Até quando?

Créditos: DentroDaFavela / Reprodução Instagram

São 22h30, e acabei de fazer uma conexão Jurujuba x Centro do Rio x Guapimirim. 91 km, segundo o Google Maps. Quatro horas de percurso.

Moro mesmo em Duque de Caxias. Quem nunca ouviu falar da terra de Tenório Cavalcante, o homem da capa preta? Cidade histórica, igualmente a Guapimirim, onde comecei minha viagem de hoje ainda pela manhã.

O lugar de onde vim tem muitas histórias e memórias. Já foi, inclusive, parte de novelas. Acreditem! Bem pertinho da minha casa, reza a lenda, passava um túnel que ligava a famosa chácara da família Cavalcante ao Centro de Duque de Caxias. Essa mesma propriedade outrora foi abrigo para a Marquesa de Santos que, para quem não acompanhou o fio da meada, foi amante (segundo a história contada) de Dom Pedro l. Mas essas são apenas lembranças e “causos” que, vez ou outra, conto para os mais novos. Esses, nem de longe, ouviram falar sobre tudo isso.

As histórias foram perdidas, nossos locais de origem destruídos, nossas memórias quase apagadas e os heróis, grandes ídolos e referências, também não existem mais. Isso, sim, é o que me preocupa, e, por sinal, é exatamente o que me traz a Guapi: uma busca pela paz que não encontro mais onde vivo.

Sabe o que é? Esse furacão de violência tem mexido com a gente. A sensação de mãos atadas. A relação dos moradores e, consequentemente, de famílias inteiras com seus lugares tem afetado diretamente o olhar e a maneira como cada um vê seu futuro e sua existência. Eu me pergunto todos os dias: que memórias os alunos das escolas onde crio diálogos terão no futuro? Mais ainda: quem são seus ídolos e suas referências cotidianas?

Nesses trajetos longos em busca do meu lugar, tenho folheado o livro recém-lançado de Lázaro Ramos, intitulado Na minha pele, em que o autor revela experiências de sua trajetória até aqui. Em determinado momento, Lázaro fala exatamente de suas referências na infância e de quem lhe fez acreditar que, sim, era possível ultrapassar as barreiras. Confesso que, por vezes, li e reli alguns parágrafos totalmente sem crença e me peguei pensando: até quando nossas conexões serão suficientes para seguirmos? Até quando teremos forças por nós e pelos nossos?

Vemos tiros, confrontos e assaltos diários que batem mais ponto do que o João, meu vizinho, um guerreiro que sustenta quatro filhos. Enquanto vejo Ana Paula Lisboa, do Complexo da Maré, se mudar para Luanda (um sonho meu que nunca contei pra ninguém), respiro um ânimo de que minha referência vive e é mais parecida comigo do que as famílias ditas perfeitas do comercial de margarina. Ana Paula é sempre uma das primeiras referências que me vem à mente quando preciso reacreditar que coisas positivas acontecem em meio ao caos. Sabe quando existiam As Paquitas e a gente só podia se contentar com a Adriana Bombom ali, como mera coadjuvante? Se naquele tempo tivéssemos a Ana, teríamos andado mais depressa e decolado. E foi isso que ela fez recentemente: cresceu para que pudéssemos ver sua potência de dentro da favela.

Mas, calma aí, pois logo esbarro numa barricada que impede mais uma vez o meu caminho. O tiro do fuzil não tem nos deixado escutar novas ideias e a cena do Bope invadindo a rua antes do galo cantar ainda turva minha visão de um futuro diferente. As crianças não foram pra escola naquela manhã e os adultos ficavam num impasse entre se proteger ou vestir uma armadura invisível para ir ao trabalho. Até o João!

Enquanto tudo isso acontece, eu penso no X*, preso aos 18 anos, menino bom que entrou em um caminho torto por conta de uma blusa da Nike e um tênis da Adidas. A mãe dele é quem mais me preocupa, pois, assim como 40% das famílias da periferia, também é ela quem gerencia a casa. Penso nos outros tantos meninos que vi nessa mesma situação.

Eu me pergunto: até quando? Até quando vamos aguentar e conseguir driblar nosso sono entre uma bala e outra? Até quando vamos conseguir, sem pifar, pegar três horas diárias de engarrafamento em meio às balas cruzadas na Linha Vermelha pra alcançar o outro lado da cidade e chegar ao trabalho, cursinho ou ao destino mais longe possível para onde os nossos sonhos nos mandarem?

Me pergunto: até quando vou precisar fugir para Guapi em busca de paz para alcançar o que ainda acredito? Por mim, pelos meus e por outros.