Demitido

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Aquela palavra não saía da minha cabeça, mas ecoou por todo o corpo: demitido. Fiquei sem chão. Não esperava por isso. Vinha me dedicando ao trabalho. Fazia duas semanas que eu começara a trabalhar como padeiro num estabelecimento em Laranjeiras. Numa madrugada fria, acordei às 4 h, como de costume, e coloquei um som do A286 enquanto me aprontava para ir pro ponto pegar o busão: “se o sol te deu outro dia, faz diferente, antes que só restem flores pra dar de presente”.

Ouvi tiros ecoarem, rasgando o vento. Decidi esperar um pouco. Os disparos aumentaram e fiquei sentado esperando até que estivesse em condições de caminhar até o ponto. Quando cheguei no trabalho, já era quase 9 h. Fui direto me explicar ao chefe o porquê do atraso, já que deveria bater o ponto às 6 h. O Feitosa, que não ia muito com a minha cara, começou a jogar piadinha, mas fiquei na minha porque ele era um puxa-saco. Qualquer coisa que eu dissesse poderia ser usada contra mim. Enquanto isso, eu pensava nos últimos acontecimentos.

Quando cheguei em casa, fiquei sabendo que um policial fora morto onde eu morava. Já esperava pelo pior. Disseram que tentaram até pegar o fuzil dele – “era merda na certa, então”, pensei. No dia seguinte, o som dos tiros me despertou e acordei tenso, com a respiração pesada, porque o tiroteio era na rua onde morava. Minha mente estava conturbada, pois havia sonhado que tinha sido baleado quando caminhava em direção ao serviço. Mas a realidade era um pesadelo, porque vivia numa guerra que não era minha.

No dia anterior, a mãe do PM chorou, e, naquele momento, pensei em quem seria a próxima a chorar. Quando o sol começava a aparecer entre os becos, liguei a TV pra assistir ao noticiário, mas só o jornal comunitário dava informações pela rede social. Impossibilitado de sair para trabalhar, pedi a Deus para que não perdesse meu emprego. Minha filha tinha seis meses, minha esposa estava desempregada.

No cair do sol para dar lugar à noite, fui até a pracinha. Nunca tinha visto tanto policial pela favela. Até o Choque estava por aqui. Cumprimentei o Sthênio, e ele me disse que o Orelha tinha sido morto. Senti náuseas e um frio por dentro de mim: “porra, o Orelha era meu mano desde moleque”. Fui até a casa dele pra tentar dar um consolo pra mãe, que dava um duro danado pra sustentá-lo sozinha. Parecia que parte dela tinha sido alvejada também, porque ela chorava muito. Até quando viveríamos em guerra? Até quando escalaríamos os nossos pro time fúnebre que só deixam saudade?

No dia seguinte, mais uma vez, fiquei impossibilitado de sair para trabalhar. Eu me perguntei quantos estariam na mesma situação que eu. Pelo número de pessoas que encontrava no ponto de ônibus, não deveriam ser poucos. Quantos compromissos desmarcados? Quantas mães em desespero porque os filhos não estavam em casa no momento dos tiros?

Quando retornei ao trabalho, os olhares dos funcionários se direcionavam a mim. Fui até o chefe me explicar:
– Desculpe pela falta. Nesses dois dias, teve operação na comunidade onde moro.
– Sinto muito, mas não prosseguiremos com seu teste. Você faltou dois dias no seu período de experiência, e o dono achou melhor dispensá-lo.

Mesmo revoltado por dentro, aceitei a situação. O silêncio tomou conta de mim. Tirei o uniforme, e fui pra casa. Lá, minha esposa perguntou por que eu viera mais cedo. Expliquei que tinha sido demitido, e me senti pequeno naquele momento. Pedi a Deus que me desse uma nova oportunidade pra começar, em meio à guerra que não sei quando terá fim…