A vitrine e a guerra: estratégias territoriais de ocupação e integração das favelas cariocas

Marcos Barreira    

 

“A UPP é uma vitrine construída com dificuldade”. Dirceu Viana, chefe da assessoria de comunicação da Secretaria de Segurança.

          Durante os últimos cinco anos, a UPP foi o símbolo das “mudanças positivas” alardeadas pelos discursos oficiais, representando a imagem de ordem que convém ao período de prosperidade pelo qual a cidade do Rio de Janeiro estaria passando. Tratar-se-ia de uma retomada do crescimento econômico garantida pelas ocupações militares, não fosse o fato de que, no Rio, somente estas últimas se fazem presentes na vida cotidiana. A militarização do espaço urbano favoreceu um modelo de cidade voltada para o lucro, com impulsos de fragmentação do espaço. Isso significa que existem mudanças profundas na cidade, mas não no que diz respeito ao problema da violência. As transformações realizadas pelo Estado e pelas tendências de mercado têm se caracterizado pelo aumento da segregação socioespacial e pela dissolução de formas de sociabilidade – por isso mesmo, o processo de integração econômica das favelas pode ser considerado tão aparente quanto o crescimento econômico.[1] A ampliação dos instrumentos repressivos não diminuiu a criminalidade, mas os indicadores de violência foram habilmente subestimados, em práticas policiais oficiosas e operações de maquilagem estatística, para criar um contexto favorável aos investimentos. Nesse quadro, as UPPs alcançaram o objetivo de construir uma imagem de segurança baseada no controle territorial que, por sua vez, criou as condições para outras intervenções urbanas.

          Para compreender esse tríplice papel das UPPs na dinâmica da cidade – e na relação da cidade com outros lugares – é preciso considerar as estratégias territoriais adotadas pelo Estado desde o início dessa nova forma de intervenção nas favelas cariocas. Esta compreensão é ainda mais necessária quando nos deparamos com um conjunto de abordagens nas quais é frequente o uso da palavra “território” e outras metáforas espaciais, mas estão ausentes os raciocínios geográficos que definem a distribuição das forças militares (e dos investimentos) pelo espaço urbano – uma preocupação que tem menos a ver com a produção de discursos de verdade sobre um determinado campo teórico do que com a urgência de lidar com uma dimensão negligenciada do processo de militarização social. Quando falamos em estratégias, pensamos no uso do domínio político do espaço, algo que requer manobras de guerra para alcançar objetivos – especialmente econômicos -, à sombra das quais são produzidos os mais variados discursos sobre o território.[2] Uma abordagem consistente do processo de “pacificação” implica uma série de questões que envolvem poder político, interesses econômicos e modificações na estrutura urbana. Nesse ponto de vista, o problema da “segurança” é correlato às dinâmicas de revitalização econômica de áreas subutilizadas da cidade, especulação imobiliária e integração econômica parcial de aglomerados de baixa renda. São formas renovadas de apropriação do espaço através das quais a representação social das favelas cariocas é modificada, especialmente no que diz respeito à dualidade – mais aparente do que real – entre “espaços integrados” e “espaços de conflito”.

          A “pacificação” deve ser vista como uma estratégia abrangente e, ao mesmo tempo, seletiva. O que ocorre em cada um dos lugares incluídos no programa encontra sua razão de ser na concepção de cidade que norteia o conjunto das intervenções estatais. No entanto, a maior parte das abordagens sobre o tema dá ênfase às dinâmicas locais, em “estudos de caso” que, com frequência, perdem de vista o conjunto (o que não os impede de obter resultados). Além disso, há o risco da generalização de aspectos isolados. Para apreender os processos sociais na escala da cidade e as formas diferenciadas de intervenção sobre os territórios, é necessário recorrer a uma visão mais extensiva.[3] De um ponto de vista mais global, podemos afirmar que as recentes modificações do quadro geral da política de segurança pública ocorrem mais em termos de ajuste, redistribuição e reconfiguração das práticas ilegais do que de “retomada” de territórios. Igualmente, a “integração” das favelas no contexto pós-UPP, isto é, a partir de 2008, coexiste com processos bastante evidentes de segregação socioespacial. Para chegar a essa conclusão é imperativo sobrepor os mapas das ocupações de favelas, da criminalidade violenta e dos grandes investimentos públicos e privados. Assim, é possível ligar as UPPs a um projeto político-empresarial que pensa a cidade a partir da valorização do espaço urbano.

          Inicialmente, as UPPs serviram bem ao propósito de “acabar com a visibilidade da violência do tráfico de drogas e eliminar os conflitos armados em áreas de alta renda que concentram atrativos para os consumidores vindos de fora”.[4] Mas, ao invés da pacificação social, o que esse modelo de segurança produziu foi a reconfiguração econômica e espacial dos conflitos: “com as UPPs, a situação [de crise] se agrava e a guerra por territórios se intensifica”.[5] É claro que isso não deve ser confundido com o fracasso do modelo vigente, tendo em vista que seus objetivos foram alcançados: ele funcionou como fiador do empreendimento olímpico, além de produzir um efeito direto sobre a valorização patrimonial das camadas proprietárias e sobre a gentrificação das favelas integradas ao circuito turístico – isso para mencionar apenas o aspecto econômico. Ao mesmo tempo, é possível afirmar que, mesmo enfrentando dificuldades, o objetivo de reconstrução da imagem da instituição policial foi parcialmente alcançado. Por outro lado, essa abordagem – como tantas outras – trata o fenômeno “UPP” como algo homogêneo, sem considerar diferenças importantes relacionadas às estratégias de ocupação territorial. Essa dimensão até agora não tematizada pela análise teórica diz respeito à concepção geral do projeto e ao seu modus operandi, ou seja, inclui tanto os conteúdos profundamente diferenciados que se escondem por trás da forma-imagem “UPP”, quanto as estratégias adotadas para selecionar as favelas ocupadas.

A lógica espacial da ocupação militar das favelas

 

 

          O “mapa das UPPs” parece revelar uma política de caráter acessório (e até mesmo provisório), a serviço dos megaeventos e, de fato, ele foi interpretado dessa maneira, sem que se levasse em consideração a real dimensão do processo de militarização. Mas a “pacificação” tornou-se, após cinco anos de existência, uma política com alcance muito maior do que os seus críticos imaginavam – e, não obstante, menor do que aparenta ser. Ela tem, é claro, relação direta com os grandes espetáculos esportivos, no sentido amplo da atuação do Estado em harmonia com a lógica seletiva dos interesses privados; uma relação que ultrapassou em muito os interesses envolvidos na preparação da cidade para as Olimpíadas de 2016. O circuito de grandes eventos é apenas um instrumento usado para a mobilização de recursos financeiros. Ao invés de reduzir de modo utilitarista as UPPs a uma determinada iniciativa político-empresarial, é preferível defini-las, de maneira mais geral, como a face policial-militar do empreendedorismo urbano. Não são, de qualquer forma, parte de uma política pública para o conjunto da cidade e sim uma estratégia de segurança feita sob medida para a garantia de espaços de lucratividade cada vez mais estreitos e artificialmente induzidos pelo crédito estatal. Em torno dessas ilhas de prosperidade baseadas na simulação financeira encontramos um quadro de deterioração pós-urbano composto por pequenos empresários da miséria, indivíduos “inempregáveis”, desabrigados, catadores de lixo, dependentes químicos e bandos armados a controlar territórios e atividades clandestinas. Daí a necessidade de tirar do caminho a pobreza e o crime violento, afastando-os tanto quanto possível dos locais de circulação da riqueza.

          Para ilustrar esse movimento, basta reconstituir o processo de implantação das UPPs, iniciado em dezembro de 2008. Atualmente, a cidade conta com trinta e seis unidades, muito irregularmente distribuídas. O primeiro passo foi a ocupação de pequenas favelas na zona sul carioca, ao que se seguiu uma operação semelhante em morros da área central da cidade – o que produziu uma resposta imediata do tráfico. Em seguida, um cerco militar improvisado aos complexos do Alemão e da Penha, em decorrência dos “ataques”, exigiu das Forças Armadas uma ação que se prolongou por mais de um ano.[6] Esse episódio, marcado pela imagem da fuga da Vila Cruzeiro, colocou a Secretaria de Segurança numa situação defensiva. Pela primeira vez, ficou em evidência o problema do deslocamento das atividades criminosas. Foi elaborado, então, um discurso ad hoc, no qual a ênfase era colocada nos “territórios ainda não dominados”, como se houvesse uma tendência à ocupação de todas as favelas da cidade – uma fala corroborada pelos discursos eleitorais do governador Sérgio Cabral. Para o coronel Mário Sérgio Duarte, então no comando geral da Polícia Militar, a opção pelo “cerco” foi uma estratégia bem definida: teria sido não um efeito inesperado, mas um resultado bem calculado pelas forças de segurança.[7] Essa versão, que pressupõe a ideia fantasiosa do Complexo do Alemão funcionando como uma espécie de núcleo do tráfico a partir do qual a violência se dispersava pelo resto da cidade, caiu por terra até mesmo nas falas oficiais subsequentes, além de ter sido desmentida também na prática, pela forma como o setor de inteligência da Secretária de Segurança planejou as ações.

