Favela, comunidade carente formada por favelados

Morro do Turano, Rio Comprido, Zona Norte da cidade do Rio. Crédito: Fabrício Motta.

Fiquei nestes últimos dias pensando em algo para escrever na estreia da minha coluna aqui no portal da Agência de Notícias das Favelas – ANF. Pensei em vários temas, e todos, obviamente, com assuntos relacionados à favela. Mas, é claro que pensei em um texto que fosse bem direto e reflexivo, que tivesse uma boa compreensão do leitor e o ajudasse a tirar suas próprias conclusões.

Então, na busca sobre o que escrever, decidi falar sobre algo que passa meio despercebido entre nós favelados, principalmente entre aqueles que procuram esconder suas origens, onde moram, etc. E, sendo assim, resolvi abordar os dois termos usados para denominar as áreas carentes do Estado do Rio de Janeiro, que são favela e comunidade.

Mas, por qual motivo esse assunto me chamaria atenção, se afinal é tudo mesma coisa? E que diferença faz chamar de comunidade ou favela? Mas, chamar de comunidade não é o mais correto, não é mais bonito?

E é por acharem que é tudo mesma coisa – acharem que dá tudo na mesma – que me chamou a atenção e me fez refletir a respeito. E por acharem também que o termo “comunidade carente” ou simplesmente “comunidade”, como é chamado normalmente, é o mais correto e o mais bonito para nomear estas áreas, que não é tão ofensivo para as pessoas que nelas vivem. E desta forma tentam modificar, substituindo o termo “favela”, que é usado desde o surgimento da primeira no Brasil no final do século XIX.

A primeira favela do Brasil, segundo alguns historiadores, surgiu no ano de 1897. E, ainda segundo eles afirmam, o surgimento foi a partir da ocupação do local que hoje é conhecido como Morro da Providência, que fica localizado na região central da cidade do Rio de Janeiro. Mas, antes de ter este nome, o local era chamado de Morro da Favela, e foi dado pelos soldados sobreviventes e vitoriosos da Guerra de Canudos que retornaram para o Rio de Janeiro e foram reivindicar ao governo as moradias que a eles haviam sido prometidas em caso de vitória. Como o mesmo não tinha dinheiro para cumprir tal promessa, permitiu que os combatentes construíssem suas casas em um morro próximo ao quartel. Sendo assim, os soldados ocuparam o morro e junto a eles ex-escravos que não tinham onde morar após a abolição da escravatura.

O nome foi escolhido devido à grande quantidade de uma planta chamada favela, e essa mesma planta também era encontrada em muitas cidades do Nordeste, onde se deu a Guerra dos Canudos. Em referência ao local onde os soldados ficaram, resolveram chamar a ocupação de Morro da Favela. Mas, com o passar do tempo, outras ocupações foram surgindo com o mesmo nome, e os moradores resolveram substituir, passando a chamar o local de Morro da Providência, e a palavra favela passou ser a forma de referir-se a todas as ocupações que surgiam no estado do Rio e em todo Brasil.

E assim essas ocupações eram chamadas até meado da década de 1990, quando o então prefeito da cidade do Rio de Janeiro César Maia resolveu substituir o nome “favela” por “comunidade carente”. Pois, como ele estava fazendo obras de revitalização nas áreas, com o seu projeto chamado de Favela Bairro, achou por bem denominar assim, por achar menos pejorativo e não ofendia tanto os moradores e não os descriminava.

E até os dias de hoje, comunidade carente e morador de comunidade são os termos usados, o que eles dizem ser politicamente correto para denominar, substituindo, então, os termos favela e favelado, sendo comunidade carente e morador de comunidade usados até mesmo pelos moradores, sem questionar o porquê e quais benefícios esta mudança de nome os traria.

Mas, vamos aos motivos que me levaram escolher este tema para estrear a coluna e porque me chama tanto a atenção. Analiso quais mudança tivemos nestes últimos anos com essa substituição de nomes.

O primeiro motivo foi a forma como essa decisão foi tomada, sem sequer fazerem uma consulta aos principais interessados, que eram os moradores das favelas. Não foi aberto nenhum diálogo com os mesmos, não os perguntaram qual impacto isso teria em suas vidas, se iriam sentir-se mais respeitados sendo chamados de moradores de comunidade, se abririam mais portas no mercado de trabalho, etc. Simplesmente, decidiram que assim seria e pronto, como se aquelas pessoas fossem incapazes de pensar e de tomar decisões.

Já o outro motivo é bem mais profundo e diria que ele é bem mais complexo. Eu questiono: quais foram os reais benefícios obtidos com a substituição do nome favela para comunidade carente? O que impactou na vida pessoal e na rotina dos moradores, deixando de ser chamados de favelados para moradores de comunidade? Essa mudança fez com que acabasse o preconceito que existia desde o surgimento da primeira favela? Para estas perguntas a resposta obviamente é “não”.

