulher substituir o homem em seu lugar de força e autoridade. Aí, vem uma ex-menina pobre e artista de sucesso global como Anitta para abalar as estruturas dessas narrativas.

Ao mesmo tempo malandra e heroína, Anitta come com farofa a indústria cultural, e projeta com toda a legitimidade a cultura da favela, o corpo feminino real no espaço periférico, a intimidade e a sexualidade malandra da mulher-alfa. O clipe de Anitta não é um manifesto político ou ensaio sociológico, não se propõe a resolver todas as contradições da violência física e simbólica contra a mulher nem ser prova material para julgamentos no tribunal do Facebook. Mas é certamente uma vitória sobre o patriarcado de uma menina carioca que, malandramente, criou umas das maiores polêmicas dos últimos tempos da última semana ao lançar o seu hit do verão. Vai, malandra!