Entrevista: Julio Cesar Lima, da Jacaré Moda

Créditos: Fabiano Silva / ANF

A Jacaré Moda é a primeira produtora de moda e beleza a nascer com suas raízes fincadas numa favela – no coração da Favela do Jacarezinho, especificamente. Muito mais que um negócio, ela liga moda com transformação social e geração de renda ao realizar cursos e capacitação nas periferias cariocas, afinal, a agência se pensa do Jacarezinho para o mundo, sem nunca se esquecer de onde saiu.
Iniciada há 14 anos na portaria de um prédio em Copacabana, onde o sócio e fundador Julio Cesar Lima trabalhava e lia revistas de moda, a produtora cresceu graças à garra e persistência de seu fundador. Hoje, a Jacaré Moda é composta por Julio, os sócios Clariza Rosa e Lucas Rodrigues e a coordenadora Helena Gusmão, mas seu principal elemento é a periferia carioca, conforme Julio demonstra na entrevista a seguir.

Agência de Notícias das Favelas: Como foi o primeiro evento de moda que você criou no Jacarezinho há 14 anos?
JCL: Primeiro, convencendo a comunidade de que ela podia. Essa foi a parte mais difícil. O favelado está sempre na defensiva, sempre recuado. Naquela época, eu tinha que ir nas lojas oito vezes para conseguir o apoio do comerciante, já que eu usava as roupas das lojas da favela. Aproveitei também a entrada dos bailes funks na televisão, e o comerciante viu que a moda dele era tendência. A Jacaré Moda não foi feita por mim, sozinho: foi feita com a loja, o morador, o modelo da comunidade. E eu os coloquei em cima da minha passarela, e a minha passarela é na comunidade. Estamos entrando na área da beleza agora, com maquiagem e penteados. Quando eu fui expor isso para a comunidade, eu já não tive mais que bater em tantas portas. Em 15 dias, eu já tinha o número de alunos pagantes que eu precisava para formar a primeira turma. Olho para o Jacaré que eu transformei, vejo que valeu a pena, me sinto realizado. Certa vez, fui perguntado se eu faço as pessoas acreditarem na moda. Eu não faço isso, pois nem sempre a moda é uma verdade. Eu faço as pessoas acreditarem nelas mesmas através do canal da moda, pois, depois disso, a moda é só mais um espaço em que ela vai transformar. Na moda, eu me apaixonei por trabalhar com pessoas. Se forem de periferia, então, está perfeito.

 

Eu faço as pessoas acreditarem nelas mesmas através da moda.

 

ANF: Como iniciou esse seu desejo de trabalhar com moda?
JCL: Eu não pensei em fazer moda. Eu pensava em ver minha favela aparecendo e gerando impacto. Desejava isso para o Jacarezinho, mas não imaginava que eu fosse o agente transformador disso. Eu via favelas como Mangueira e Rocinha aparecendo com o samba, por exemplo, e pensava o que era possível fazer no Jacarezinho. Eu comecei a ler revistas de moda enquanto trabalhava de porteiro na Zona Sul e percebi que poderia encontrar na periferia mulheres tão belas quanto as das revistas. Mas também que existe um tipo específico de beleza feminina na periferia, constituída de toda a mistura desse povo, de etnias mesmo que você só consegue encontrar na favela. Além de tudo, é uma beleza natural de quem come açaí, “x-tudo”, pega sol de 10h às 16h e, ainda assim, tem uma pele ótima e um corpo maravilhoso.

ANF: Essa beleza da mulher suburbana, como você disse, é natural e nasce com ela. Mas essa beleza também pode ser trabalhada e aprimorada. É isso que você faz?
JCL: Eu comecei falando sobre meu desejo de fazer a periferia aparecer, e quando pensava nisso a mulher era o meu maior foco. Falando abertamente, os homens já têm isso pelo tráfico. E não havia jeito melhor de iniciar do que pela mulher, pois é ela que gere a estrutura familiar. Isso deveria ser dividido com os homens. Homem tem que ser responsável pela criação do filho, sim, mas, infelizmente, a maioria ainda não vê dessa forma. Decidi ajudar a criar uma nova história da mulher periférica brasileira pela moda, porém, com tops que representem o Brasil como um todo. A gente tem tops maravilhosas nascidas no Brasil, mas que não representam o povo e a miscigenação brasileira. 65% da nossa população é negra, parda ou índia.

Créditos: Fabiano Silva / ANF
Créditos: Fabiano Silva / ANF

ANF: Fazendo um link com essa questão de representatividade, nós temos como maior modelo brasileira a Gisele Bündchen, que não representa o perfil da maior parte das mulheres do Brasil. O que você acha disso?
JCL: A Gisele é uma perfeição visionária. É o que temos apresentando programa na TV, o que temos na mídia representando uma personagem rica na novela. Em todos esses exemplos, estão mulheres brancas como a Gisele. Quando falo de beleza de favela, trata-se de algo totalmente diferente desse conceito de perfeição, que é alcançado mediante custos e investimento financeiro em busca de um biótipo de beleza que a mídia te fornece. A beleza de favela é o contrário. É uma beleza criada em cima da falta de condições, mas também da miscigenação e do que a natureza entregou a você. Temos Gisele Bündchen, Isabelli Fontana, Alessandra Ambrósio como ícones mundiais de beleza nacional, mas cadê a beleza da Zona Norte? Ela existe e também faz parte do Brasil, e na passarela eu não via isso. Existe um grupo de mulheres que podem até não ser belas, mas que nem por isso deixam de ditar moda. Eu olho para essa moda engessada e penso: “eles querem vender para todas o tipo de corpo de uma só”.