Eles fizeram questão de substituir o nome “favela” por “comunidade carente” devido a este não ser um termo pejorativo e ser mais aceitável, mas eles mantiveram o preconceito, com suas políticas públicas que a massacram as áreas carentes dia após dia. Deixaram de chamar os habitantes de “favelados” para chamá-los de “moradores de comunidade” como uma forma de dizer que os aceitam, mas não deixaram de tratá-los com desprezo e desdém. Os moradores do asfalto não deixaram de olhá-los com desconfiança e medo. E polícia ainda trata todo morador, no ato da abordagem, como suspeito número 1, independentemente de ser homem, mulher ou até mesmo criança. Para os agentes de segurança, os cidadãos ainda são uma ameaça, e porque não dizer marginais, bandidos? Pois, em todos os governos a política de segurança pública é a do abatimento de pessoas, é a da execução. Haja vista o número alarmante de mortes registradas como “alto de resistência”, que são aquelas mortes ocorridas em confrontos.

Aprofundando o assunto um pouco mais, a mudança do nome favela para comunidade também não mudou a realidade das áreas, que ainda sofrem com a falta de saneamento básico, moradias, pavimentação, saúde, educação, segurança pública, entre tantos problemas existentes em todas elas. O governo não deixou de fazer das ruas, becos e vielas verdadeiras praças de guerra, promovendo confrontos diários entre policiais e traficantes.

E os problemas continuam, não pararam por aí, porque trabalhadores das comunidades ainda omitem seus endereços em uma entrevista de emprego para conseguir a vaga. Pois, dependendo de onde for pretender trabalhar, se disser onde mora, corre o risco de ser eliminado, sem ter a chave de passar por todas as etapas do processo seletivo. E o mais triste: ouvir aquelas velhas desculpas do tipo “seu perfil não se encaixa no cargo” ou “estamos com números de vagas limitados, você entrará na lista de espera”. E a pior delas: “aguarde, que entraremos em contato”. Mas, nunca entram e o motivo todos sabemos qual é. Como vemos, a substituição do nome não substituiu o preconceito do empregador.

Um outro motivo para continuarmos questionando a mudança é a enorme dificuldade que os habitantes destas áreas têm em receber uma simples correspondência – ou uma mercadoria – na maioria das vezes. Mesmo que seja algo com o carimbo vermelho escrito “urgente”. Os serviços de postagem já têm sua desculpa única e certa para não realizar a entrega. Eles sempre alegam “endereço não localizado”, para não dizerem que sequer estiveram no local. E qual é o morador que nunca precisou sair à procura de suas cartas, boletos, objetos comprados na internet, etc?

O mundo se modernizou. Podemos dizer que hoje ele é totalmente digital e as comunidades carentes também se digitalizaram. E é bem comum vermos qualquer morador com um celular, smartphone ou um notebook. Em muitas residências já é possível ver uma smart tv, da mais simples até a mais moderna. A maioria é usuário de sites de relacionamentos e aplicativos de mensagens. Mas, até aí está tranquilo, já que a internet está presente na maioria dos lares de lá, assim como nos lares do asfalto. E se a modernidade chegou até lá, fazendo a chamada inclusão digital, o preconceito que já existia se fez ainda mais presente, pois algo que deveria ser tão simples, como pedir um carro por aplicativo, é um verdadeiro cavalo de batalha, como mostra recente *pesquisa do Instituto DataANF sobre aplicativos.

A maioria dos motoristas se recusa a entrar nas comunidades, assim como já acontecia na época em que existiam apenas os táxis. Quantos passageiros moradores de favela não ouviram uma recusa de um taxista para levá-los até em casa, ao sair do supermercado, shopping, hospitais, ou de uma balada, o que é ainda pior? “Não entro em comunidade, principalmente a essa hora”, é a resposta mais comum que os moradores já ouviram – e ouvem – até hoje. Agora, esta frase passou a ser dita pelos motoristas de aplicativo, que mesmo sendo muitos deles também moradores de comunidade, se recusam a transportá-los. Uns, para não dizer que não entram, sempre falam; “meu carro é a gás, tem dificuldade para subir ladeira”. Qual morador de morro nunca ouviu isso?

Raras as vezes, tem aqueles motoristas que não veem problema em entrar nas comunidades, mas com o seu aparelho de GPS sempre ligado. E se o profissional não é preconceituoso, a gravação que o orienta na direção o é. Parece absurdo, mas é real. Ao ouvir pela primeira vez a voz do GPS dizer, depois de um “vire à direita” ou “vire à esquerda”, vem o susto com o aviso “você está entrando em área com risco de crime” ao se aproximar da entrada da comunidade. Mas, depois do susto passado, quando o morador tem a sorte de encontrar um motorista de aplicativo que o leve até em casa, a frase dita pela gravação se torna banal, até mesmo ignorada, e o preconceito que há no “alerta” também.

Se para voltar para casa é esse transtorno todo, para sair também não é diferente. Os moradores precisam sair de dentro da comunidade para chamar um carro de aplicativo, pois estando lá dentro é praticamente impossível. Motoristas cancelam a corrida ao descobrem que o endereço é em uma comunidade carente. É qual morador nunca teve sua corrida cancelada? Ou qual morador não ficou por muito tempo esperando pelo carro para, depois, se dar conta do cancelamento do serviço por parte do prestador?