           Primeiramente, foram identificadas 97 áreas enquadras na categoria de territórios a serem “retomados”. A Secretaria “elaborou uma relação de todos os pontos do Rio que padeciam de três mazelas diferentes: o Estado não se fazia presente, havia domínio ostensivo de traficantes ou milicianos armados e estavam sob o controle de uma ideologia de facção”.[8] Não havia, portanto, nenhum centro difusor da violência. O diagnóstico mostrava a fragmentação da estrutura do tráfico armado e sua abrangência – uma situação agravada pela presença dos grupos paramilitares. Em função da enorme quantidade de áreas que permaneciam fora de controle, foi necessário definir um novo critério de ação governamental a partir do nível de periculosidade apresentado por cada um desses lugares. Chegou-se, então, a um número menor, os 47 locais prioritários (número um pouco superior às 44 UPPs anunciadas como objetivo pela Coordenadoria da PM). No entanto, esse plano jamais foi adotado. O que ocorreu a partir de 2009, na fase de expansão do programa, foi uma verdadeira inversão de perspectiva: ao invés de agir nas áreas de maior poder das quadrilhas de traficantes e milicianos, a Secretaria de Segurança decidiu “atacar pelas beiradas”, o que resultou no “cerco final”. De acordo com a versão da própria Secretaria, era preciso escolher entre duas vias de ação: “Poderíamos começar pelo núcleo” – ou seja, o Complexo do Alemão – “e provocar um espalhamento de criminosos, ou partir para outras áreas, deixando que eles se reunissem num único lugar”.[9] Essa versão oficial dos fatos teve a dupla vantagem de responder à crítica de que as UPPs apenas mudavam o crime de lugar e, além disso, permitir – com ajuda da cobertura midiática – a construção de uma grande expectativa em torno do “dia D”, símbolo da “regeneração” da cidade. Uma imagem duplamente falsa, se considerarmos que foi a política adotada pelo Estado que provocou o adensamento de uma das facções naquele local e que o resultado da operação de retomada do Complexo do Alemão foi uma fragmentação ainda maior das redes do tráfico de drogas.

          A maior dificuldade na construção da vitrine de segurança era evitar que os confrontos fossem travados nas adjacências dos bairros “nobres” e com grande circulação turística. As facções do tráfico foram empurradas para as periferias, definidas pelos critérios do governo como “não prioritárias”. Nessas condições, era forçoso o espalhamento das quadrilhas atingidas pelas UPPs. O Estado fez apenas uma opção pelo direcionamento da chamada migração do crime para longe do campo de visão da opinião pública.[10] De fato, a “pacificação”, entendida como construção da imagem de uma cidade segura, jamais poderia começar com uma intensificação dos conflitos nos bairros mais ricos. Se fosse inaugurada com uma grande operação militar nas favelas da zona norte, daria início a uma disputa por territórios nas áreas turísticas da cidade. Com a mudança de perspectiva, manteve-se a meta dos 44 (ou 47) locais prioritários, mas os critérios anteriores foram abandonados. Havia agora um fator novo: a visibilidade das operações visando à adesão da população. De acordo com o novo critério, a implantação das UPPs não levaria em conta a periculosidade das áreas e sim o caráter estratégico de determinados locais. Assim, se impôs uma visão mais orientada para a produção da imagem de segurança do que para a diminuição da criminalidade violenta. Se antes de 2009, metade das áreas identificadas como “fora do controle do Estado” e “submetidas a ideologias de facção” havia ficado de fora dos planos, nos anos seguintes a escolha das prioridades para a intervenção na metade restante seria redefinida a partir do marketing urbano e das pressões da “opinião pública”– simplificando, entre uma área violenta e outra, com localização privilegiada, a escolha tem de recair sempre sobre a segunda (o mesmo valendo para áreas com potencial de valorização imobiliária ou acesso às localidades centrais da cidade). Desse modo, as UPPs resguardaram um segmento da metrópole que é vital para a construção da “Cidade Olímpica” e, no interior desses espaços, colocaram as favelas sob controle policial. No restante da cidade, a guerra continuou sem trégua. Quanto ao episódio do Complexo do Alemão, podemos ver na ação das Forças Armadas um recurso de emergência. A ocupação militar daquele conjunto de favelas foi menos uma ação planejada do que um efeito colateral da expansão das primeiras UPPs. E sua consequência foi o contrário do anunciado pela Secretária de Segurança: uma nova onda da migração do tráfico.

          Outra etapa da estratégia teve início com a operação Choque de Paz, que dominou as grandes favelas da zona sul.[11] Os primeiros objetivos foram alcançados com ajuda dos meios de comunicação e dos principais atores políticos. Foi o momento de concentrar as forças nas áreas com maior potencial econômico. Nessa etapa, era necessário lidar com a situação nova e mais complexa das áreas de conflito em favelas com dimensões muito maiores que as anteriores. Foi o caso do Complexo do Alemão e das favelas da Penha, ocupadas pelo Exército. Pode-se dizer que a operação conduzida pelas Forças Armadas e pelas polícias na Rocinha, além de consolidar a ação do Estado na zona sul, inaugurou esse novo estágio, no qual ainda nos encontramos. A ocupação das favelas do Jacarezinho e Manguinhos, em janeiro de 2013, que possuem, juntas, uma população similar à da Rocinha, é parte dessa mesma etapa, marcada pela dificuldade de administração dos territórios ocupados. O conjunto de favelas da Maré, cuja ocupação está planejada para 2014, deve apresentar as mesmas dificuldades.

          Existe ainda uma segunda estratégia espacial que diz respeito à concepção das UPPs. Estas costumam apresentar diferenças conforme a localização e a função que desempenham no conjunto do plano de controle social armado. Poderíamos dividi-las de forma quase típico-ideal em: vitrines da política estadual, contextos de conflito permanente e modelos de intervenção mínima. Como disse o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, “cada caso é um caso, assim como cada uma das 28 UPPs [em 2012] do Rio nos apresentou desafios variados e bem diferentes”.[12] O que à primeira vista parece um bom aprendizado, pode ser visto, de outro ângulo, como a concepção que orienta desde o início as operações. Aproximam-se do primeiro caso as favelas pequenas em áreas valorizadas e sem “conflagração”; do segundo, áreas de ocupação progressiva, nas quais grandes contingentes policiais precisam disputar o território com facções ali estabelecidas; o terceiro modelo, mais simples que os anteriores, ajuda a explicar a presença do aparato repressivo em favelas que não contam com as “ações sociais” mobilizadas em outras situações. Nas pequenas favelas situadas na zona sul é possível observar uma atuação concentrada do governo estadual, da administração local (UPP Social), de empresas e organizações não governamentais. Esse conjunto de ingerências contribui para a mudança do perfil socioeconômico das favelas e cria uma aparência de tranquilidade e conciliação considerada positiva pelas empresas de mídia com interesses em empreendimentos locais, além de ajudar a fortalecer, entre os moradores das favelas, o consenso em torno das UPPs. Nos complexos de favelas do Alemão e da Penha – e também na Rocinha – a situação é bem diferente, pois os moradores são forçados a conviver com a violência dos conflitos.[13] Além dos pontos de vendas de drogas, está em disputa a adesão dos moradores. Por esse motivo, aglomerados mais numerosos tornam-se os alvos prioritários dos programas de estímulo econômico do governo federal, com o que se pretende ampliar a oferta local de empregos. Em alguns casos, como a favela do Itararé (no Alemão) e nas proximidades de Manguinhos, foram instaladas delegacias para ampliar a presença policial. Finalmente, temos um amplo conjunto de favelas onde a “pacificação” ficou reduzida à ocupação militar permanente, sem as “ações sociais” presentes em outros locais. Em geral, são favelas pequenas ou médias, na zona norte e nas áreas centrais decadentes, que, em virtude da sua localização, contam com efetivos policiais reduzidos, menos recursos públicos e pouca ou nenhuma circulação de turistas. Podemos considerá-las pouco atrativas para investimentos econômicos, contudo, não deixam de ter um papel complementar no deslocamento das facções do tráfico.