ANF: Você enxerga beleza em todas as meninas, cada uma a sua maneira, mas como lida com isso se quem dita a moda é o mercado e você tem um produto que, digamos assim, precisa ser comercializado?
JCL: O mundo mudou. As pessoas estão se posicionando. Eu, junto com meus sócios da Jacaré Moda, pensamos de uma mesma forma. Com essa mudança mercadológica, hoje as pessoas não aceitam mais comprar algo com o qual não se identificam. A menina plus size quer roupa plus, por exemplo. Assim é com todas. O mercado está se acostumando a essa mudança e a aceitar o apelo dos clientes.

ANF: Você escolheu trabalhar prioritariamente com modelos negros. Isso é uma consequência da localização da sua área de atuação?
JCL: As Zonas Norte e Oeste são os lugares na cidade onde está a maior parte do povo negro carioca, muito em razão dos quilombos que aqui existiam. Mas a Jacaré Moda não é uma agência focada em uma determinada etnia. Ela é heterogênea. É sempre bom lembrar, porém, que o Brasil tem 65% da população negra, parda e indígena.

ANF: Mas vivemos uma falsa democracia racial.
JCL: Sim. Eu estou fazendo meu papel de colocar em cima da passarela a branca, a alemã. Mas o negro já deveria estar lá, deveria ser o lugar dele também. Essa bandeira não é minha, é de Zumbi dos Palmares, que criou os quilombos. Falta aos negros começarem a se vestir e se identificar como negros, pois minha briga não é só para colocar negros nas passarelas, mas também as tendências negras ali.

 

Ser favelado é vencer onde a estatística de perda é 98%.

 

ANF: Você acredita e trabalha uma moda para todos?
JCL: A gente que sofre não pensa somente em nós mesmos. Estamos em época de crise, mas, se chegar um branco de classe média aqui, que nunca passou por dificuldades, teremos lugar para ele também. Aprendemos a compartilhar. O que a gente cria não conversa só com a gente. Hoje, eu vejo o mercado da moda falar de sustentabilidade, mas há quanto tempo a gente vê isso na periferia? Quando penso algo sustentável, penso em economia de recursos, mas também em criar algo que qualquer classe possa consumir e usar. Entretanto, o que eles chamam de sustentabilidade é inacessível à maior parte da população.

ANF: O que é essa moda da resistência com a qual a Jacaré Moda trabalha?
JCL: É pensar no caso do produto que está na vitrine e que é hoje associada ao negro, que vincula sua imagem a ele, mas que, quando olhamos na loja, custa 80% do salário mínimo. Que comercial é esse? Que público é esse que eles querem atingir? A classe pobre consome o que a mídia costuma ditar. Vestir o que está na moda torna o pobre gente. Paralelo a isso, temos o que a mídia coloca no corpo de um grande jogador de futebol, uma grande cantora com apelo nas camadas mais baixas. A situação faz com que o pobre queira ter acesso a essas roupas. Na periferia, roupa de marca é status, então, entra a parte drástica, pois esse pobre vai tentar alcançar isso do jeito dele e isso é impactante.

ANF: Esse debate é um trabalho social? Você consegue casar bem essas duas coisas?
JCL: Pensamos em trabalho social e impacto social. Tem que impactar e chamar a atenção deles para isso, sobre esse vínculo com uma logomarca. Quando você faz um morador de periferia customizar, comprar e curtir o que cabe no bolso dele, entra aí a moda da resistência.

ANF: O que é ser favelado, na sua opinião?
JCL: É um comportamento. É viver com R$ 980 criando e formando filho, comprar nas Casas Bahia e nas “fashion food” pagando tudo e com o nome limpo. Isso só um favelado faz. É resistir onde jamais haveria de se conseguir resistir, é vencer onde a estatística de perda é 98%. Onde só 2% vence, e desses 98% excluídos, o sistema tirou, a marca roubou, a tendência não mostrou que era capaz, a mídia excluiu e tirou a voz. Essas pessoas deveriam ser estudadas.

ANF: E nessas condições tão adversas, o que você fez para dar certo?
JCL: Eu nunca segui com quem não acreditava em mim. Não estou disposto a te agradar para depois você acreditar em mim. Se você não acredita, segue seu caminho, se acredita, vamos juntos.

ANF: O que é para você esse pertencimento ao Jacarezinho e a periferia?
JCL: Esse pertencimento vem de um comportamento meu, de saber que o que tem valor em mim está dentro deste local. Eu nunca me vejo trabalhando se não for no Jacarezinho, empoderando se não for no Jacarezinho. As pessoas me perguntam por quê. É simples: todos que alcançam um determinado patamar abandonam sua essência. Quando você abandona sua matriz, você perde a sua fonte. Nesses 14 anos de Jacaré Moda, eu já recuei três vezes. Já me frustrei, mas segui. Recuar nem sempre é desistir. Resisti.

Saiba mais sobre o projeto na edição de abril de 2017 do Jornal A Voz da Favela.