Entrevista: Marielle Franco

Única vereadora de favela eleita fala sobre suas origens, direito das mulheres, juventude negra e o futuro mandato

Crédito: Mídia Ninja

Uma menininha que brincava com outras crianças deixou Marielle Franco (PSOL) de olhos marejados durante uma roda de conversa com eleitores na Praça da Nova Holanda. Ela se viu 30 anos antes, quando passava os dias brincando de taco e jogando bolinha de gude pelas ruas da Maré. Marielle passou toda a vida no Complexo, onde morou em diversas comunidades, como Conjunto Esperança e da Baixa do Sapateiro. Mãe de uma adolescente, foi recreadora infantil numa das creches da favela e aluna da primeira turma do cursinho pré-vestibular do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm), onde levou dois árduos anos até ingressar na graduação de Ciências Sociais da PUC-Rio. Desde 2007 na equipe de Marcelo Freixo, seu padrinho político, coordenou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e pôde ver de perto o sofrimento das famílias que perdem seus filhos para a violência. Única representante das favelas eleita para o Legislativo do Rio depois de mais de 15 anos de militância, Marielle Franco agora dá o salto para ser a voz das mulheres, dos jovens negros e das famílias faveladas na Câmara Municipal dos Vereadores.

 

A Voz da Favela: Na sua opinião, qual é a principal demanda da favela num geral? Num plano específico do Legislativo, o que pode ser feito?
Marielle Franco: Acho que temos duas coisas: uma coisa é a demanda e outra coisa é o prefeito. Acho que a favela demanda emergências que talvez não possam ser realizadas, a não ser que o vereador ou a vereadora tenha uma relação fisiológica com o lugar. Outra coisa também é ser vereadora de situação ou da oposição. De todo modo, acho que tem uma demanda por oportunidades que é importante: alternativas culturais, esportivas, ampliação das oportunidades das escolas, ter um lugar da valorização da favela, criar mais espaço para o comércio, para o emprego. A pauta da favela e das mulheres foi fundamental para a campanha, o debate sobre a mulher favelada de vários ângulos: da mulher que cozinha, da mulher que é educadora, da mulher que é mãe, da mulher que não é mãe. Existe ainda o tema da negritude, afinal de contas, a vulnerabilidade a que as mulheres estão expostas passa pela cor que ela tem e pelo lugar onde ela mora. O debate de raça e de classe são temas importantes.

AVF: Em entrevista anterior para A Voz da Favela (que resultou na matéria “Quem são os candidatos a vereador da favela?”, da edição de setembro de 2016), você afirmou que uma de suas prioridades como vereadora seria o aumento de vagas nas creches. De que maneira pretende atuar nessa questão?
MF: Durante toda a campanha, a gente construiu pontos que se relacionassem. O debate de vagas nas creches atende ao processo de autonomia familiar, à garantia de educação das crianças, ao fortalecimento e à qualidade de vida da juventude. É mais amplo do que ter vaga, de uma relação com a assistência ou com a alimentação das crianças. É claro que tudo isso é importante, mas tem, por exemplo, uma relação com a educação integral, que faz toda a diferença para a criança. Eu fui recreadora infantil durante os três primeiros anos da minha filha, trabalhei na Creche Pescador Albano Rosa algum tempo. A criança que fica na creche em tempo integral se desenvolve mais, tem mais autonomia. Então, acho que existe uma série de questões que vêm com um mandato popular, de uma favelada, de quem faz política de outra forma. Quando isso se expressa na questão da creche, na verdade, este é só um dos lugares do debate da oportunidade, como o edital de cultura para as mulheres, do debate dos transportes, onde as mulheres são mais assediadas. Muitas pessoas falam do lugar da creche como uma reivindicação das mulheres, mas é das famílias. Cada vez mais a gente tem que disputar a responsabilidade que os pais têm sobre a criação dos seus filhos. Ou seja, podemos fazer muita coisa boa em cima desse tema.

AVF: Você tem, por conta de seu trabalho na Comissão dos Direitos Humanos, uma forte atuação na questão do homicídio de jovens negros. De que maneira você enxerga isso? Como fica daqui para frente?
MF: Esse tema está nos três níveis do Legislativo: municipal, estadual e federal. Temos que deixar essa juventude menos vulnerável. Hoje, um menino negro e favelado tem uma propensão à morte muito maior do que um menino branco e da Zona Sul. Não estou falando isso para hierarquizar a dor. São constatações, dados. O agente público, o vereador tem responsabilidade sobre essa juventude. Tem que disputar, pensar oportunidades, dar ofertas e alternativas, e a sociedade precisa comprar essa briga junto. Os índices de homicídios não podem aparecer e figurar apenas como estatísticas. São famílias, são vidas, são histórias. Fico muito esperançosa e na expectativa, porque temos falado muito sobre geração de emprego e renda na Prefeitura, sobre cultura. A cultura não é só entretenimento. Você tem uma produção de cultura na favela muito grande, e isso precisa ser valorizado. É uma das formas de se disputar essa redução de homicídios da juventude negra.

 

O agente público, o vereador tem responsabilidade sobre a juventude.

 

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AVF: A que você atribui o fato de ser a única candidata de favela eleita no Rio?
MF: Ao fato de que eu não fiz campanha só na favela. Por mais que eu seja favelada, meu mandato é para além da favela. Existe uma prioridade das políticas da favela, mas essa vocação é mais ampla, porque os diálogos precisam ser mais amplos. É importante a gente ampliar repertório, formas de falar, linguagem. Se eu tivesse ficado só na favela, talvez, não fosse o suficiente. Essa ainda é uma análise prematura, porque é tudo muito recente, mas a coordenação da nossa campanha atribui a eleição também ao debate das mulheres e de negritude. Não havia só um foco na favela. Nosso material de campanha era baseado no lema do ubuntu (filosofia africana), “Eu sou porque nós somos”. Tínhamos o debate da mulher e da mulher negra, por exemplo, sempre de maneira interseccional, falando de um diálogo. A síntese desse lema é exatamente isso. A minha vida está em risco quando a vida de outro favelado também está. A minha vivência enquanto mulher negra é estigmatizada porque outra menina negra também é. Eu fico feliz pelo fato de que na favela podemos usar esse espaço da rua, do brincar, porque isso constrói convivência e não apenas tolerância. Isso se dá nesse sentido de ampliar o diálogo, e foi assim que tivemos 46.502 votos: por conta de um debate mais amplo do que comporta o espaço de favela.

AVF: Qual vai ser sua primeira providência no primeiro dia como vereadora do Rio de Janeiro?
MF: Não pensei nisso ainda. Ainda está caindo a ficha. Acho que tem muita coisa que a gente quer fazer: tem um mandato popular, ocupação de praça, posse coletiva, mas a gente ainda não construiu isso. A gente toma posse em 1º de janeiro, às 10h da manhã. Acho que neste dia eu ainda vou estar pensando na rabanada gelada que vou comer depois que voltar para casa (risos) e em celebrar com a família para somar forças e energias a partir de 15 de fevereiro (primeiro dia do calendário legislativo, quando começam os trabalhos na Câmara dos Vereadores). Só aí a gente vai pensar melhor.

Publicado na edição de Novembro de 2016 do Jornal A Voz da Favela