          Cada uma dessas circunstâncias diz muito sobre a lógica espacial do processo de “pacificação”, cujo sentido, já o dissemos, é evitar que a porção mais rentável da cidade seja afetada pela lógica da informalidade e pelos surtos de brutalidade que ocorrem nas periferias. Por isso, as primeiras UPPs foram inauguradas ao mesmo tempo em que as chamadas milícias consolidavam territórios – praticamente sem resistência política – nas regiões mais abandonadas pelo Estado. Era essencial que as novas unidades policiais fossem pensadas a partir do reforço das diferenciações sociais, isto é, em função da existência, no interior dos bairros, de territórios bem delimitados e estigmatizados como áreas violentas. Há, na origem do quadro atual, uma ideologia defensiva de classe média, que considera a favela um elemento estranho ao bairro. Na orla da zona sul carioca ou na Tijuca, tradicional reduto das camadas médias, a retórica do combate à violência significa, em primeiro lugar, a criação de mecanismos de controle violento das populações que por qualquer motivo “não deveriam estar ali”. O período pré-UPP foi caracterizado por uma grande sensação de insegurança dos moradores do “asfalto” e pela depreciação do patrimônio imobiliário das localidades próximas às favelas – ou até de bairros inteiros. O caso da Tijuca é paradigmático, não só por se tratar de um bairro cujos moradores mais abastados muitas vezes crêem estar ameaçados pelas favelas, mas devido ao esvaziamento econômico e populacional do início dos anos 2000. Nesse período, muitos moradores trocaram o bairro por outras regiões da cidade, especialmente as áreas de expansão urbana da zona oeste (Barra da Tijuca e Recreio). Esse ponto de vista é resumido na ideia de que a Tijuca deixou de ser o sonho de consumo” da classe média: “Encravado num vale, o bairro está cercado por favelas, que ocupam principalmente as encostas. Segundo dados oficiais, são 13 favelas (…) de 1991 para 2000 a população do asfalto caiu 8%, de 168.043 para 154.767. Nas favelas, também houve queda, mas dez vezes menor: 0,8%, de 26.440 para 26.225”.[14] O quadro mudou sensivelmente após a instalação das UPPs, como se pode ver, por exemplo, na esperançosa mensagem de natal da última edição de 2012 de Tijuca em foco: “Durante muitos anos, os moradores da Tijuca e dos bairros adjacentes viveram dias e anos de insegurança constante. (…) Com a implantação das UPPs, começamos a viver um momento diferente: parece que novos ares começaram a soprar e uma nova esperança a bater em nossas portas, ao invés do medo e do pavor”.[15] Aqui as UPPs têm menos a ver com a redução da violência do que com uma sensação de proteção e de que “algo começa a ser feito” para acabar com a estagnação do bairro. Em alguns casos, essas UPPs produziram um efeito maior no seu entorno do que nas áreas ocupadas, trazendo poucas vantagens para os moradores das favelas, com exceção, é claro, do fim dos conflitos com armamentos pesados – um elemento decisivo na conquista do apoio às UPPs. Isso se deve ao fato de que as favelas da grande Tijuca são pouco atrativas para empresas e “ações sociais”. Algumas favelas chegaram a ser removidas ou estão ameaçadas. Por outro lado, o bairro voltou a receber grandes investimentos públicos e assistiu a um ressurgimento do setor de imóveis de luxo. Independentemente dessas transformações, o exemplo tijucano revela que o princípio da “pacificação” tende a cristalizar uma imagem negativa da favela e da sua relação com o restante da cidade.

          Um aspecto importante da relação local entre estrutura urbana e intervenção política é a dificuldade de estabelecer uma divisão nítida entre os bairros convencionais e as favelas. Quanto mais nos afastamos das áreas centrais em direção aos municípios que compõem a Região Metropolitana, mais tênue é a diferença entre as formas “normais” de habitação e os chamados “aglomerados subnormais”. Em consequência da falta de demarcações, a ocupação militar permanente deixa de fazer sentido. As periferias das zonas norte e oeste dificilmente poderiam ser ocupadas em função da grande extensão da favelização e do modo como ela se mescla com os bairros mais precarizados. Nessas regiões, o que encontramos é uma vastidão de bairros semifavelizados cuja forma e conteúdo dificultam a estigmatização dos territórios da pobreza.[16] A precária atuação estatal em todas essas áreas, quer se trate de favelas, assentamentos, conjuntos ou periferias pauperizadas possibilita a dominação do território por bandos armados. Ainda que não caiba falar em uma ação planejada, pode-se supor que as milícias e a presença do tráfico de drogas nas periferias são funcionais ao projeto empreendedor, com a condição de que não borrem a imagem da cidade, pois é através dessa presença que se forma o consenso em torno da militarização.[17] Territórios ocupados pelas milícias não são objetivos estratégicos, mas um resultado da lógica de gestão urbana baseada nos critérios de mercado. O abandono das periferias não desmonta apenas a suposição de que a “Cidade Olímpica” produzirá um legado de integração. Ele também expõe a fragilidade das teorias que explicam o empresariamento urbano como uma forma de incorporação econômica das populações marginalizadas. As duas visões contribuem para escamotear a crise urbana que, no caso do Rio de Janeiro, ganhou uma dimensão inédita com o crescimento da favelização na década de 1980 e continua a se desenvolver através da criação de novos espaços de pobreza e do adensamento dos já existentes.[18]

Um outro mapa das UPPs 

 

 

          A UPP do Santa Marta foi a primeira a ser instalada, em novembro de 2008. Com aproximadamente 10 mil moradores, a favela é considerada um modelo para as demais. Exemplo de sucesso do programa, seu “diferencial”, como diz o jargão empreendedor, é a possibilidade de exploração comercial das belas vistas para os cartões postais da cidade. Mesmo no caso de uma favela que recebeu muitos recursos e que, além disso, conta com o desenvolvimento recente da atividade turística, “lideranças locais reclamam da não correspondência entre os deveres que tiveram que assumir abruptamente com a entrada da polícia, seguida pelo mercado, e a ausência de bens públicos que resguardem os direitos da cidadania”.[19] Um efeito imediato do policiamento permanente foi a diminuição dos conflitos e dos pequenos delitos cometidos por menores, mas não foi perceptível uma alteração do quadro geral da violência: “o negócio dos traficantes era apenas vender a droga e não ‘assaltar’ no bairro”, diz Regina Chirádia, presidente da Associação dos moradores do bairro de Botafogo.[20] Passados cinco anos, começa a ficar claro que as mudanças ocorridas desde 2008 favoreceram alguns moradores e dificultaram a vida de outros. O desenvolvimento do turismo e do comércio contrasta com a repressão de atividades informais e iniciativas locais (como as rádios comunitárias). Na parte mais alta do morro – o local conhecido como Pico do Santa Marta -, onde as primeiras casas da favela foram construídas, os moradores denunciam que o plano de remoção de cerca de 40 famílias está associado aos empreendimentos turísticos locais.[21] Outra forma de expulsão dos antigos moradores é a elevação constante dos preços de alugueis, que atingem particularmente as favelas da zona sul. Esse também é o caso da favela do Vidigal, ocupado pela Polícia Militar no final de 2011, na qual se desenvolveu um potente mercado imobiliário atrativo até para a classe média, inclusive com a compra de muitas casas por estrangeiros. A especulação no valor dos imóveis está relacionada aos novos usos, que atendem uma demanda turística crescente. O Vidigal é a favela carioca com a maior renda domiciliar: ocorreu ali “uma substituição inevitável (!) da população típica da favela por outra, mais rica, até de fora do Rio e do Brasil”.[22] Esse crescimento sem regulação urbanística, com fortes tendências especulativas, deu origem a disputas em torno das propriedades – algo que já se verificava antes mesmo da inauguração da UPP. Uma iniciativa anterior à ocupação, como a do empresário Rolf Glaser, que comprou 37 imóveis somente nessa favela, foi noticiada por O Globo, na capa de 25 de janeiro de 2009, como “o ambicioso projeto de um alemão que quer fazer do Vidigal um ponto turístico”.[23] O projeto faliu devido à exigência de escrituras dos terrenos para a regularização das lojas e albergues que se pretendia criar, mas não deixa de indicar o tipo de transformação pela qual as favelas com boa localização estão passando. É a partir de exemplos assim que se produz a idealização do processo de integração das favelas, embora nenhuma das tendências apontadas exclua as formas violentas de controle policial.