Até aqui, qual foi mudança que a substituição do nome “favela” para “comunidade carente” trouxe aos seus habitantes? Serem chamados de moradores de comunidade em vez de favelados diminuiu ao menos o preconceito, passaram a ser mais respeitados por isso? E neste texto não está sendo questionado nem 1/3 dos diversos problemas existentes, pois, para isso, eu levaria muitos e muitos anos para falar de todos eles. Teríamos tido várias mudanças de governo, ouviríamos inúmeras promessas de melhorias…

Caro leitor, refletindo sobre assunto, para ser aceito e respeitado pela sociedade, você mora na “comunidade carente”, é um “morador de comunidade” – tal como foi decidido por eles sem sua participação –, ou continua “morando na favela”, sendo um “favelado”, porém consciente da realidade que nada foi impactado com a mudança de nome?

Já parou para refletir sobre isso todas as vezes que te chamam de “morador de comunidade” com intenção de não ofendê-lo, mas te negam um simples “bom dia”, ou te olham com desconfiança? Ou quando aplaudem as invasões policiais e o sobrevoo de helicópteros atirando do alto, em cima de creches e escolas?

 

E ainda para fazermos uma boa reflexão:

Favela é uma planta originária da Caatinga, também conhecida como mandioca-brava, pela capacidade de resistir ao clima árido e à seca do Nordeste. É um arbusto capaz de florescer e dar sementes que são utilizadas na fabricação de óleo alimentício e de uma farinha rica em sais minerais e proteínas. Produtos estes ainda sem aplicação comercial, mas habitualmente usados na pecuária para engorda de animais.

Cnidoscolus quercifolius (sin. C. phyllacanthus. Anteriormente conhecida como Jatropha phyllacantha Müll.Arg.), popularmente chamada de favela, faveleira, faveleiro ou mandioca-brava, é uma planta da família das euforbiáceas. Imagem e legenda reprodução: http://coisadecearense.com.br/favela-ou-mandioca-brava/

Como pudemos observar, os soldados e os ex-escravos no final do século XIX, ao ocuparem aquele morro e dar o nome de Morro da Favela, pareciam prever que os favelados que viriam posteriormente resistiram bravamente a todo tipo de preconceito sofrido, ao racismo e ao total descaso do poder público, floresceria em meio a tantos climas desfavoráveis e, mesmo contra a vontade daqueles que os veem como um grave problema social, começariam a ocupar espaços onde antes era somente ocupado pela elite branca do asfalto.

* Pesquisa realizada pelo Instituto DataANF, da Agência de Notícias das Favelas, publicada na edição 27.10.2019 do jornal Extra (RJ) revela resistência das empresas de aplicativos em atender comunidades do Rio. Moradores tentam driblar as dificuldades criando sistemas próprios, como se revezando para buscar pedidos de comida na entrada das comunidades.
https://extra.globo.com/noticias/rio/pesquisa-revela-dificuldades-dos-moradores-de-favelas-na-era-dos-aplicativos-rv1-1-24044872.html

Favela:  conjunto de habitações populares precariamente construídas e desprovidas de infraestrutura (rede de esgoto, de abastecimento de água, de energia, de posto de saúde, de coleta de lixo, de escolas, de transporte coletivo etc.).

Comunidade:  substantivo feminino usado em sentidos diversos. É um grupo local, de tamanho variável, integrado por pessoas que ocupam um território geograficamente definido e estão irmanados por uma mesma herança cultural e histórica.

[ Fonte: Site Significados]

https://www.significados.com.br/favela/

https://www.significados.com.br/comunidade/

 

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Carla Regina
Sou estudante do último período da faculdade de Jornalismo, gosto muito de ler e de escrever. Me acho simpática, pelo menos é o que me dizem as pessoas quando me conhecem, mas creio que eu seja sim, pois adoro fazer novas amizades e conservar as antigas. Comunicativa, dinâmica e muito observadora, um tanto polêmica. Gosto muito de trabalhar em equipe, mas, dependendo da situação, a minha companhia para trabalhar também é ótima. Pois, na minha opinião, a solidão aguça a criatividade, fazendo com que a mente e os pensamentos fluam um pouco melhor. Comecei a trabalhar muito nova, ainda quando criança e já fiz muita coisa na vida, mas meu sonho sempre foi ser Jornalista e Historiadora, cheguei a ter muitas dúvidas de qual faculdade cursar primeiro, já que para mim as duas carreiras são maravilhosas. Então, resolvi entrar primeiro para o Jornalismo e no decorrer do curso percebi que cursar a faculdade de História não era só uma paixão, mas também uma necessidade para linha de jornalismo que que pretendo seguir. Como sou muito observadora e curiosa, as duas profissões têm muito a ver com minha pessoa. Amo escrever e de saber como tudo no mundo começou, até porque. tudo e todos tem um passado, tem uma história para ser contada.