DE DENTRO DA MARÉ: ato contra o despejo do Museu da Maré movimenta a Avenida Brasil

Matheus Frazão na performace "Cidade Marca" na Av. Brasil. Foto: Miriane Peregrino
"Favela tem direito à memória" - Intervenção do Coletivo Projetação na Praça do Parque União. Foto: Terezinha Lancellotti
“Favela tem direito à memória” – Intervenção do Coletivo Projetação na Praça do Parque União.
Foto: Terezinha Lanzellotti

“SOS Museu da Maré! Atenção comunidade! O Museu da Maré corre o risco de ser despejado. Não deixe isso acontecer! Venha participar da caminhada cultural hoje, às 16h, no Museu da Maré: Av. Guilherme Maxwell, 26, em frente ao antigo SESI”.

Por Miriane da Costa Peregrino

Era a nossa chamada ao vivo para o ato em defesa do Museu da Maré que aconteceria ainda naquela tarde de sábado, 18 de outubro. Matheus, Andreia e eu nos revezando no microfone, com o carro de som andando devagar, e na panfletagem. Os moradores olhavam sobressaltados: o museu vai ser despejado?! Mais tarde reconheci alguns dos rostos desses moradores no ato que saiu do Museu da Maré às 16 h e andou pela Av. Brasil até a praça do Parque União – mais uma emoção neste trajeto que nunca vamos esquecer.

“Foi o ato mais bonito de que já participei” – diz a professora Andreia Vieira – “Ver os moradores tirando fotos, e, de alguma forma participando, foi lindo demais. Na divulgação da manhã, correndo a favela com o carro de som foi lindo ouvirmos de um morador que ‘o museu não pode acabar não, tem foto minha lá, tenho 53 anos de Maré’. Foi emocionante!”.

Que o Museu da Maré é NOSSO, não resta dúvida! É o primeiro museu dentro de uma favela construído por seus próprios moradores e isso o torna símbolo de uma resistência cultural que está para além da mareense: é uma resistência nordestina, negra, indígena, mestiça, popular e favelada que se coloca dentro da cidade que a nega e um país que a ocupa com tanques de guerra.

Na concentração do ato muita gente visitou o Museu da Maré. O Coletivo Projetação fez projeções com palavras de resistência sobre paredes e objetos da exposição. No pátio do museu, as pessoas que chegavam iam se aglomerando em torno da roda de capoeira. Artistas do Coletivo Maremoto usavam uma boia com a frase: “Divisas S.A” em menção ao Grupo Libra de Navegações que enviou uma notificação de despejo ao Museu da Maré em 11 de setembro. O imóvel onde o museu está instalado fora cedido pelo Grupo Libra, em regime de comodato, há mais de 10 anos, e a empresa quer restituí-lo agora sem qualquer negociação, afirmando ter planos para o imóvel.

Embora a Unidade de Polícia Pacificadora – UPP ainda não tenha sido instalada na Maré, o conjunto de favelas da Maré está ocupado militarmente desde 30 de março desse ano, resultado da política de segurança pública para a realização da Copa da Fifa no Brasil entre junho e julho. A permanência do exército na Maré após a realização da Copa foi justificada pelo governo federal e pelo governo estadual como uma medida de segurança exitosa e que ainda viabilizaria as eleições que ocorrem nesse mês de outubro.

Com ou sem UPP instalada, o fato é que a Maré está militarizada, a política de segurança pública do governo segue seu curso e caminha junto com os interesses das empresas privadas. Tal como aconteceu em todas as favelas que foram militarizadas, a Maré sofre agora uma crescente especulação imobiliária e tudo indica que esse seja o principal fator que motiva a restituição do imóvel pelo Grupo Libra de Navegações e o despejo do Museu da Maré.

A Caminhada da Resistência começou às 16 h. Era o momento do ato em defesa do museu dividir a Av. Guilherme Maxwell com os jipes do exército. O Museu da Maré saiu para a rua com muitos estandartes, chapéu nordestino, reproduções ampliadas de fotografias, bacias e latas d’água e o rola-rola (um objeto de madeira com rodas que servia para carregar água) que fazem parte de seu acervo.

Estandartes. Foto: Gizele Martins
Os estandartes em defesa do Museu da Maré.
Foto: Gizele Martins

Os estandartes foram produzidos por Marcelo Vieira, 47, cenógrafo do museu e ex-morador do Morro do Timbau. “Em relação aos estandartes, foram pensados para dar um colorido e um tom de cordão de carnaval, folia de reis, maracatu, cortejos e uma homenagem as manifestações populares. É uma forma de apresentação que não se usa muito atualmente”. Sobre os objetos e fotografias que saíram do acervo do Museu da Maré para compor a Caminhada da Resistência, Marcelo afirma que a ideia foi levar “a exposição do museu para a rua” e foi “uma forma diferente do museu se apresentar”.