          Um tipo de problema diferente é vivenciado pelos habitantes das favelas da Rocinha e do Complexo do Alemão, ainda que as duas façam parte – de diferentes maneiras – do novo circuito turístico. Desde a retirada apressada do Exército, para que a sua imagem de “força pacificadora” não saísse arranhada em consequência dos inevitáveis conflitos, sem falar na dificuldade de estender em demasia uma situação de flagrante ilegalidade, o Complexo do Alemão tornou-se novamente um território em disputa. As Forças Armadas, entretanto, permanecem como uma última instância a qual sempre se pode recorrer, tendo em vista que as dificuldades que se apresentam ao aparato regular de policiamento são insuperáveis. Aqui a ideologia da “pacificação” ganha a forma de uma guerra permanente. Naturalmente, muitas posições estratégicas permanecem sob controle, permitindo a reprodução da ideologia de ocupação, só que a presença policial não é suficiente para impor a autoridade estatal sobre o conjunto do território. Sabe-se, por exemplo, que após a criação da UPP do Morro do Adeus (a terceira das oito unidades do Complexo do Alemão), o Comando Vermelho perdeu o controle da venda de drogas para outra facção. Apenas alguns dias após a inauguração das bases policiais na parte central do Complexo, já sem as tropas do Exército, os conflitos armados reiniciaram. Dessa vez, no entanto, não foi o aparato repressivo que tomou a iniciativa, a exemplo das chacinas de 1994 e 1995 ou de 2007, todas perpetradas no interior do Complexo do Alemão, mas, ao revés, foram os policiais que se tornaram alvos dos ataques. Pelo menos desde a metade de 2012, são intensos os tiroteios e as ordens de fechamento do comércio vindas dos traficantes. Atentados contra as bases das UPPs tornaram-se frequentes. A carta que os PMs da Vila Cruzeiro e do Parque Proletário fizeram chegar aos jornalistas, com denúncias sobre a vigência das “leis do tráfico” e um pedido de socorro teve o efeito de uma pedrada na frágil vitrine de segurança montada pelo Estado e pela própria imprensa que, pela primeira vez contou uma nova versão dos fatos: “depois dos dias de esperança, os moradores agora se trancam em casa ao cair da noite. Eles confirmam que os criminosos voltaram a circular armados em ruas e becos, e os antes esporádicos tiroteios agora cortam o silêncio quase todas as noites”.[24] Efeito semelhante teve o ataque à sede do grupo AfroReggae, naquele mesmo ano. A morte de uma policial em serviço, na frente da UPP Nova Brasília, noticiada erroneamente como a primeira morte em serviço nas favelas ocupadas, gerou mais dúvidas sobre o programa de “pacificação” do que comoção. No final de 2012, mais da metade dos policiais mortos em serviço estava em áreas com UPP.

          Na Rocinha temos uma situação ainda mais contraditória: entre a ocupação da favela e a instalação da UPP, período que vai de novembro de 2011 até setembro no ano seguinte, dois policiais que patrulhavam a área e um líder comunitário foram mortos. Mas esse é apenas um lado da guerra que foi deflagrada entre fevereiro e março de 2012, com a favela sob controle do Batalhão de Choque da Polícia Militar. Nesse período, se intensificou a disputa pelos pontos de vendas de drogas, à medida que o grupo que exercia o controle na favela começou a se desmantelar. Após a queda do “chefe” local, ruas e vielas da Rocinha foram tomadas pela guerra de facções. Só em fevereiro de 2012, ocorreram pelo menos cinco assassinatos. Com cerca de 700 PMs, a Rocinha lidera o número de denúncias contra policiais por “desvio de conduta”. Foi lá que ganhou repercussão nacional o “Caso Amarildo”, outra “dificuldade” na construção da UPP. Antes desse caso furar o bloqueio midiático, surgiram muitas denúncias semelhantes, na própria Rocinha, envolvendo crimes de tortura, roubo e estupro. A similaridade entre ações de “aproximação” e práticas policiais convencionais pode ser igualmente observada nos casos de corrupção e associação ao tráfico: com o comércio de drogas local ainda ativo e lucrativo – algo em torno de R$ 10 milhões mensais, de acordo com o comando da UPP [25] – a manutenção da venda das drogas continua a funcionar com a cumplicidade dos agentes do Estado. Dificilmente as investigações sobre os acordos com o tráfico resultam em punição. Os casos de afastamento e remanejamento de policiais estão associados à repercussão midiática negativa e nunca resultam de investigações internas, o que evidencia, por parte da corporação, uma clara intenção de acobertamento dos crimes – no caso do pedreiro Amarildo, sequestrado e torturado até a morte, esse tipo de manipulação foi exposta em toda a sua simplicidade: os policiais envolvidos davam dinheiro a testemunhas para atribuir ao tráfico a responsabilidade pela morte do ajudante de pedreiro. De certo modo, a imprensa se colocou contra a versão dos policiais apenas para fabricar a mentira ainda maior de que o desaparecimento era um fato isolado que não podia comprometer a “pacificação”. Também foi noticiado o aumento do número de assaltos na Rocinha depois da criação da UPP, bem como a permanência de um sistema de cobrança de taxas impostas aos comerciantes locais. É uma circunstância curiosa que a ampliação do turismo e a pressão imobiliária nas grandes favelas, ambas estimuladas pelas representações televisivas, estejam a conviver “pacificamente” com o recrudescimento dos conflitos armados diretamente vivenciados pelos seus moradores. Mas essa representação não é inteiramente falsa. Ela corresponde a uma divisão entre as partes das favelas mais integradas à vida urbana, com fluxos comerciais mais volumosos, e os locais de difícil acesso, que permanecem como redutos das quadrilhas. Tudo isso ocorre em meio às obras de reassentamento e de urbanização que ajudam a transmitir uma imagem de renovação – uma espécie de efeito direto da “paz social”. Os grandes investimentos, por sua vez, confirmam o embate entre as escolhas do poder público pelas obras voltadas para a construção da imagem da favela integrada e as prioridades defendidas pelos moradores (p.e., teleféricos vs. saneamento básico).

          A maior parte das favelas ocupadas, no entanto, possui uma visibilidade bem menor que a dos exemplos que listamos. Ausência de ações sociais, precariedade das instalações das UPPs, corrupção e violência policial são os principais elementos que compõe o quadro da ocupação nos morros da zona norte da cidade – e até mesmo nas áreas centrais. É o caso do Borel, na Tijuca, a oitava favela a ganhar uma UPP, em junho de 2010. Uma primeira diferença em relação a uma favela como o Santa Marta, é a baixa adesão da população local à ideologia da “pacificação”.[26] A desconfiança da comunidade se baseia em muitos fatores, mais o maior deles talvez seja a ausência da UPP Social. Essa carência, compensada por pequenas ações assistencialistas, indica o limite das intervenções continuadas por parte do Estado. Assim, se reforça entre os moradores a ideia de que o projeto possui uma dimensão efêmera e puramente instrumental. Ao mesmo tempo, diz uma liderança comunitária, o governo estadual vende a ideia de que “a partir da lógica da pacificação temos ações que nunca haviam acontecido, o que é uma inverdade”.[27] Em muitos casos, os poucos projetos existentes se desenvolveram a partir da iniciativa dos próprios moradores, muito antes da chegada das UPPs. Em outros, a população se torna objeto passivo das intervenções do governo. O exemplo mais drástico é o plano de remoção das mais de 150 famílias que moram na beira do rio que corre em frente ao morro do Borel, numa localidade conhecida como favela da Indiana. Mas o problema central continua sendo a relação entre os moradores e a polícia: “É um namoro no qual o Estado está impondo o marido”, diz Zoraide Vidal, da Ação Pastoral Pró-Favela.[28] Lideranças como Mônica Francisco afirmam: “quem está fazendo parte dessa pacificação é a polícia e mais ninguém”.[29] No Borel, são frequentes os desentendimentos entre policiais e moradores, o que é agravado por um histórico de violência no local.[30] Para Mônica, não há uma “nova polícia”: a preocupação ainda é grande por causa de “uma série de violências cotidianas que vão se configurando a cada dia”.[31] Mesmo sem o “auto de resistência”, sem bala perdida, a violência continua: “se for perguntar para a maioria da população, vão dizer: é muito bom porque não tem mais o tiroteio; o tiroteio era o terror de todo mundo. Era a guerra, a polícia entrando e matando. Mas hoje escuto muito as pessoas falarem que entre um tiro e apanhar da polícia, é melhor apanhar. É melhor apanhar do que morrer, não é?”.[32] Para contornar o problema das denúncias crescentes de “abusos” cometidos por policiais, a Secretaria de Direitos Humanos criou um curso para funcionar como espaço de diálogo com a comunidade. Nas palavras de Andréa Sepúlveda, “ainda existe muito preconceito na polícia. Porque, segundo eles, os direitos humanos sempre estavam ao lado dos bandidos. Ao longo das discussões, em sala de aula, percebemos que precisávamos fazer um pacto de respeito entre a comunidade e os policiais”.[33] O problema, no entanto, permanece. As arbitrariedades tornaram-se mais comuns, inclusive o toque de recolher, denunciado pela imprensa desde em 2012.[34]

