Argentina em transe

Cartazes com a foto de Santiago Maldonado se espalham pelo país (Créditos da reprodução: Alexandre Santini / ANF)

Até agora foram 1.100 km percorridos, três cidades em sete dias. É intensa a jornada deste colunista por las carreteras de uma Argentina em ebulição. Escrevo este texto tomando um mate para aliviar o frio na noite da bela cidade de Córdoba, capital da província que leva o mesmo nome (aqui, o que conhecemos como estados do país são províncias).

Em Córdoba, está uma das universidades mais antigas da América Latina, a primeira a garantir o livre acesso e o ensino público e gratuito em nosso continente. É nela que nesta quarta, 13, faremos o lançamento do livro Cultura Viva Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina (ANF Produções, 2017).  O evento vai contar com programação cultural e  um debate que já se anuncia intenso, com a participação de alunos, professores, pesquisadores, gestores públicos e organizações culturais comunitárias. O livro, mesmo em português, tem despertado grande interesse por aqui. E, em breve, sai a versão em espanhol!

Já estive algumas vezes na Argentina, mas nestes dias dediquei algum tempo a uma coisa que faço muito pouco no Brasil: ver televisão. Chamou minha atenção a quantidade – e qualidade – de informações e notícias sobre a América Latina. A visita do Papa Francisco à Colômbia mereceu enorme destaque em vários canais. Os furacões que devastaram cidades do Caribe e América do Norte estão sendo abordados por vários ângulos. Enquanto a imprensa brasileira focava em Miami, por aqui se via Cuba, México, República Dominicana, Antígua e Barbuda, a ajuda humanitária que está sendo prestada pela Venezuela, lugares e fatos que não seriam notícia em nosso país. Sobre o noticiário local, vale notar a polifonia e a diversidade de narrativas: são pelo menos três ou quatro canais de alcance nacional, com posições políticas abertamente diferentes entre si, e que assumem seus pontos de vista junto à opinião pública. Para alguma coisa, certamente serviu a Ley de Medios, que quebrou o monopólio das comunicações durante os governos de Nestor e Cristina Kirchner.

Mas em todos os canais, jornais, encontros, plenárias, conversas no bar, no táxi, no ônibus, nas ruas, uma pergunta ronda a Argentina: dónde está Santiago Maldonado? O jovem artesão que se aliou à luta dos povos indígenas Mapuche, e ao que tudo indica foi vítima das violações que recrudesceram no governo de Mauricio Macri, é hoje o símbolo de uma Argentina que luta por direitos e contra os retrocessos em curso no país. O caso tomou repercussão nacional e internacional, é cada vez mais claro o envolvimento de agentes do Estado em seu desaparecimento forçado. O tema desperta a ferida da memória dos mais de 30 mil mortos e desaparecidos na Ditadura Militar argentina, uma das mais violentas do continente. O jovem desaparecido impõe ao governo Macri, até o momento, a sua maior derrota e desmoralização pública. E, assim como no Brasil, nós iniciamos nossas conversas com o “primeiramente, Fora Temer”, na Argentina é voz corrente encerrar as conversas e discussões com a pergunta que não quer calar: “onde está Santiago Maldonado?”.

 

Cultura comunitária e cooperação

mapa colaborativo das organizações culturais comunitárias da Argentina. (Foto: Alexandre Santini)
Mapa colaborativo das organizações culturais comunitárias da Argentina. (Créditos: Alexandre Santini / ANF)

Seguindo a nossa jornada, depois de dois dias na capital do país, saí rumo ao oeste por 517 km de estrada a bordo do transporte comunitário do amigo fotógrafo Mario Siniawski, um jovem de 70 e poucos anos que dirigiu durante oito horas, conversando sem parar com este sonolento colunista. Chegamos a América, não o continente, tampouco o país do norte, mas um pueblito de 10 mil habitantes no distrito de Rivadávia, já na região dos Pampas – que geograficamente liga o centro da Argentina ao sul de nosso país. Neste lugar chiquito, participamos do Encontro Nacional de Redes de Cultura Comunitária da Argentina, reunião de três dias que contou com a participação de cerca de 400 pessoas, representando mais de 300 organizações culturais, 30 redes de cultura e 18 províncias de toda a Argentina.

Foto: Alexandre Santini
Créditos: Alexandre Santini / ANF

O Encontro foi bonito, potente, massivo, e reafirmou que a Cultura Viva Comunitária é hoje um movimento continental, que além de lutar e incidir na construção de políticas públicas para a cultura, se propõe também, partindo da cultura, a construir estratégias e alternativas para a esquerda e os movimento de transformação social no século XXI. “No venimos a decorar la democracia, sino a transformarla” é uma das frases que definem o movimento de cultura comunitária na América Latina. Diante de um cenário político adverso na maioria dos países da região, o movimento tem diante de si o desafio e a responsabilidade de construir de forma autônoma ambientes e espaços organizativos que nos permitam resistir e avançar, em um contexto onde mais que nunca é preciso estar atento e forte. O movimento argentino também se prepara para participar em novembro do 3º Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária em Quito, Equador, que tem tudo para ser mais um momento importante desta trajetória comum continental.

 

Participantes do Encontro Nacional reunidos em inauguração de mural na sede da La Comunitária (Créditos: Alexandre Santini / ANF)
Participantes do Encontro Nacional reunidos em inauguração de mural na sede da La Comunitária (Créditos: Mario Siniawski / Cooperativa La Comunitária)

 

La Comunitária (Foto: Alexandre Santini)
La Comunitária (Foto: Alexandre Santini)

E, por fim, uma homenagem emocionada à Cooperativa La Comunitária, organização que sediou e produziu todo o Encontro e demonstrou na prática o que é uma construção colaborativa, autônoma e feita de baixo pra cima. Mulheres e homens, crianças, idosos, vizinhos, todos empenhados de forma voluntária em realizar as atividades do encontro, servindo a comida, limpando, arrumando, organizando tudo sob intensa chuva e frio, sempre bem dispostos, humorados e sorridentes. Sob o comando delicado de Maria Emilia de la Iglesia, uma pequena grande companheira, a Cooperativa La Comunitária faz teatro, realiza experiências inovadoras de orçamento participativo e economia solidária, constrói no presente um outro futuro. Como disse durante o encontro o teatrólogo argentino Ricardo Talento: “temos que criar novas ficções para a humanidade no século XXI, e seria muito bom que estas ficções viessem do mundo feminino”. E La Comunitária nos dá pistas do caminho por onde criarmos estas novas narrativas.

Mas para concluir: dónde carajo está Santiago Maldonado?!