Para além do ato em forma de cortejo, da festa que marcou a caminhada, para Marcelo foi também um momento de reencontro: “Foi maravilhoso participar do ato/caminhada, foi prazeroso ver várias pessoas de vários lugares e reencontrar pessoas da Maré que eu não via há muito tempo e, de certa forma, alertar e divulgar o trabalho do museu”.

Reencontro de gente, de lembranças também para Valdirene de Oliveira Militão, 42, moradora do Piscinão Roquete Pinto: “O museu é a nossa representação, nossas raízes, esse barraco (que faz parte da exposição do museu) é como era o meu. Chorei no primeiro dia que o vi até a cor! Era como a varanda onde eu passava um tempão brincando”.

Ao longo da Caminhada da Resistência, uma grande festa chamou a atenção dos moradores que estavam na rua ou na janela de suas casas: a roda de capoeira abria espaço para a performace teatral dos atores do Grupo Gestos do Museu da Maré baseada na marchinha de carnaval Lata d’água.

Intervenção do Grupo Gestos do Museu da Maré. Foto: Andreia Vieira
Intervenção do Grupo Gestos do Museu da Maré faz homenagem as antigas lavadeiras da Maré
Foto: Gizele Martins

Priscilla Gomes da Silva, 21, atriz do Grupo Gestos, conta que a ideia da performance era representar as lavadeiras da Maré. Sobre o ato, ela comenta que foi diferente de outros que já tinha participado: “O ato em defesa do Museu foi diferente, pois vejo de perto o quanto o Museu significa para a Maré e pra mim”. Moradora de Jacarepaguá, Priscilla está sempre na Maré: “O Museu é importante pra mim, porque mesmo não morando na Maré, ele me representa de alguma forma”.

Os atores do Movimento Cidades Invisíveis encenou Cidade Marca, levando os ativistas a se juntarem ao coro: “A Maré marca, o Museu fica!” enquanto os três atores – Matheus Frazão, Ítala Isís e Anderson Alexandre batiam seus panos encharcados de água com tinta vermelha nas calçadas e no asfalto. O ritmo violento dos gestos e cor vermelha que impregnava o asfalto, ao mesmo tempo que lembrava a prática das lavadeiras, remetia a violência urbana e as marcas que a cidade deixa em seus habitantes, bem como a que os habitantes deixam na cidade.

Foto: Leon Diniz
Intervenção Cidade Marca na Av. Brasil durante o ato em defesa do Museu da Maré. Foto: Andreia Vieira

“O museu marcou, e continua marcando, as memórias de moradores, fazendo vivo aquilo que já passou” – afirma Matheus Frazão, 18, um dos atores da performace Cidade Marca e também bolsista do Museu da Maré – “Eu senti que aquilo foi libertador, e pelo fato de estar ajudando o museu, foi melhor ainda. Foi tudo lindo, a galera super pacífica e a energia contagiante. O pessoal que estava ali realmente acredita no museu”.

Matheus Frazão na performace "Cidade Marca" na Av. Brasil. Foto: Miriane Peregrino
Matheus Frazão na performace Cidade Marca. Foto: Miriane Peregrino

Assim como Matheus, outros adolescentes também estavam presentes no ato e era, para alguns, a primeira vez que participavam de uma manifestação.

“Nunca tinha ido a um ato antes. Pra mim foi muito gratificante, pois lutar pelo que é nosso é muito bom e importante” – conta Vitória Lemos, 17, moradora do Morro do Timbau e bolsista do Museu- “Gostei de vê o povo unido e numa só voz pedir para o museu ficar. Porque o museu é um lugar que foi construído pelos próprios moradores, com a história dos próprios moradores e por isso acho que o museu é nosso”.

Para Alan Lira, 18, também foi a primeira vez em uma manifestação: “Pra mim foi uma experiência nova, pois nunca tinha participado de algo assim. Achei o ato muito legal, reuniu muita gente”. Alan, que é morador da Vila do Pinheiro e bolsista no Museu da Maré, afirma que “o museu sendo despejado eu não vou poder mais fazer meu trabalho lá e como morador, isso será muito ruim, não só pra mim, mas para os outros moradores também, pois o museu é a nossa história contada, de uma forma bem legal, que é em uma exposição, fora os projetos sociais que ali se encontram e tudo mais, então o museu sendo removido, vai ser uma perda bem grande pra comunidade”. Alan espera que o museu vença a ameaça de despejo e se torne um espaço ainda mais popular do que é hoje.

Jeferson Luciano, 18, morador da Vila do Pinheiro e bolsista do Museu, afirma que se emocionou com o ato e declara: “Nunca imaginei que o Museu sofreria uma ameaça como essa, mas estou confiante que com a nossa força, vamos impedir que essa situação se concretize! Essa situação vai ser resolvida logo e o espaço será definitivamente nosso. Eu espero que o Museu se fortaleça cada vez mais e que nesse futuro que está próximo, o nosso reconhecimento mostre ainda mais que um museu comunitário deve ser um exemplo para muitos outros museus”. Jeferson conta que o que mais o marcou no ato foi o apoio que o Museu da Maré está recebendo nesse momento de ameaça de despejo: “O que me marcou foi o apoio que recebemos, as intervenções artísticas durante o caminho percorrido e que somos favelados com orgulho” – ele conclui – “a união mostra a força que temos”.