          Mais do que um desvio de conduta de alguns indivíduos, a violência policial permanece uma prática sistemática do Estado. A diferença em relação às áreas sem UPPs, é que a chamada “aproximação” com as comunidades substitui as invasões violentas por uma administração repressiva permanente. Só que na atual concepção de cidade, quanto menor a importância econômica e simbólica das áreas ocupadas, maiores as semelhanças entre a polícia dita pacificadora e a política belicista da “guerra às drogas”. No morro do Fogueteiro, próximo à área central, a família de um morador denunciou uma execução cometida por policiais da UPP, e uma perícia independente constatou a modificação da cena do crime.[35] Fato semelhante, ocorrido na favela de Manguinhos, na Leopoldina, também apareceu timidamente na imprensa: familiares do jovem Paulo Roberto Pinho de Menezes, morto por asfixia, acusaram cinco policias de terem espancado o rapaz em uma abordagem.[36] De tão frequentes, casos como estes já não podem mais ser contados. No Borel, uma operação da Polícia Civil, no início de 2013, resultou na prisão de 24 pessoas envolvidas com o tráfico, entre elas um soldado da UPP.[37] Pouco antes, na favela da Mangueira, também no bairro da Tijuca, doze PMs foram presos por suspeita de extorsão: “Segundo a denúncia, durante uma revista na casa de um traficante do morro, eles teriam encontrado drogas, mas não as encaminharam à delegacia, ficando com o material e ainda exigiram dinheiro para não prendê-lo”.[38] Em todas essas favelas, a “pacificação” se faz presente apenas como braço armado do Estado. A UPP São Carlos, numa área contígua ao Centro, e com efetivo de 244 policiais, que também atuam em favelas vizinhas como o morro da Mineira, é uma espécie de síntese das contradições do processo de ocupação das favelas cariocas com menor visibilidade: o tráfico continua armado, o comandante da unidade foi preso por corrupção e grupos de PMs mascarados impõem suas próprias leis aos moradores enquanto as lideranças comunitárias são ameaçadas.[39] Na mesma região, as favelas da Coroa, Fallet e Fogueteiro apresentam um quadro parecido: traficantes negociando diretamente com o comando da UPP o pagamento regular de propina.[40] O que se instaura a partir daí é um tipo de coexistência na qual os agentes do Estado podem apenas simular sua atuação institucional. Com os acordos, tornam-se frequentes os atentados, sempre que uma das partes se sente prejudicada. Esse poder negociado de maneira informal entre os agentes locais, sem a autoridade política da Secretária de Segurança, cuja influência sobre o comando oficial das UPPs permanece num nível mais abstrato, sem base material, não tem nenhum poder sobre a convivência entre os policiais e as facções.

          Por causa desse tipo de atuação policial, é grande a desconfiança em relação às UPPs. Todas as etapas da “pacificação” são marcadas por suspeitas e denúncias. Na favela do Jacarezinho, ocupada desde janeiro de 2013, a maioria das pessoas permaneceu em casa para proteger seus bens, mesmo ante os rumores de um conflito iminente que antecederam a chegada da polícia. Para Rumba Gabriel, presidente da Associação de Moradores, apesar da diminuição dos conflitos violentos, “a maior parte dos moradores permanece assustada com as notícias de ‘abusos’ cometidos em outras favelas”.[41] As diferenças entre a situação do Jacarezinho e outras favelas, como o Vidigal ou Santa Marta, são evidentes. Apesar do contingente numeroso – mais de 500 policiais – a UPP do Jacarezinho é responsável pelo patrulhamento dos bairros da região. Situada numa área estratégica, na qual passam importantes eixos viários, a ocupação da favela do Jacarezinho – bem como a vizinha Manguinhos – é parte de um grande plano de reestruturação urbana. Com investimentos estaduais e federais em habitações populares e num complexo de investigação chamado Cidade da Polícia, pretende-se “recuperar” o bairro repleto de fábricas e refinarias abandonadas. Para André Fernandes, da Agência de Notícias das Favelas (ANF), organização que atua no Jacarezinho, o novo complexo policial também visa as favelas da região, “e com a circulação de policiais nas proximidades eles podem colocar dois ou três contêineres espalhados pela favela e dizer que é mais uma UPP”.[42] Essa impressão, anterior à ocupação, pôde ser confirmada em seguida. Quando o governador Sérgio Cabral explicitou o seu projeto para aquela área, ficou claro que não havia lugar para a inclusão da favela: “estou enxergando aquela região, nos próximos seis, oito, dez anos, completamente redefinida do ponto de vista urbanístico, do ponto de vista social, do ponto de vista da ocupação territorial, com pessoas vivendo dignamente em uma área nobre do Rio”.[43] A recuperação dos bairros do entorno, desvalorizados pelo esvaziamento industrial e pela escalada da violência, desde o final dos anos 1970, passa por um tipo de ordenamento territorial da favela que exige cada vez mais o controle militar da pobreza. A ocupação baseada na violência contra os marginalizados pelo processo de valorização coloca a maioria dos moradores de favelas como o Jacarezinho contra a UPP, tornando os conflitos cada vez mais frequentes – a exemplo dos protestos contra a morte do catador de material reciclável Alielson Nogueira, em abril de 2013.

          O morro da Providência, na área central da cidade, é em vários aspectos um caso singular no cenário da “pacificação”. A integração da favela ao espaço turístico-empresarial chamado Porto Maravilha não se limita a aproveitar uma localização privilegiada para facilitar o acesso aos turistas. As favelas da Providência e da Pedra Lisa, situada no sopé do morro, estão ocupadas militarmente desde abril de 2010. Antes, foram ocupadas diversas vezes, tanto pela polícia (Gpae), quanto pelas Forças Armadas, que lá permaneceram entre 2006 e meados de 2008, se retiraram após a crise desencadeada pelo sequestro de três jovens que foram entregues a bandidos de uma favela “rival” pelos militares. Após a saída da tropa do Exército, o patrulhamento foi reforçado por policiais militares. Na época da inauguração da primeira UPP, em Botafogo, o Gpae da Providência, uma das sete unidades de policiamento em “áreas especiais”, encontrava-se quase abandonado. Com a UPP, a ocupação policial ganhou novo fôlego e o morro começou a passar por uma grande transformação.

          O Porto Maravilha é uma operação urbana de valorização da área portuária. As obras estruturais do projeto acompanham o movimento da especulação imobiliária, que provocou a expansão da cidade em direção à zona oeste e agora retorna a uma porção empobrecida do centro, mas que conta com alguma infraestrutura e boa localização. Junto ao porto, o morro da Providência foi incorporado ao projeto, com a ajuda de experiências internacionais duvidosas de “regeneração” das favelas. A reurbanização do morro inclui dois teleféricos e um plano inclinado, para conectá-lo à Central do Brasil e ao complexo de entretenimento popular (Cidade do Samba) criado pela Prefeitura. Se os teleféricos, idênticos aos do Complexo do Alemão, foram inspirados em Medellín, na Colômbia, a definitiva incorporação turística do morro – pois um “museu a céu aberto” havia sido criado em 2005, durante as obras do favela-bairro –  encontra um paralelo com o Barrio Las Penãs, na cidade de Guayaquil, igualmente ligado à urbanização da área do porto, o chamado Malecón 2000.[44] Tal como na cidade equatoriana, a conversão da área do porto do Rio em centro turístico dependia do controle dos territórios de pobreza mais próximos para promover as modificações recomendadas pela ideologia do empreendedorismo urbano. Outra semelhança entre os processos de urbanização de Las Penãs e do morro da Providência é a ideia de resgate histórico: ambos possuem um forte simbolismo que remete, no primeiro, às origens da ocupação de Guayaquil e, no Rio, à primeira favela da cidade. Mas, enquanto o caminho de acesso a Las Penãs preserva um velho casario colonial, no qual foram instalados os cafés, restaurantes e galerias de arte que completam o circuito do centro comercial da cidade, a história da favela carioca mais antiga está sendo modificada e recriada pela Prefeitura de acordo com um estilo colonial postiço que descaracteriza seu núcleo original.

          Ao invés de “resgatar a ambiência” do período da ocupação do morro, a construção de áreas com apelo turístico na Providência tende a produzir um cenário descontextualizado e sem vida. Por isso, está prevista a demolição de todas as residências localizadas na parte mais alta do morro, no entorno da Capela do Cruzeiro. Com uma população de aproximadamente 5.000 moradores, a qual menos de 40% possui documentos de propriedade regularizados, a reurbanização e o fator de risco têm sido usados como pretexto para as remoções. De acordo com um relatório independente sobre as visitas técnicas realizadas no Morro da Providência e da Pedra Lisa, cujo objetivo é avaliar as situações de risco geodésico e os impactos do programa municipal de urbanização “Morar Carioca”, está prevista a remoção de 48,3% do total das residências, incluindo todas as 351 casas da Pedra Lisa.[45] Na Providência, mais de 600 famílias têm de ser removidas devido às obras e aos alegados fatores de risco.[46] O relatório ressalta que “os moradores não tiveram acesso a qualquer laudo técnico com o mapeamento do risco ou aos projetos que conteriam as especificidades das obras previstas, com a exceção de uma apresentação superficial realizada pela Prefeitura, durante um evento ‘festivo’ promovido na comunidade (…) às vésperas do início da execução das obras”.[47] A maior parte das remoções e despejos tem acontecido de forma truculenta, sem notificação prévia e em número muito superior ao das unidades habitacionais a serem construídas pelo governo. O sentido das intervenções urbanísticas, com obras que pretendem diminuir o adensamento de trechos da favela e melhorar a mobilidade, é claramente elitizador, ainda que se preste ao uso político como símbolo da inclusão da população da favela. Também o teleférico e o plano inclinado, que contribuem para o processo de remoção em massa, são parte da “revitalização” da zona portuária e não uma demanda prioritária dos moradores.