Já Joyce Rodrigues, 18, moradora da Nova Holanda e bolsista no Museu da Maré, conta que se surpreendeu com o ato: “Não esperava ser como foi. Na realidade pensei que seria um tanto chato, mas não foi assim, aquela banda [Os Siderais], as intervenções feitas ao longo do percurso foi mara” – ela ri e conclui – “O que me chamou mais atenção foi o ato de marcar – ”Maré marca, Museu fica”. Joyce afirma ainda que o Museu “é um lugar de cultura e ele é o Museu da MARÉ, não há possibilidade de remoção”. Sobre o futuro do museu, Joyce espera “que tudo se resolva da melhor maneira possível, que é a permanência do museu na MARÉ”.

Além das performaces teatrais, a fanfarra da banda Os Siderais animou o ato e se misturou com os gritos improvisados dos ativistas: “Aha uhu! O museu é nosso!”; “Ohoh, Libra vou te dizer, o museu tem que ficar!”; e ainda “Sai! Sai da frenteee! Sai que o museu é da genteee!”. E algumas pessoas pediram: “sai exército e fica museu!”.

Ativistas ao som de Os Siderais. Foto: Gizele Martins
Ativistas ao som de Os Siderais.
Foto: Gizele Martins

A Caminhada da Resistência foi encerrada na praça do Parque União, onde a banda Os Siderais, que percorreu todo o percurso tocando e dançando com os ativistas, tocou a canção Praça da Liberdade, do sax baritono Marcos Matraca, que representa a arte livre e democrática nas ruas.

“O ato foi lindo! A ‘gota de sangue de cada museu’ se estendeu (literalmente) pela avenida Brasil, vista na marca vermelha deixada no asfalto pelos artistas que conduziram a nossa marcha dançante. Que incrível a participação dos grupos da Maré e da banda Os Siderais!” – afirma Inês Gouveia, membro da Rede de Museologia Social do Rio de Janeiro.

Mais tarde, a equipe do Museu da Maré fez uma leitura coletiva do Manifesto em Defesa do Museu da Maré e retirou-se da praça carregando os objetos do museu, os estandartes, o rola-rola, as fotografias, agora, em pequeno e silencioso cortejo por dentro da Maré, percorrendo o Parque União, a Nova Holanda… até chegar no Morro do Timbau. Esse percurso final proporcionou novas surpresas, pois moradores curiosos olhavam as fotos, os objetos e perguntavam o que estava acontecendo no museu.

Para Inês Gouveia a leitura coletiva do manifesto pela permanência do museu “foi uma linda oração”. Inês, que acompanhou o pequeno cortejo que retornou ao museu após o ato, declarou que “na volta, por dentro da maré, o museu mais uma vez se fez cortejo e muitos moradores (re)significaram o acervo que ia passando pelas ruas. O ‘rola’ fez um tremendo sucesso! Quanta gente lembra! Ali senti que era eu quem observava a manifestação… Uma manifestação de vida, mas também uma exposição cínica em que o exército – com muitos meninos de 18 anos, com fraldas e fuzis – desfilam carros e helicópteros, brincando de comandos em ação. Depois de ontem, tenho outra condição de pensar o mundo, de pensar o museu”.

Fátima Romualdo, educadora no museu, afirma que “o ato foi um marco importante para demonstrar, principalmente, para as autoridades a importância que o museu tem para a história do Brasil. O Museu da Maré é minha militância, sou mulher negra, suburbana e defensora e militante dos direitos humanos. Foi importante constatar o público diversificado, múltiplo, potente… presente e lutando ao nosso lado. Estou emocionada, só de lembrar…” – e conclui – “O meu corpo e minha alma pulsam pelo Museu da Maré”.

A expectativa de todos agora é pela permanência do Museu da Maré: “O futuro do Museu é este dia a dia, muita luta…você é atuante nesta construção diária, certo? Esta situação tem que ser resolvida pelo poder público. O Museu da Maré fica”. – afirma Marcelo Vieira.

O Museu da Maré é dividido em 12 tempos, um deles é o TEMPO DO FUTURO, o tempo daquilo que não conhecemos. No sábado 18, fomos pra rua dizer o que queremos pro futuro: “Sai! Sai da frente! Sai que o Museu da Maré é da gente!!!”. O tempo do futuro nós estamos escrevendo e todos, de alguma forma, compartilhamos de uma certeza: “SE LEMBRAR É UM DIREITO, RESISTIR É UM DEVER”.