A reconfiguração espacial da “guerra às drogas”

 

          O quadro que descrevemos até aqui não estaria completo se não abarcasse as áreas da cidade e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro que, até agora, ficaram de fora dos planos governamentais. Essa divisão não pode ser compreendida apenas como um efeito da desigualdade da presença estatal. É preciso reconhecer que a estratégia de intervenção política está orientada para a produção da nova polarização socioespacial. Enquanto o aparato político-midiático exalta a novidade e as virtudes da nova forma de “enfrentamento do crime”, que teria, finalmente, permitido ao Estado “recuperar” territórios ocupados há décadas por bandos ilegais, o saldo real das UPPs foi o recrudescimento da guerra – e esse resultado se parece mais com uma tendência crescente do que com um efeito colateral provisório.

         A principal conseqüência da reconfiguração espacial da “guerra às drogas” – que envolve a migração das facções – é a transformação de locais relativamente apaziguados no cenário pré-UPP em áreas de conflito e a ampliação da violência em vários redutos “tradicionais” dos bandos armados. Enquanto as atenções se voltavam para a ocupação militar do Complexo do Alemão, bairros como Bangu (Vila Kennedy) e Praça Seca (morros da Chacrinha e São José Operário) assistiram a uma escalada da guerra entre as quadrilhas. Em Senador Camará, a perseguição de helicóptero ao traficante “Matemático” (líder da facção TCP), numa operação noturna de alto risco, com emprego de armamentos pesados em áreas residenciais, nos permite ver a diferença de tratamento do Estado em relação às regiões da cidade.[48] Com cerca de 1,7 milhão de habitantes (27% da população do município), a parte mais pobre da zona oeste, formada por bairros como Santa Cruz, Campo Grande, Bangu e Realengo, concentra mais de 250 favelas, mas conta com apenas uma UPP, no Jardim Batam. A zona oeste também se tornou uma área de disputa entre os traficantes e as milícias. No bairro da Praça Seca, que faz a ligação com a zona norte, o enfraquecimento das milícias locais fez com que o bairro fosse disputado pelas facções. O Estado respondeu com a criação de uma Companhia Destacada da Polícia Militar, o que reforça a política do confronto do período pré-UPP. Outro exemplo de como a polícia continua a atuar fora das áreas ditas pacificadas é a intervenção na favela Nova Holanda (Complexo da Maré), em junho de 2013. A violência se intensificou na Maré depois que um policial foi atingido numa troca de tiros com traficantes: os agentes do Estado cometem abusos de autoridade, invadem casas e fazem ameaças, em formas de violência física e psicológica que não devem em nada ao terror imposto pelo tráfico. A ocupação da favela pelo Bope resultou em pelo menos nove mortes denunciadas por moradores e organizações de direitos humanos como execuções motivadas pela tentativa de vingar a morte do policial.

          Um mapeamento dos principais conflitos em áreas periféricas nos permite visualizar o papel das UPPs no deslocamento das disputas por territórios. No período entre 2009 e 2010, a facção desalojada das favelas da zona sul aumentou os ataques às favelas de outras regiões da cidade, tendo como base principalmente as favelas do Complexo do Alemão e da Penha. Desde os preparativos para a ocupação da Vila Cruzeiro, no final de 2010, uma nova onda de conflitos pôs fim à trégua entre as duas maiores facções. Em meados do ano seguinte, a facção que controlava os morros da Rocinha, Vidigal, Macacos e São Carlos (todas ocupadas pela polícia) se reorganizou para conquistar novos territórios, a exemplo do Morro do Juramento, em Vicente de Carvalho e da Vila dos Pinheiros, na Maré. Da Pavuna, Costa Barros (Morro da Pedreira/Lagartixa) e Água Santa (Morro do Dezoito), na extrema zona norte, partem os “bondes” da facção ADA para invadir outras favelas. O Complexo do Chapadão, também em Costa Barros, é o novo reduto do CV, onde se refugiaram quadrilhas de diversas favelas, e a partir do qual a facção tenta expandir suas atividades em Jacarepaguá, enfrentando a milícia local. Tal como no Complexo da Maré, a proximidade entre as três facções nos bairros mais pobres da zona norte produziu uma área de conflito permanente. Em toda essa extensa região, próxima da Baixada Fluminense, a “solução” encontrada pela Secretaria de Segurança foi a mesma usada para conter a guerra entre traficantes e milicianos na Praça Seca. As Companhias Destacadas foram definidas pelo secretário Beltrame como um “meio termo” entre a UPP e o policiamento convencional, o que significa uma intervenção limitada à ocupação permanente, sem a retórica da cidadania e das oportunidades de mercado. Na maioria dos casos, o número de policiais por habitante é muito menor do que a quantidade empregada nas UPPs, embora as Companhias Destacadas fiquem responsáveis por bairros inteiros. Trata-se apenas de um precário reforço policial em áreas conflagradas. A orientação seletiva da ação repressiva faz com que o índice de mortes violentas na periferia carioca alcance patamares análogos – ou até mesmo superiores – aos de zonas em guerra declarada. Em alguns bairros a taxa de homicídios chega a 47,9 para cada 100 mil habitantes: “na prática, o risco [de morte] de um morador da Pavuna, bairro da zona norte onde não há UPP, é quase vinte vezes maior do que o de um turista em Copacabana, bairro da zona sul que conta com três unidades instaladas”.[49] O discurso em defesa da “pacificação” sustenta que ela consegue produzir uma redução imediata dos crimes violentos nas favelas ocupadas – o que não é falso. As críticas mais comuns – que se pretendem construtivas – se atêm ao fato de o governo ter priorizado o chamado “corredor hoteleiro”, o que exigiria uma revisão estratégica capaz de incluir outras áreas da cidade no planejamento da segurança. Isso tudo mostra uma incompreensão do fenômeno “UPP”, pois não se leva em conta a dificuldade de ocupar os espaços nos quais a pobreza é mais difusa. Com essa omissão, perde-se a oportunidade de descrever o caráter essencialmente seletivo da “pacificação”.

          A essência de uma coisa corresponde às suas propriedades não acidentais. Exigir que as UPPs sejam mais bem distribuídas ou que priorizem áreas mais violentas da cidade é tão insensato quanto pedir a uma empresa que priorize as ações sociais em detrimento do lucro. Pedir UPPs menos discriminadoras é transformá-las idealmente no seu inverso. Para compreender a essência da “pacificação”, basta recordar o contexto no qual ela foi criada. No final de 2007, a imagem do primeiro ano do governo de Sérgio Cabral era bastante negativa no que diz respeito à segurança. A Secretaria de Segurança havia adotado uma política de enfrentamento com muitas mortes e poucos resultados. O quadro se agravou quando as quadrilhas do tráfico usaram pela primeira vez a estratégia da migração interna (pré-UPP) nas favelas. Deslocavam armas para a zona sul da cidade com o objetivo de diminuir o enfrentamento com a polícia – o que se explica pela afirmação de Beltrame segundo a qual um tiro em Copacabana “é uma coisa” e no Complexo do Alemão, “é outra”. Nas palavras do secretário: “Porque eles estão indo para o Pavão-Pavãozinho? Porque uma ação policial em Copacabana tem uma repercussão muito grande, porque as favelas e os comandos estão a metros das janelas da classe média”.[50] Ao inverter o sentido da “migração”, impedindo os conflitos armados nos bairros de classe média, nos quais é preciso “mais critério” nas operações policiais, as UPPs permitiriam modificar a imagem da polícia e do Estado. Construindo a imagem de segurança que, logo em seguida, serviria para dar respaldo à candidatura olímpica do Rio de janeiro, o governo estadual não só foi impotente para evitar a guerra nas áreas mais pobres da cidade, mas agiu deliberadamente para mantê-la o mais distante possível da sua vitrine.

          Por fim, a incompreensão do caráter seletivo das UPPs se reproduz nos locais que mais sofreram as consequências diretas do modelo de segurança atual. Ao invés de enxergar a deterioração das condições de segurança no conjunto do estado como o efeito necessário de uma política concentrada na capital fluminense, o abandono das demais regiões é visto como uma simples insuficiência que poderia ser resolvida com a expansão do mesmo modelo. As diferenciações internas na capital são apenas um aspecto da estratégia territorial, que se complementa com a migração das facções para outras cidades no interior e no litoral do estado. Desde 2010, com a ocupação do Complexo do Alemão, há um reforço da presença dos bandos armados nas proximidades da capital, especialmente em São Gonçalo, Niterói e nas cidades mais populosas da Baixada Fluminense. Em cada uma dessas cidades, em cujas favelas se repete o processo de territorialização das facções, optou-se pela alternativa das Companhias Destacadas. Essa UPP “genérica” nada mais é do que uma unidade avançada dos batalhões da PM. Com a generalização desse tipo de “reforço” do policiamento convencional, cai por terra a legitimação ideológica da ocupação dos territórios.[51] Também desaparece a preocupação com a renovação do aparato policial. Em Niterói, a presença do tráfico e das milícias fez a violência aumentar em proporção muito superior à capital e ao conjunto do Estado – de acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública, em 2013 o número de homicídios dolosos foi 48% mais alto que no ano anterior.[52] A rápida elevação dos índices de criminalidade vem sendo atribuída pela imprensa local à política estadual de segurança: “UPPs no Rio levam polícia a montar barreiras nos acessos a Niterói para tentar impedir migração para a cidade e também para São Gonçalo”.[53] O presidente do Conselho Comunitário de Segurança da cidade, Leandro Santiago de Barros, relata que “após a instalação das unidades [UPPs] em diversas comunidades da capital fluminense acreditamos que houve uma migração de criminosos para Niterói”.[54] Mas a lógica espacial desse tipo de administração violenta da pobreza não é apreendida. Assim, nas cidades que sofrem os efeitos da “pacificação”, as autoridades apenas lamentam a ausência do programa no seu próprio território e não vislumbram nada melhor do que a reprodução, em um tamanho menor, do modelo carioca de “externalização” da violência: “a notícia da UPP aqui, em 2014, é maravilhosa e a comunidade que deve receber a unidade é o Morro do Estado, ponto estratégico entre o Centro e Icaraí, próximo de outra favela perigosa, o Morro do Palácio, e área de constantes conflitos que atrapalham a rotina de moradores e comerciantes dessas regiões”, diz o mesmo Leandro Santiago.[55] Em cidades como Macaé e Duque de Caxias, o nome UPP usado pela imprensa para caracterizar a ocupação de bairros considerados perigosos é apenas uma designação informal. Talvez esta seja a antecipação do destino das UPPs, o que significaria não tanto uma degeneração do programa, mas a revelação da sua verdadeira natureza, a expansão descontrolada do aparato policial como última instância na administração da crise social. Outra possibilidade – que não é de todo incompatível com a anterior – é a renovação da imagem das UPPs a partir de uma orientação mais “social”, por exemplo, com ênfase em programas de renda mínima e um caráter menos seletivo.[56]

          Como se vê, não basta traçar uma linha demarcando favelas com e sem UPP. Foi estabelecida uma divisão real no espaço da metrópole: enquanto os defensores da “pacificação” comemoram êxitos localizados do programa (especialmente a redução do poder do tráfico nas áreas mais integradas da economia urbana), as periferias são entregues às práticas mafiosas que se desenvolvem por dentro do aparato policial. Em muitos casos, as UPPs podem estar funcionando, na prática, como embriões do poder paramilitar. Do mesmo modo, a recente redução do número absoluto de homicídios não pode ser explicada sem o crescimento do número de desaparecidos (que permanecem fora das estatísticas) em regiões dominadas por milícias. Diminui-se apenas o número de mortes contabilizadas oficialmente. A “pacificação” é o contrário do que aparenta ser: ainda que os comandos do tráfico continuem a perder seus espaços, os conflitos são apenas deslocados e o Estado não recupera o monopólio da violência. Ao contrário, o que tem ocorrido até agora é um fortalecimento das redes informais de associação criminosa provenientes das instituições repressivas. O que aconteceu no passado com o problema do déficit habitacional e a favelização, se repete agora no modo como o Estado lida com a violência: esta só é vista como um problema quando ocorre em determinadas áreas da cidade. De qualquer forma, até nas pequenas favelas que se aproximam do modelo da “vitrine” de segurança, a militarização começa a ser contestada. A expansão das UPPs – pelo menos no padrão atual – parece ter chegado a um impasse, pois a tentativa de abarcar novas áreas da cidade coincide com a crise de legitimação da ideologia policial nos territórios ocupados.

 


[1] Um estudo da FGV, publicado em agosto 2010, constatou o aumento da pobreza na cidade do Rio, no que poderíamos chamar de “integração negativa”: entre 1996 e 2008, “o Rio se integrou em renda não pela melhoria da favela, mas pela queda do asfalto”. Ver “Desigualdade e favelas cariocas. A cidade partida está se integrando?”. http://cps.fgv.br/favela

[2] O emprego do termo estratégia guarda uma relação próxima com a noção de espaço estratégico em Henri Lefebvre, Espacio y Politica. Barcelona: Península, 1976, p. 139. Sobre o conceito de território ver Claude Raffestin, Por uma geografia do poder, São Paulo: Ática, 1993, p. 143-4.

[3] Não é o caso de analisar o mesmo fenômeno em escalas diferentes, pois a modificação na escala impõe uma problemática nova. A abordagem aqui proposta se situa no mesmo plano da ação urbanística e militar em questão. Como lembra Yves Lacoste, “existem níveis de análise que é preciso privilegiar, pois eles correspondem a espaços operacionais, em decorrência das estratégias e táticas elaboradas”. A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas, SP, Papirus, 1997, p. 81.

[4] Marcos Barreira, “Cidade Olímpica: sobre o nexo entre reestruturação urbana e violência na cidade do Rio de Janeiro”, em Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Org. Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 145.

[5] Ibidem, p. 148.

[6] Com a saída do Exército, foram criadas oito UPP nesta região, com um total aproximado de 1300 policiais.

[7] “Polícia, câmera, ação”, Revista Piauí, Edição 74, agosto de 2010.

http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-47/questoes-de-seguranca/policia-camera-acao

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] A migração acontece quando um grupo criminoso se muda para outra favela dominada pela mesma facção e de lá prepara incursões contra adversários. Essencialmente, as facções, criadas a partir de alianças no interior do sistema carcerário ou nas disputas pelos lucros do tráfico, funcionam como uma rede de apoio para ações contra inimigos e refúgio para foragidos e lideranças destituídas. Nesse momento (entre 2009 e 2010), os integrantes da facção que se tornou alvo preferencial das operações policiais, nos morros da zona sul e da região da Grande Tijuca, começaram a se concentrar nas favelas da chamada zona da Leopoldina (especialmente a Vila Cruzeiro). A partir daí, o Complexo do Alemão exerceu um papel chave na distribuição de armas e drogas para as favelas dominadas pelo Comando Vermelho. Essa migração ocorreu a partir de uma estrutura de organização muito elementar, sem planejamento ou estratégia. É interessante observar o papel do chamado “funk proibido” nos conflitos. De exaltação dos chefes e do estilo de vida das facções, ele passou a funcionar como um meio de comunicação improvisado entre as favelas através do qual é possível acompanhar a movimentação dos grupos armados. A maior parte das informações sobre a guerra do tráfico – inclusive a sua lógica territorial – circulam mais rapidamente nas letras desse tipo de música funk do que no noticiário, mas, ao contrário das mídias convencionais, elas permanecem restritas às favelas.

 

 

[11] A favela da Rocinha foi ocupada em dezembro de 2011, mas a UPP só foi inaugurada em setembro de 2012. De acordo com os dados da Secretaria de Segurança, a unidade é responsável por “atender” mais de 70 mil moradores e aproximadamente 26 mil habitações. Na mesma época, o morro do Vidigal, próximo aos bairros de São Conrado e Leblon, também foi ocupado.

[12] “Não é só um policial com fuzil na mão…”. José Mariano Beltrame, O Globo, 11 de dezembro de 2012.

[13] Na Rocinha o conflito entre facções, inexistente desde 2004, foi retomado entre fevereiro e março de 2012, após a ocupação policial.

[14] Ruben Berta “Tijuca, um bairro degradado pela favelização”, O Globo, 15/10/2005, Rio, p. 15.

[15] Roberto Costa, “A paz de Cristo e a segurança na Tijuca”. Tijuca em foco, ano I, No. 8, 2012.

[16] Não nos referimos aqui às favelas originadas de conjuntos habitacionais dos anos 1960, como Vila Kennedy ou a Cidade de Deus, mas a uma porção do espaço urbano sem estrutura bem definida, no sentido de um conjunto disforme de usos e representações. Acrescente-se que o conceito de “favela” permanece insuficiente e sua definição, de modo contraditório, depende tanto das experiências cotidianas quanto de critérios puramente quantitativos (no caso do IBGE, são contabilizadas como “aglomerado subnormais” as favelas com mais de cinquenta residências).

[17] Aqui poderíamos ser acusados de inverter as relações de causa e efeito: à primeira vista, parece claro que a militarização é uma resposta ao crescimento da estrutura do tráfico de drogas. Mas cabe perguntar como é que o Estado manteria sob controle a população “sobrante” que abarrota os espaços periféricos e os morros da cidade sem a presença de um inimigo como o “crime organizado”. Uma resposta ingênua para essa questão é a de que os dispositivos de segurança do Estado funcionam apenas para coibir ações criminosas e não para finalidades de controle social.

[18] Ver Maurílio Lima Botelho. “Crise urbana no Rio de Janeiro. Favelização e empreendedorismo dos pobres”, em Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Org. Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira. São Paulo: Boitempo, 2013.

[19] Sônia Fleury. “Militarização do social como estratégia de integração: o caso da UPP do Santa Marta”. Porto Alegre: Sociologias ano 14, n 30, mai./ago. 2012, p. 214.

[20] Em Robson N. Rodrigues. “A influência da UPP Santa Marta no entorno da comunidade”. http://www.youblisher.com/p/214008-A-INFLUENCIA-DA-UPP-SANTA-MARTA-NO-ENTORNO-DA-COMUNIDADE-ROBSON-MARCELO-VAZ-DE-NUNES-RODRIGUES-MAJ-PM/

[21] Ver “Sobre o processo de remoção no Santa Marta: moradores do pico se organizam para resistir”. http://www.ocotidiano.com.br/2012/07/sobre-processo-de-remocao-no-santa.html

[22] “O morro do Vidigal visto do alto”.  Revista O Globo, 19/05/2013, p. 28.

[23] Com a chegada da UPP, o mesmo empresário – de acordo com outra reportagem de O Globo – tentou reassumir a posse dos imóveis vendidos a baixo preço no começo de 2010. Segundo o jornal, “Rolf Rudiger Glaser aproveitou a ausência do austríaco Andreas Wielend, de 34 anos, para tomar a pousada Alto Vidigal, no alto da favela pacificada (…) Glaser teria invadido o imóvel e expulsado funcionários e hóspedes sob a alegação de que ele era o verdadeiro dono do local”. “Disputa européia do alto do Vidigal”. http://oglobo.globo.com/rio/disputa-europeia-no-alto-do-vidigal-6234217

[26] No Borel, apenas 61% dos moradores entrevistados após o primeiro ano de ocupação declarava-se satisfeito com a UPP. Ver Ignácio Cano (coord). “Os ‘Donos do Morro’: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) no Rio de Janeiro”. Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Rio de Janeiro, 2012. P. 7.

[27] Mônica Francisco, entrevista ao autor. Outubro de 2012.

[28] Idem.

[29] Idem.

[30] Em 2003, durante uma operação da Polícia Militar, quatro jovens foram executados e outros dois ficaram feridos, sem que qualquer um deles pudesse se identificar, em uma aparente represália contra protestos protagonizados pelos moradores do Borel nos dias anteriores. Todos os policiais envolvidos foram absolvidos, apesar das denúncias consistentes de execução. Dos cinco indiciados, somente o cabo Marcos Duarte Ramalho foi condenado, embora o julgamento tenha sido anulado. Os demais foram inocentados ou tiveram os processos arquivados.

[31] Mônica Francisco, cit.

[32] Idem.

[33] “Curso de Direitos Humanos em comunidade carioca promove diálogo entre policiais e moradores”. http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2012-12-12/curso-de-direitos-humanos-em-comunidade-carioca-promove-dialogo-entre-policiais-e-moradores

[35] Em relato à imprensa, a irmã da vítima afirma: “ajoelharam ele no chão e atiraram na cabeça dele. Desfiguraram o meu irmão. Eu tentei abraçá-lo pela última vez, mas me agrediram. Arrastaram meu irmão já morto como se fosse um bicho e jogaram na viatura”. “Família acusa policiais de executar mecânico na UPP do fogueteiro”. http://oglobo.globo.com/rio/familia-acusa-policia-de-executar-mecanico-na-upp-do-fogueteiro-5154082

[36] Na versão do comandante da UPP de Manguinhos, o jovem “fugiu em direção a um beco, visivelmente alterado, e caiu desmaiado antes mesmo de ser capturado pelos policiais”. “Parentes acusam policiais da UPP de Manguinhos pela morte de jovem de 18 anos”. http://extra.globo.com/casos-de-policia/parentes-acusam-policiais-da-upp-de-manguinhos-pela-morte-de-jovem-de-18-anos-10403538.html

[37] De acordo com uma reportagem, “a quadrilha praticava extorsões e ameaças, sendo responsável por pelo menos 15 homicídios”. “Ação em comunidades pacificadas no rio tem 24 presos”. http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/01/acao-em-comunidades-pacificadas-no-rio-tem-24-presos.html

[41] Rumba Gabriel, entrevista ao autor. Dezembro de 2012.

[42] André Fernandes, entrevista ao autor. Dezembro de 2012.

[44] O Malecón 2000 é considerado um modelo de renovação urbana. O morro Santa Ana foi ocupado pela polícia, que atua diretamente no serviço de orientação aos turistas. O Santa Ana foi dividido em duas partes, separadas por muros e portões. A maior preocupação das autoridades é manter os visitantes na parte do morro voltada para o porto, o que os afasta do contato com a pobreza que subsiste no outro lado do morro, que permanece abandonado à criminalidade cotidiana. Outra característica do projeto foi o mecanismo de financiamento custeado pelos próprios moradores. A favela foi integrada à cidade através de um aumento temporário dos impostos, até que os residentes pagassem suas dívidas.

[45] Maurício Campos dos Santos e Marcos de Faria Asevedo. “Relatório sobre as visitas técnicas realizadas nas comunidades do Morro da Providência e da Pedra Lisa nos dias 23/8 e 7/9/2011 e Parecer Técnico sobre os motivos alegados pela Prefeitura do Rio de Janeiro para a remoção de 832 famílias nessas duas comunidades”. Rio de Janeiro, 31 de outubro de 2011.

http://forumcomunitariodoporto.files.wordpress.com/2011/12/relatc3b3rio-morro-da-providc3aancia_final-1.pdf

[46] De acordo com a Prefeitura, o total de “realocações” é de 832 casas, sendo 515 referentes ao “risco” e 317 referentes às obras de urbanização. A despeito da existência de riscos pontuais, os argumentos usados pela prefeitura são bastante duvidosos: na Pedra Lisa, “um fator de risco real que foi identificado não está associado às condições de estabilidade da encosta, mas sim à existência de construções precárias, com a utilização de madeira e material reaproveitado”. Ibidem, p. 8. O Relatório também conclui que “inexiste justificativa para a realocação de 351 domicílios em função de ‘risco’ e para a não inclusão da comunidade no projeto de urbanização”, Ibidem, p. 9. Na localidade conhecida como “Centro Histórico”, na parte alta da Providência, foram usadas definições de risco genéricas: “ignorando a situação objetiva encontrada no local e sem qualquer justificativa, prevê a ‘realocação’ de 37 domicílios localizados em área considerada segura”, p. 17. Na mesma localidade, 36 residências serão removidas por causa do projeto urbanístico. Além disso, em áreas avaliadas como em “situação de risco” está prevista no projeto a construção de áreas de lazer.

[47] Ibidem, p. 1.

[48] Essa facção possui uma origem obscura. Especula-se que tenha surgido no interior do sistema prisional para se contrapor ao domínio do Comando Vermelho. O nome “Terceiro Comando”, provavelmente, sugere um distanciamento em relação às duas forças que se enfrentavam nas favelas, o CV e o aparato policial. Em meados dos anos 1990, lideranças do TC se uniram dentro das prisões a uma dissidência do CV, o ADA (“Amigos dos Amigos”); após uma briga no interior dessa aliança, remanescentes do TC criaram o TCP (“Terceiro Comando Puro”, com influência na zona oeste, localidades da zona norte como Acari e Vigário Geral, Morro do Dendê, na Ilha do Governador, além de outras cidades, como Niterói e São Gonçalo). Antes da execução do traficante “Matemático”, em maio de 2012, o TCP era a única facção carioca a qual a política do governo estadual não havia infligido perdas significativas.

[50] Folha de SP, 24 de outubro de 2007. Também o Estado de São Paulo, em 23 de outubro de 2007, noticiou: “Traficantes estão migrando com seus arsenais para a zona sul do Rio com o objetivo de dificultar o trabalho da Polícia, devido à maior repercussão que a ação policial teria junto às ‘janelas da classe média’ nos bairros mais ricos da capital fluminense, afirmou hoje o secretário de Segurança, José Mariano Beltrame”.

[51] Desde 2013, foram inauguradas Companhias Destacadas em bairros pobres da capital. Uma variação dessa alternativa é a utilização da própria UPP como base para a criação de “postos avançados” em outras favelas, como no caso do Jardim Batan, que, além de vitrine da “pacificação” na zona oeste, é uma base para operações de combate nas favelas Água Branca, Corinto e Fumacê. O mesmo vale para a UPP do Morro do Adeus, que “atende” o Morro do Piancó e a favela do Itararé.

[52] “Violência em Niterói sobe mais do que no estado do Rio e na capital”.

http://oglobo.globo.com/rio/bairros/violencia-em-niteroi-sobe-mais-que-no-estado-do-rio-na-capital-11820905

[53] “Cerco armado contra bandidos após implantação de novas UPPs”. http://www.ofluminense.com.br/editorias/policia/cerco-armado-contra-os-bandidos-apos-nova-upp

[55] Idem.

[56] Esse tipo de alternativa teria que levar a sério a tarefa impossível de realizar na prática a ideologia afirmativa da “pacificação”. Experiências recentes do governo estadual da Bahia, encabeçado pelo PT, apontam claramente esse caminho, que exige um estudo específico. Ainda que o governador Jacques Wagner tenha afirmado que se trata da “mesma filosofia” adotada no Rio de Janeiro, os critérios para a ocupações das favelas foram muito diferentes. Na Bahia, a distribuição das “UPPs”, chamadas Bases Comunitárias de Segurança, foi feita a partir dos indicadores de violência e teve, desde o início, uma distribuição espacial mais equilibrada. Outra diferença foi a criação de “UPPs” fora da capital do estado.